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A secessão e a federação brasileira sob o novo direito constitucional

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14/09/2019 às 15:33
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5. DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA

O federalismo, como modelo de organização do Estado, surgiu nos Estados Unidos da América, lembra o professor Paulo Gustavo Gonet Branco (2011, p. 827), “como resposta à necessidade de um governo eficiente em vasto território, que, ao mesmo tempo, assegurasse os ideais republicanos que vingaram com a revolução de 1776”. Posteriormente, “outros Estados assumiram também esse modo de ser, ajustando-os às suas peculiaridades, de sorte que não há um modelo único de Estado federal a ser servilmente recebido como modelo necessário” (2011, p. 828). Entretanto, há características comuns entre os vários modelos possíveis de Estado federal, como a distinção entre soberania, que no federalismo constitui “atributo do Estado Federal como um todo”, e a autonomia, de que dispõem os Estados-membros, caracterizada pela descentralização do Poder, administrativa e politicamente (BRANCO, 2011, p. 828). Ao dispor sobre o motivo que levam Estados a assumirem a forma federal, Branco explica:

Os Estados assumem a forma federal tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Um território amplo é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e de paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes.

O federalismo tende a permitir a convivência de grupos étnicos heterogêneos, muitas vezes com línguas próprias, como é o caso da Suíça e do Canadá. Atua como força contraposta a tendências centrífugas.

O federalismo, ainda, é uma resposta à necessidade de se ouvirem as bases de um território diferenciado quando da tomada de decisões que afetam o país como um todo. A fórmula opera para reduzir poderes excessivamente centrípetos.

Aponta-se, por fim, um componente de segurança democrática presente no Estado federal. Nele o poder é exercido segundo uma repartição não somente horizontal de funções- executiva, legislativa e judiciária-, mas também vertical, entre Estados-membros e União, em benefício das liberdades políticas. (BRANCO, 2011, p. 832)

A divisão de recursos é essencial para a concretização da Federação, lembrando Ferreira Filho que constitui “a medida da autonomia real dos Estados-membros”. Oportuno seu escólio:

Na verdade, essa partilha pode reduzir a nada a autonomia, pondo os Estados a mendigar auxílios da União, sujeitando-os a verdadeiro suborno. Como a experiência americana revela, pelo concurso financeiro, a União pode invadir as competências estaduais, impondo sua intromissão em troca desse auxílio.

A questão é mais complexa ainda nos tempos que correm. Pode a União, com suas faculdades econômicas e financeiras, manipular a seu bel-prazer o crédito mais o câmbio e o volume de papel-moeda. Daí decorre que de sua política é que depende a substância dos recursos à disposição dos Estados-Membros. Uma política inflacionária, por exemplo, pode reduzi-los a nada, tornando incapazes os Estados de pagar seus próprios funcionários. (FERREIRA FILHO, 2012, p. 88-89)

Na Federação Brasileira, o Poder Legislativo é bicameral, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, que juntos compõem o Congresso Nacional (art. 44/ CF). Leciona Silva (2013, p. 511):

É da tradição constitucional brasileira a organização do Poder Legislativo em dois ramos, sistema denominado bicameralismo, que vem desde o Império, salvo as limitações contidas nas Constituições de 1934 e 1937, que tenderam para o unicameralismo, sistema segundo o qual o Poder Legislativo é exercido por uma única câmara. Debate-se muito sobre as vantagens e desvantagens de um ou de outro sistema. Mas a dogmática constitucional, desde a promulgação da Constituição dos EUA, recua aceitar o unicameralismo nas federações, por entender que o Senado é a câmara representativa dos Estados federados, sendo, pois, indispensável sua existência ao lado de uma câmara representativa do povo. (destaques no original)

Entretanto, a Câmara dos Deputados, que deveria representar proporcionalmente a população dos Estados-membros e do Distrito Federal no Parlamento, deve atentar-se na sua composição aos limites estabelecidos, entre o mínimo de oito e o máximo de setenta deputados por unidade da Federação (art. 45, §1º, CF). Para Silva, “Essa regra que consta do art. 45, §1º, é fonte de graves distorções do sistema de representação proporcional”, pois

[...] com a fixação de um mínimo de oito Deputados e o máximo de setenta, não se encontrará meio de fazer uma proporção que atenda o princípio do voto com valor igual para todos, consubstanciado no art. 14, que é aplicação particular do princípio democrático da igualdade em direitos de todos perante a lei. É fácil ver que um Estado com quatrocentos mil habitantes terá oito representantes enquanto um de trinta milhões será apenas setenta, o que significa que um Deputado para cada cinquenta mil habitantes (1:50.000) para o primeiro e um para quatrocentos e vinte e oito mil e quinhentos e setenta e um habitantes para o segundo (1:428.571).

