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Direito e escravidão: aspectos jurídico-políticos das relações anglo-brasileiras na supressão do tráfico de escravos

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Agenda 02/08/2019 às 17:42

O Império Britânico se utilizou do poderio bélico que detinha para coercitivamente suprimir o tráfico de escravos, vez que não havia consentimento por parte dos que compartilhavam desse comércio.

Resumo: Neste trabalho analisa-se a relação entre o Império do Brasil e a Grã-Bretanha no período de 1808 a 1850 no que tange à supressão do tráfico de escravos. Isso porque o império britânico atuou como principal ator estatal no cenário internacional para suprimir o comércio triangular estabelecido entre África, América e Europa. Foi utilizado o método histórico em concorrência com a análise de fontes primárias, principalmente tratados, advindas de arquivos europeus. Foi considerado que a Grã-Bretanha atuou com grande relevância no comércio triangular, em específico no tráfico de escravos, e que o excedente econômico adquirido com esse comércio fomentou a indústria britânica e a transição do mercantilismo para o sistema capitalista. Ademais, após a consolidação industrial, um grupo alijado da tomada de decisões no cenário político inglês, os Quakers, viu no desmantelamento do tráfico a oportunidade de ascenção ao poder. Assim, esse grupo instigou calorosas discussões na defesa do trabalho livre. Isso acarretou, em 1807, a supressão do tráfico de escravos aos súditos britânicos, e corroborou com o tratado de amizade firmado entre o governo português, instalado no território brasileiro, e o britânico na interpretação nefasta do trabalho escravo e no comprometimento da abolição desse trabalho no futuro. Também favoreceu os tratados de 1815 e 1826 que proibiram o tráfico ao norte da linha do Equador e posteriormente o fim do tráfico de escravos de forma plena. A priori o tráfico cessou, porém se reestabeleceu no decorrer da década de 1830 e perdurou até a década de 1850, quando o império britânico sancionou a bill Aberdeen, sob protesto do Império do Brasil, que possibilitou que a armada inglesa inspecionasse e capturasse qualquer embarcação suspeita da realização do tráfico de cativos. Com essa ação, amparada na capacidade bélica do governo inglês, o império britânico forjou uma nova concepção doutrinária e jurisprudencial no Direito Internacional.

Palavras-chave: Direito; Escravidão; Grã-Bretanha; Império; Tráfico.


INTRODUÇÃO

O comércio atlântico de escravos entre o século XVI e XIX teve dentre seus objetivos o fornecimento de mão de obra para os trabalhos das colônias na América e Antilhas, isso possibilitou a geração de excedente econômico que foi então apropriado pelas metrópoles para fomento da revolução industrial em curso, assim, favorecendo a consolidação do sistema capitalista.

Os Estados europeus, vislumbrando as possibilidades de ganho com o comércio triangular, não pormenorizaram na aplicação de suas respectivas armadas para realizar o trato de cativos. Todavia, após a consolidação da revolução industrial e o estabelecimento do sistema capitalista, a manutenção da economia política colonial fundada majoritariamente no escravismo se mostrou inviável face à produção mecanizada. Logo, os pactos coloniais que serviram vantajosamente para as metrópoles por trezentos anos já não podiam seguir existindo vez que gerava relação obrigacional bilateral de compra e venda de produtos.

Exemplo capital disso, a produção de açúcar no império britânico, devido ao monopólio existente entre as colônias, em especial nas Antilhas, teve sua competitividade de preços afetada pela produção da Índia Oriental. A eliminação dos pactos coloniais referentes ao comércio oferecia à Grã-Bretanha a oportunidade de ampliar a oferta do açúcar para o mercado consumidor inglês.

Esse fator econômico se atrelou ao fator político interno britânico, onde a nascente elite capitalista, que obtinham suas propriedades através do próprio capital e não da exploração direta do comércio de escravos, se via alijada politicamente da tomada de decisões. Assim, pensar a produção com mão de obra assalariada não apenas favorecia a economia capitalista, recém ascendida, como também permitia a consolidação no poder de novo grupo político alinhado com os princípios e ideais capitalistas.

A estrutura jurídica para implementar essa nova política no decorrer no século XIX se amparou em três pilares, o primeiro se consolidou com a posição britânica na confecção de tratados internacionais favoráveis ao fim do tráfico, o segundo se refere à imposição direta da legislação britânica face aos demais Estados que realizavam o comércio triangular, o terceiro, com a instauração de comissões mistas de julgamento referente aos navios apresados realizando o tráfico de escravos após leis que impunham sua supressão.


