4. DO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO
Os constituintes de 1988 expressamente consignaram, no rol dos princípios aplicáveis às relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos (inciso II) e a autodeterminação dos povos (inciso III), estabelecendo no parágrafo único o escopo de integrar-se aos demais países ibero-americanos:
Art. 4º
[...]
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Sem dúvida, a inspiração dos constituintes nacionais tem origem na Carta das Nações Unidas, de 1945, recepcionada no direito nacional por meio do Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945, que reconhece aos povos o direito à sua autodeterminação e ao Estado o direito de defender sua integridade territorial. Vejamos:
Artigo 1. Os propósitos das Nações Unidas são:
[...]
2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;
[...]
Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios:
[...]
4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.
Na verdade, há um aparente conflito, que não se sustenta diante de uma análise mais acurada: de um lado, o direito à autodeterminação de um povo, com a consequente criação de um novo Estado ou sua agregação a um Estado já existente e, de outro lado, o direito da defesa da integridade territorial do Estado cuja população pretenda se desagregar. Sobre a Carta das Nações Unidas, pertinente o escólio de Ramina (2010, p. 3692):
As pretensões à independência que hoje assombram muitos Estados, espalhados por diversas regiões do globo, e que enfrentam minorias no interior de suas fronteiras, chocam-se com um problema jurídico de grande complexidade: a ausência de consenso relativamente às regras que permitem aos povos o chamado “direito à autodeterminação”, direito alçado a princípio com previsão expressa no artigo 1º, § 2º da Carta de São Francisco de 1945, que constituiu a Organização das Nações Unidas. Esse princípio, todavia, se interpretado em sua matriz anticolonialista, colide frontalmente com o princípio da integridade territorial, igualmente importante e previsto no mesmo documento, em seu artigo 2º, § 4º.
A comunidade internacional discorda acerca dos critérios que viabilizam a independência de regiões intraestatais, já que em cada situação particular entram em jogo os interesses das potências envolvidas, bem como diferem o grau de envolvimento dessas potências e o grau de poder e de resistência dos opositores. Essa constatação encontra respaldo na ausência de uniformidade dos argumentos que são utilizados cada crise.
Em um Estado Democrático de Direito, pautado na premissa de que o Poder estatal é do povo, é a vontade da população envolvida que deve prevalecer. Notadamente em um Estado Federal, como o brasileiro, onde esses entes federativos possuem autonomia. A mantença ou não na União deve sempre resultar do desejo da maioria, sob pena de violar os próprios objetivos pretendidos pela República, de promoção do bem de todos (art. 3º, IV, CF), e dos fundamentos republicanos de cidadania (art. 1º, II, CF) e de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). A mantença do status quo, se compulsória, agride cabalmente o direito à liberdade em sentido lato, o qual engloba o direito de ser livre para decidir em qual Estado se pretende viver.
A ideia segundo a qual o Estado não pode desintegrar-se, ou permitir a secessão, parte de uma lógica equívoca, na qual se protege esse ente abstrato, o Estado, em desfavor da população que habita em parte do território desse Estado. Contudo, o Estado existe para propiciar o bem estar das pessoas, e não as pessoas para a existência do Estado. Essa lógica não pode ser invertida, risco de violar direitos humanos fundamentais dos cidadãos.
Na verdade, a integridade territorial deve ser defendida sempre que a ruptura não representar o desejo majoritário dos habitantes do território envolvido. A doutrina dominante, contudo, tem pensamento diverso, como bem sintetiza Ramina (2010, p. 3704):
Resta flagrante que o princípio da autodeterminação dos povos mantém-se sujeito a interpretações diversas e flexíveis, sempre na esteira dos interesses estratégicos das grandes potências. Como sujeitos de direito, os povos definem-se pelos direitos e obrigações que lhes são reconhecidos pelo direito internacional, que podem variar em função de sua situação concreta, conferindo ao princípio um conteúdo variável. Para os povos que se confundem com Estados democráticos, o princípio se traduz em uma “autodeterminação interna”, ou em um “direito à democracia”. Nos Estados onde diversos povos coexistem, por sua vez, o princípio se traduz no reconhecimento dos direitos das minorias. Todavia, o direito à “autodeterminação externa” conduziria à secessão, incompatível com o princípio fundamental do direito dos Estados a sua integridade territorial. Apenas em caso de “povos subjugados a uma dominação ou ocupação estrangeira”, nos termos da Resolução 1514 da Assembleia Geral da ONU, admitir-se-ia um direito à autodeterminação externa de encontro aos Estados preexistentes.
Sendo assim, apenas a existência de um regime político, jurídico ou cultural discriminatório constituiria a ausência de autonomia em relação a um “povo colonial” com vocação à independência. Em outras palavras, o direito à independência ou à secessão abrange somente os povos privados do exercício de sua autodeterminação interna, como nos casos de discriminação racial, a exemplo da Palestina e da África do Sul. O direito à autodeterminação externa aplica-se nos casos das antigas colônias, de povos submetidos a uma ocupação militar estrangeira – como é o caso do Iraque e do Afeganistão nos dias de hoje - e de grupos sociais impedidos de ter acesso ao governo para assegurar seu desenvolvimento político, econômico, social e cultural. Nesses três casos, o povo em questão deverá gozar da autodeterminação externa porque está sendo impedido de exercer seu direito à autodeterminação interna.