Em qualquer matemática, isso não é proporção, mas brutal desproporção [...]. (2013, p. 512-513)

Essa desproporcionalidade tem sido acentuada ao longo dos Textos constitucionais republicanos. Em 1891, a Constituição fixava que “A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo eleitos pelos Estados e pelo Distrito Federal, mediante o sufrágio direto, garantida a representação da minoria” (art. 28), “em proporção que não excederá de um por setenta mil habitantes, não devendo esse número ser inferior a quatro por Estado” (art. 28, §1º). Na Constituição de 1934, foi assentado que os eleitos deveriam representar, proporcionalmente, a população dos Estados e do Distrito Federal, “não podendo exceder de um por 150 mil habitantes até o máximo de vinte, e deste limite para cima, de um por 250 mil habitantes” (art. 23, §1º). Em 1937, a Carta Magna estabeleceu que “O número de Deputados por Estado será proporcional à população e fixado por lei, não podendo ser superior a dez nem inferior a três por Estado” (art. 48), o que perdurou até o advento da Lei Constitucional nº 9, de 1945, que modificou aqueles limites para um mínimo de cinco e um máximo de trinta e cinco.  Na Constituição de 1946, ficou dito que “O número de Deputados será fixado por lei, em proporção que não exceda um para cada cento e cinqüenta mil habitantes até vinte Deputados, e, além desse limite, um para cada duzentos e cinqüenta mil habitantes” (art. 58), que com o advento da Emenda Constitucional nº 17, de 1965, teve a parte final do dispositivo alterada para que a proporcionalidade “não exceda de um para cada trezentos mil habitantes, até vinte e cinco Deputados, e, além dêsse limite, um para cada quinhentos mil habitantes”. Em 1967, a Lei Maior determinou que a quantidade de Deputados obedecesse a “proporção que não exceda de um para cada trezentos mil habitantes, até vinte e cinco Deputados, e, além desse limite, um para cada milhão de habitantes” (art. 41, §2º). Com o novo Texto Constitucional de 1969, a quantidade de parlamentares na Câmara Federal passou a ser calculada conforme faixas preestabelecidas: (i) “até cem mil eleitores, três deputados” (art. 39, §2º, “a”); (ii) “de cem mil e um a três milhões de eleitores, mais um deputado para cada grupo de cem mil ou fração superior a cinqüenta mil” (art. 39, §2º, “b”); (iii) “de três milhões e um a seis milhões de eleitores, mais um deputado para cada grupo de trezentos mil ou fração superior a cento e cinqüenta mil”; e (iv) “além de seis milhões de eleitores, mais um deputado para cada grupo de quinhentos mil ou fração superior a duzentos e cinqüenta mil”; posteriormente, a Emenda Constitucional nº 8, de 1977, estabeleceu que “nenhum Estado tenha mais de cinqüenta e cinco ou menos de seis deputados”, o que novamente foi alterado pela Emenda Constitucional nº 22, de 1982, “para que nenhum Estado tenha mais de sessenta ou menos de oito deputados”. Os constituintes de 1988 apenas ampliaram o teto para setenta Deputados, sem corrigir efetivamente qualquer desproporção[9].

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De fato, hodiernamente são 513 Deputados federais que representam a população dos Estados-membros e do Distrito Federal, ainda que de forma desproporcional, no Congresso Nacional.Já o Senado Federal é composto por 81 Senadores, sendo que cada Estado-membro e o Distrito Federal elegem três representantes (art. 46, §1º, CF).

A Federação da República, pois, constitui um engodo; os Estados-membros mais populosos são sufocados pela falta de espaço político.