GÊNESE

Expansão Ultramarina, Estado e Escravidão.

“Partimos quinta-feira, aos 3 dias de agosto de 1492, da barra de Saltes, às oito horas. Avançamos umas sessenta milhas, com grande exaltação até o pôr-do-sol, em direção ao sul” (COLOMBO, 1991, p. 30). Assim está no primeiro registro do diário de bordo do líder da expedição que mostrou, ao velho mundo, o continente que se encontrava em meio ao caminho às índias.

Financiado pelo reino espanhol, a descoberta de terras além-mar realizada pela navegação de Colombo foi a gênese da estrutura político-econômica que se consolidou nos séculos subsequentes no Ocidente. Com a expansão ultramarina, a possibilidade da aquisição de metais para fomentar os Estados europeus se expandiu, desse modo, possibilitando a consolidação política de regimes afora mundo ibérico, exempli gratia, anglo-saxões, francos, batavos, etc.

Na concepção weberiana, o “Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou – com êxito – monopolizar, nos limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio” (WEBER, 2007, p. 62). Destarte, essa concepção do Estado é articulada por Weber como o Estado racional, que floresce junto ao capitalismo moderno – pois a participação estatal regula as relações comerciais favorecendo a acumulação.

O mercantilismo, na visão weberiana, foi o começo desse Estado racional imbricado entre política e economia:

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Mercantilismo significa a transferência do empreendimento aquisitivo capitalista para a área política. Trata-se o Estado como se este se compusesse exclusivamente de empresários capitalistas; a política econômica em relação ao exterior baseia-se no princípio de passar para trás o adversário, de comprar o mais barato possível e de vender muito mais caro. O fim consiste em fortalecer o poder da direção do Estado em relação ao exterior. Mercantilismo significa, portanto, a formação de uma potência estatal moderna, e isto diretamente mediante o aumento das receitas principescas, e indiretamente mediante o aumento da capacidade tributária da população. (WEBER, 2004, p. 523).

Não obstante ao papel estatal ante ao mercantilismo, Weber apresenta as condições postas ao tempo:

Cada Estado particular tinha que concorrer pelo capital, que estava livre de estabelecer-se em qualquer lugar e lhe ditava as condições sob as quais o ajudaria a tornar-se poderoso. Da aliança forçada entre o Estado nacional e o capital nasceu a classe burguesa nacional – a burguesia no sentido moderno da palavra. É, portanto, o Estado nacional fechado que garante ao capitalismo as possibilidades de sua subsistência e, enquanto não cede lugar a um império universal, subsistirá também o capitalismo. (WEBER, 2004, p. 517).

Assim, exposta a relação entre o mercantilismo e a expansão ultramarina ocorrida no decorrer dos séculos XV e XVI, cabe compreender a ocupação territorial das terras além-mar e sua utilização com o fim da acumulação primitiva de capital. Sendo que as primeiras ocupações buscaram tanto levar população europeia às colônias quanto a utilização da mão de obra de autóctones.

Todavia, quanto aos europeus levados às colônias para trabalhos:

Mr. Peel, quien llevó con él 50.000 libras esterlinas y trescientos trabajadores, a la colonia Swan River, en Australia. Su plan consistía en que sus trabajadores realizaran sus tareas para él, al igual que lo hacían en el viejo terruño. Llegados a Australia, sin embargo, donde la tierra abundaba — abundaba demasiado —, los hombres prefirieron trabajar por cuenta propia como pequeños propietarios, en lugar de hacerlo por un salario bajo las órdenes del capitalista1. (WILLIAMS, 2003, p. 31).

Desse modo, os problemas fundamentais começam a aventar contra as propostas originárias dos Estados. No mais, a lida com os autóctones se apresentou problemática vez que as questões relacionadas à antropologia cultural foram cruciais para compreensão da possibilidade de trabalhos com mão de obra nativa, pois “[...] era como arrebatarle el sentido de su existencia […] era esclavizar no solamente sus músculos sino también su espíritu colectivo2” (WILLIAMS, 2003, p. 34).

Uma terceira via utilizada na busca por mão de obra, já desconsiderada a dos trabalhadores livres europeus e dos nativos das próprias colônias, foi a dos indentured servants3 – europeus, judicialmente condenados ou que assumiam o contrato em troca da passagem de para o novo mundo, que eram levados às colônias para trabalhos sobre regime de contrato. Entretanto, o processo de desenvolvimento das manufaturas na Europa exigia vultuoso número de pessoas para a indústria e comércio, assim, o envio de nacionais às colônias frustrava os objetivos continentais europeus.