O equívoco dessa concepção repousa na submissão do povo ao Estado, privando-lhe do exercício do direito humano fundamental de se autodeterminar. Na verdade, é inequívoco que a grande causa dos conflitos entre povos e Estados sempre foi o Poder: os que não o possuem, almejam tê-lo; os que o detêm, não querem perdê-lo.
Daí o exemplo atual de Estados avançados sob o ponto de vista democrático, como Canadá e Reino Unido, que onde se permitiu à população residente em determinadas regiões de seus territórios decidir pela constituição de um novo Estado ou na mantença do status quo. No Canadá, os eleitores da Província de Quebec se submeteram a dois plebiscitos, um em 1980 e outro em 1995, e em ambas a proposta de secessão não correspondeu ao desejo da maioria (G1, 2014¹); no Reino Unido, os eleitores da Escócia decidiram, em 18 de setembro de 2014, pela não independência (OPPENHEIMER, 2014). Na Europa, aliás, são inúmeros os movimentos que reivindicam a possibilidade de separar-se do Estado a que pertencem[6], como na Espanha, onde é antigo o desejo das regiões de Catalunha (BBC, 2014) e do País Basco de independência (G1, 2014²), na Bélgica, com a região de Flandres (BBC, 2012), ena Itália, com Trentino Alto-Ádige (BBC, 2012).
Ao discorrer sobre o processo de formação dos Estados a partir de Estados preexistentes, Dallari (2013, p. 64) dispõe:
Há dois processos típicos opostos, ambos igualmente usados na atualidade, que dão origem a novos Estados: o fracionamento e a união de Estados. Tem-se o fracionamento quando uma parte do território se desmembra e passa a constituir um novo Estado. Foi este o processo seguido para os territórios coloniais, ainda existentes no século XX, na maioria localizados na África, passassem à condição de unidades independentes e adquirissem o estatuto de Estados. [...]
Outro fenômeno, este menos comum, é a separação de uma parte do território de um Estado, embora integrado sem nenhuma discriminação legal, para constituir um novo Estado, o que ocorre quase sempre por meios violentos, quando um movimento armado separatista é bem sucedido, podendo também, embora seja rara a hipótese, por via pacífica[7]. (destaques no original)
Com a atual evolução do pensamento constitucionalista, que privilegia a defesa dos direitos humanos e consagra a dignidade da pessoa humana como valor sublime de um Estado de Direito, no qual a democracia se paute efetivamente no reconhecimento de que a titularidade do Poder do Estado é do povo, não há espaço para se avalizar juridicamente contratos que firmem união perpétua entre pessoas de territórios diversos na mantença de um ente abstrato, o Estado, notadamente quando tal não constituir o desejo majoritário do povo fixado em parte daquele território. E aqui uma advertência oportuna: descabe considerar a opinião dos habitantes dos demais territórios, porque tal poderia revelar uma aparente maioria em sentido oposto ao desejo majoritário daquele fixado em determinado território; a opinião do povo de todo o território de um Estado poderia ser diversa daquela expendida pelo povo fixado em parte desse território, maculando a estes o exercício da liberdade de livremente decidir pela manutenção ou não do vínculo[8]. Assim, em um Estado Democrático, é tão só a população do território que se pretende desmembrar que deve ser inquirida sobre cisão, revelando o resultado a verdadeira vontade do titular do Poder estatal, o povo.
Sobre o resguardo de direitos fundamentais das minorias, oportunas as colocações do Min. Gilmar Mendes em voto na ADI nº 4.277/DF (2011, p. 778-779):
É evidente também que aqui nós não estamos a falar apenas da falta de uma disciplina legislativa que permita o desenvolvimento de uma dada política pública. Nós estamos a falar, realmente, do reconhecimento do direito de minorias, de direitos fundamentais básicos. E, nesse ponto, não se trata de ativismo judicial, mas de cumprimento da própria essência da jurisdição constitucional.
[...]
Nesse sentido, é possível destacar, dentre outros: os fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III); os objetivos fundamentais de se construir uma sociedade livre, justa e solidária e de se promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV); a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantida a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade (art. 5º, caput); a punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI); bem como a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º) e a não exclusão de outros direitos e garantias decorrentes do regime constitucional e dos princípios por ela adotados ou incorporados por tratados internacionais (art. 5º, §2º). (destaques no original)
Destarte, as minorias nacionais devem ter resguardados seus direitos humanos fundamentais, e com maior razão quando essas minorias nacionais constituem, num determinado espaço físico contido no território nacional, maioria. Nesta hipótese, em que a minoria nacional é maioria em parte do Estado, constitui violação ao direito humano fundamental privar-lhes da liberdade de decidir pela conveniência ou não de manterem-se vinculados a esse mesmo Estado, ou a outro, ou mesmo de constituírem um novo Estado, com soberania e independência.
Daí porque uniões eternas devem perdurar por todo o tempo em que assim desejarem as partes envolvidas. A voluntariedade é indissociável da dignidade da pessoa humana e da cidadania.