Tomando por base dados do IBGE de 2007, a somatória da população dos Estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná, de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro ultrapassa 50% da brasileira. Todavia, esses Estados ocupam apenas 18 vagas no Senado Federal, restando as outras 63 para outras unidades da Federação; tampouco a questão se resolve pela quantidade de assentos na Câmara dos Deputados, porque enquanto os Estados mencionados ocupam 246 cadeiras, os demais Estados, que representam menos que a metade da população brasileira, possuem 267 lugares. Daí porque Bandeira, ao discorrer sobre o ressurgimento de movimentos independentistas no Brasil, afirma que

[...] o fator político que mais contribuiu para o aumento da insatisfação em algumas regiões foi a existência de distorções no sistema representativo, que fazem com que a participação quantitativa dos estados do Sul e do Sudeste no Congresso Nacional - e, portanto, sua influência nas decisões legislativas-  seja bem inferior à sua importância demográfica e econômica.

Segundo dados publicados recentemente na imprensa do Rio Grande do Sul, essas duas regiões, que somadas representam mais de 77% do PIB e quase 60% da população do Brasil, possuem menos da metade das vagas do Congresso. (1993, 211)

A desproporção fica mais flagrante quando tomados os dados populacionais do Estado de São Paulo, que em 2007 possuía 39,838 milhões de habitantes e representação no Congresso Nacional de 70 Deputados federais e 3 Senadores. Somadas as populações dos sete Estados das regiões norte e dos três do centro oeste, mais a do Distrito Federal, perfaziam 27,789 milhões de habitantes, mas estavam representados no Congresso Nacional com 106 Deputados federais e 33 Senadores.

Essa falta de representatividade política dos Estados mais populosos acarreta, em princípio, o induvidoso questionamento sobre a legitimidade do trabalho do Poder Legislativo e sobretudo dos constituintes de 1988, especialmente com relação aos dispositivos constitucionais que mantiveram essa desproporcionalidade no valor político entre cidadãos de Estados densamente povoados, como São Paulo, e outros com quantidade diminuta de habitantes, como Roraima, bem como na vedação de retirada da Federação, tida como indissolúvel.Isso porque o vício da representação dos congressistas, principalmente na composição da Câmara dos Deputados, em que a população nacional deveria estar representada proporcionalmente, conforme a quantidade de habitantes das unidades da Federação, não se convalida com o tempo, constituindo um nada, incapaz de produzir efeitos jurídicos; essa nódoa insuperável conduz inexoravelmente ao questionamento sobre sua legitimidade, notadamente quando busca legitimar maior poder político das minorias sobre a maioria, zurzindo o princípio pelo qual o Poder Legislativo da Federação teria no Senado a representatividade equivalente dos Estados, enquanto na Câmara deveria ser proporcional ao número de habitantes.

Destarte, se no âmbito do Poder Legislativo da República o equilíbrio entre os Estados-membros ocorre no Senado Federal, onde todos estão representados de forma equânime, a proporcionalidade entre o tamanho da população e a quantidade de representantes deve ser cabalmente verificada na composição da Câmara dos Deputados. Essa a essência do sistema bicameral. Não há se falar em limites máximos para essa representação, porque consequência da própria quantidade de habitantes dos Estados-membros e do Distrito Federal. 

A solução, portanto, repousa com mais razão na valoração dos princípios, gerais e abstratos. A Constituição Federal, e o trabalho dos legisladores que sucederam aos constituintes de 1988, devem ser relativizados nos pontos que legitimam a inaceitável distinção entre brasileiros e impedem os Estados-membros, na hipótese de assim desejar livre e conscientemente a maioria de sua população, de deixar a União.

Dessarte, a interpretação do dispositivo insculpido na Lei Fundamental que veda a indissolubilidade da República, à luz dos direitos humanos fundamentais, da cidadania e da premissa de que o Poder do Estado se origina no povo, conforme os princípios constitucionais elementares, aponta no sentido de que nenhuma unidade da Federação poderá se separar da União se sua população assim não desejar.

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Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. A secessão e a federação brasileira sob o novo direito constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5918, 14 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74404. Acesso em: 28 mar. 2024.

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