Esses Estados que em meados do século XVII preparavam terreno para mudanças estruturais em suas políticas econômicas, pois, a acumulação de metais deveria dar lugar ao desenvolvimento da indústria nacional, com isso, promovendo a criação de empregos e incentivando as exportações, tendo, portanto, que gerar investimentos em tecnologia, além de assegurar a existência de uma grande população para que a balança entre oferta e demanda por trabalho possibilitasse o pagamento de baixos salários.

Quanto à participação dos indentured servants nos trabalhos das colônias, Eric Williams destaca que dois terços dos imigrantes que chegaram à Pensilvânia durante o século XVIII eram servants brancos, sendo que no decorrer de quatro anos chegaram, somente à Filadélfia, 25.000, os cálculos apontam que mais de 250.000 servants imigraram durante todo período colonial. Cabe ressaltar que a preferência pelo trabalho de escravos negros africanos, que seria preferido ao dos servants, no decorrer do século XVI, não

[...] fue el sentimiento de humanidad por sus compatriotas y por los hombres de su mismo color lo que dictó la preferencia del colono por el esclavo negro. No hay rastros de este sentimiento de humanidad en los registros de la época, por lo menos en lo que se refiere a las colonias de plantación y a la producción comercial4. (WILLIAMS, 2003, p.43).

Assim, preteridos os trabalhadores livres, os autóctones e os servants, os britânicos partiram à África em busca de mão de obra para colonizar o Novo Mundo e em 1680 já possuíam experiências bem-sucedidas do uso de cativos africanos em trabalhos nas Antilhas. Outrossim, a utilização de escravos evitava que se desenvolvesse manufatura capaz de concorrer com a europeia, logo, mantendo a economia colonial em bases complementares.

A preferência pelo escravo africano também se deu no que diz respeito à relação com a terra, vez que o servant fiava receber certa fração de terra ao término do contrato, ao contrário do negro africano que poderia ser mantido alijado da propriedade da terra, ademais, a diferença étnica facilitou a construção ideológica da dominação. Outrossim, o escravo africano no século XVI era mais barato que um trabalhador livre, pois o capital utilizado para comprar um cativo equivalia ao pagamento por dez anos de trabalho de um homem branco.

Desse modo, expõe-se a origem da escravidão negra africana assentada em bases econômicas, não raciais. As preferências pelo trabalho desses não foram feitas amparadas na cor da pele do trabalhador, sim nos baixos custos de seu trabalho. Outrossim, as características étnicas e genéticas dos negros africanos, tão discutidas, somente à posteriori foram levantadas como justificativa a uma resolução econômica. (WILLIAMS, 2003, p. 49).

O Comércio Triangular e o Sentido Profundo da Colonização.

Ante ao processo de utilização de escravos africanos para os trabalhos no novo mundo, uma rede comercial ampla e complexa se instaurou no Atlântico para fornecer a mão de obra necessária às colônias, assim fomentando o comércio das metrópoles, isso porque os navios que partiam da costa africana com destino à América e às Antilhas, por sua vez, já haviam passado pelo novo mundo com seus porões abarrotados de manufaturas europeias que eram vendidas antes da ida à África. Desse modo, os Estados europeus se deparavam com abundantes fontes de acumulação de capital, sendo que para a Grã-Bretanha a manutenção do comércio triangular se tornou objetivo basilar de sua política exterior.

Não obstante, antes da consolidação dessa complexa rede de comércio, cabe destacar que a as Antilhas, já em 1562, fora o destino da primeira expedição inglesa que realizou o tráfico de escravos - tal empresa confrontava as arbitragens papais que tornaram a África monopólio português. Nesse diapasão, a participação britânica no processo de exploração do tráfico de escravos advindos da África se fez de modo central, tanto que até 1698, com apoio da marinha britânica, existia um monopólio da exploração do comércio de escravos na África, sendo que o fim da exclusividade nessa exploração adveio do conflito travado com Holanda que, junto a demais Estados, advogava pela liberdade dos mares.

Todavia, o fim do monopólio britânico em mãos da Royal African Company favoreceu diretamente as demais empresas inglesas que avançaram fortemente na exploração do comércio de escravos, exemplo disso, Liverpool administrou cinco oitavos do tráfico britânico de escravos e três sétimos de todo o tráfico europeu. Assim, a participação da Grã-Bretanha no comércio de escravos se torna indelével, ademais, cabendo destacar o papel que a história atribui aos ingleses da superioridade numérica de escravos transportados ante os demais Estados.

Conforme apresentado, os cativos eram adquiridos por meio, principalmente, do escambo por mercadorias manufaturadas britânicas, e então levados às regiões de plantação para produção de açúcar, melaço, anil, algodão e outros gêneros tropicais. Esses que fomentaram a criação de polos industriais na Inglaterra, ao passo que se ampliava a consolidação da manutenção do trabalho com escravos.

Destarte, gerando outro efeito imbricado ao tráfico como o desenvolvimento das cidades com portos voltados ao mar, isso porque a construção naval fomentou o crescimento urbano e das indústrias nelas localizadas, e.g., Bristol, Liverpool e Glasgow ascenderam como os centros portuários e comerciais em tal magnitude quanto Manchester, Birmingham e Sheffield no período industrial. Outro exemplo dos favorecimentos da exploração britânica do mercado de escravos, James Watt pode desenvolver os melhoramentos na máquina a vapor graças ao capital advindo do tráfico com as Antilhas, assim, possibilitando a expansão da industrial do ferro que propiciou o surgimento das primeiras pontes e estradas de ferro.

Fernando Antonio Novais, observando as vantagens percebidas pelas metrópoles na relação com as colônias, concebeu o termo de sentido profundo da colonização para delimitar o processo de transferência do excedente econômico das colônias para as metrópoles via comércio triangular. A compreensão do movimento de colonização assentava-se no sentido da colonização de Caio Prado Júnior - onde a exploração e povoamento das terras além-mar era descrito pela expansão marítima com fins da expansão comercial europeia dentro da concepção mercantilista da época. A relação comercial que se estabelecia entre a colônia e a metrópole articulava essa última enquanto uma economia complementar àquela produtora de gêneros tropicais destinados à exportação. (PRADO JR, 2011, p. 31-32).

A concepção de Novais amplia a perspectiva de Caio Prado, com a articulação ao problema da formação do capitalismo na Europa. Sua interpretação relaciona o comércio colonial, assentado no exclusivo metropolitano, e a consolidação, através dos séculos, dessa instituição responsável pelo processamento da apropriação do excedente econômico das colônias pelas metrópoles. Logo, o sistema colonial agia como um dispositivo da acumulação primitiva do capitalismo mercantil europeu. (NOVAIS, 1989, p. 92).

Portanto, as relações coloniais advinham dessa relação de apropriação do excedente econômico, sendo a escravidão reflexo do encadeamento existente nessas relações. Assim, o tráfico de cativos justifica a opção pelo trabalho escravo, pois favorecia acumulação primitiva, e não o contrário.

Todavia, a apropriação do excedente econômico não será extremada no que tange ao comércio com as colônias, exemplo disso, o Rio de Janeiro, já no começo do século XIX, recebeu a maior parte dos escravos vindos da África concomitante ao desembarque de produtos manufaturados vindos da Europa e dos Estados Unidos em direção ao mercado interno brasileiro, mas que também eram reexportados para África na realização do escambo por cativos (ALENCASTRO, 2000, p. 3).

Direito e Escravidão.

A relação entre as leis e a escravidão se remete aos tempos babilônicos de Hamurabi, onde a escravidão se encontra disposta de forma institucionalizada no código que leva o nome de dito rei do século XVIII antes de Cristo. Onde a propriedade e os traços de personalidade jurídica do escravo são descritos através de tipificações fatídicas que abordam a realidade da época e permite a análise dos contextos sociais do império babilônico.

No texto inicial do Código de Hamurabi, que explicita o contexto histórico em que está inserido o império e sua organização social e política, existe referência ao governo de um Rei sobre oprimidos e escravos, assim, evidenciando a existência daqueles que teriam uma colocação social alijada à submissão e restrição de liberdades. A relação de propriedade é evidente, exempli gratia, tal lei dispõe que “Se alguém tomar um escravo homem ou mulher da corte para fora dos limites da cidade, e se tal escravo homem ou mulher, pertencer a um homem liberto, este alguém deve ser condenado à morte” (HAMURABI, 1994, p.03).

Nesse diapasão, o Código também dispõe sobre a possibilidade de locação e sublocação e venda de escravos, assim, restando claro o caráter do instituto da escravidão que se perpetuaria pelos séculos subsequentes. Todavia, a relação entre livres e cativos também está exemplificada na lei babilônica, e.g., “Se um escravo do estado ou o escravo de um homem livre casar com a filha de um homem livre, e nascerem filhos, o dono do escravo não terá o direito de escravizar os filhos e filhas deste” (HAMURABI, 1994, p.04), assim, restando a possibilidade de relação entre livres e escravos de forma aceitável ante a sociedade.

Essas relações, que viriam a ser fortemente questionadas no escravismo surgido no século XVII, eram possíveis uma vez que o cativo era na maioria das vezes de cidades próximas, que eram conquistadas pela guerra, assim, os traços étnicos e sociais não apresentavam variações significativas, além do que havia a possibilidade de que a situação posta fosse invertida e aqueles que eram livres se tornassem escravos daqueles cativos. Assim, até mesmo as relações de trato eram mais brandas que as da escravidão moderna, pois, com a possibilidade de mudança do status quo face às intempéries do destino, os algozes poderiam ter sua posição trocada com as vítimas.

Esses mesmos rasgos são observados na sociedade romana com o trato dispensado aos cativos, todavia, o Direito romano traz uma codificação substancialmente mais vasta e estruturada que a babilônica. Nas leis romanas é possível encontrar conceituações da escravidão, dos atributos possíveis à personalidade dos escravos, além de vasta jurisprudência discorrendo sobre a relação Estado, entes privados e escravos.

Isso se deve ao grau de desenvolvimento desse instituto na sociedade romana, isso porque o crescimento da cidade obrigou a uma elevação da produção agrícola para abastecimento da urbe e os demais artifícios para manutenção do luxo que se estabelecia no nascente império. Assim, relatos demonstram que ao fim da república e início do império era possível encontrar proprietários com mais de quatro mil escravos, momento em que surge.

[...] o trafico da escravatura, cuja invenção alguns estrangeiros se comprazem em attribuir aos portugueses. Roma converteu-se então num dos principaes mercados de escravos. Este commercio tornou-se tão lucrativo, que personagens elevadas não lhe resistiram, como o austero Gatão, que comprava escravos jovens para os vender depois com grandes interesses. (MARNOCO E SOUZA, 1910, p. 44).

Assim, face à dinâmica econômica da sociedade romana, o escravo é imbuído de personalidade jurídica em muitos momentos, e.g., na ordem econômica o cativo podia representar seu proprietário em diversos atos, porém, sendo vedada a capacidade de tonar o senhor devedor de outrem, mesmo com prévia autorização. Ademais, o escravo detinha capacidade jurídica para litigar face ao seu proprietário, como expõe MARNOCO E SOUZA, o “escravo poder estar em juízo contra o seu senhor, para obter a emancipação no caso de fideicomisso ou de resgate pelo pecúlio convencionado, e de poder accusar o seu senhor por ter supprimido um testamento que lhe dava a liberdade” (1910, p. 51), portanto, o Direito romano não alijou por completo a personalidade dos escravos submetidos à sua jurisdição.

Outro instituto seguido do Direito Romano, o Partus sequitur ventrem, princípio que legitimou a perpetuação da condição de escravo àqueles que fossem gerados por escravas, ensejou a perpetuação da condição de propriedade à prole advinda de qualquer relação. Mesmo havendo paternidade reconhecida pelo senhor, livre, devido a condição de escravo estar atrelada ao ventrem, o filho advindo seguia a condição da mãe, estando sujeito a condição de cativo. (MORRIS, 1999, p.43).

Não obstante, complementando as considerações acerca do Direito romano e a trata dos cativos, influenciados pelo estoicismo, o poder dominical sofre limitações com a lei petronia que proibiu a participação de cativos nos circos de enfrentamento de feras. MARNOCO E SOUZA expõe que “ Os imperadores justificam estas, e outras restricções impostas ao exercido do poder dominical, com o fundamento de que o interesse do Estado exige que o proprietario não abuse da cousa que lhe pertence” (1910, p. 48).

Todavia, essa perspectiva de relação entre senhores e cativos não perdurou no período moderno da escravidão que se deslancha no século XVII. As leis imperiais brasileiras reforçaram o direito dominical dos proprietários sobre os escravos, sendo que as constituições imperiais se silenciaram quanto à direitos e garantias relegados a esses. Ademais, as leis criminais do Império do Brasil legitimaram a violência e o livre arbítrio dos senhores aos quais os escravos estavam sujeitos.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGO, Wainesten. Direito e escravidão: aspectos jurídico-políticos das relações anglo-brasileiras na supressão do tráfico de escravos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5875, 2 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75291. Acesso em: 22 dez. 2024.

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