3. A EDUCAÇÃO: SERVIÇO PÚBLICO OU SERVIÇO COMPARTIDO?
A Constituição considera serviços públicos as atividades titularizadas pelo Estado e serviços de relevância pública quando exploradas por particulares, mantido, no último caso, o regime jurídico privado e as regras da livre iniciativa, sem prejuízo, naturalmente, da forte regulação sobre elas incidente, inclusive mediante a sujeição a autorizações administrativas prévias e operativas, constituindo-as como atividades econômicas privadas de interesse público.
É exemplo típico, como salientado outrora, a educação, voltada à formação do cidadão, que somente quando prestada pelo Estado é considerada serviço público. Assim, se quando prestada pelo Estado é serviço público, quando prestada por particulares é atividade econômica privada, figurando, em geral, como serviços chamados compartidos, ou seja, que devem ser garantidos e prestados pelo Estado, sem prejuízo da possibilidade de exploração pela iniciativa privada.
Destarte, a educação enquanto espécie de serviço público, ou seja, quando prestada diretamente pelo Estado, é o ponto central deste trabalho, que discute tal garantia constitucional como instrumento de poder para o cidadão, na medida em que é conhecendo os direitos – o que é inconcebível sem a instrução – que o indivíduo passa a ter aptidão para exigi-los.
Nesta senda, é através da educação que se concretiza o princípio democrático[6], previsto no art. 1º, parágrafo único, da Constituição, na medida em que é somente através da instrução que os indivíduos serão capazes de participar ativamente da vida do Estado, exigindo mudanças voltadas à melhoria das condições de vida da população, visando à igualdade de oportunidades.
Preceitua o art. 205 da Constituição:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988)
Assim é que, ao prever a Constituição, no dispositivo retro, que a educação é dever do Estado, da família e da sociedade, deixa claro que, dada a sua relevância, todos têm o dever de propiciar a efetivação dessa garantia.
Nesse contexto, não à toa, o legislador constituinte deixou de estabelecer a educação como de titularidade exclusiva do Estado. Tal providência deu-se justamente com o escopo de, franqueando aos particulares a possibilidade de prestar serviços educacionais com o fim de lucro, mais facilmente tal serviço, de caráter essencial e cuja relevância está na base da estrutura e do desenvolvimento do Estado, chegará à disposição da sociedade, satisfazendo às respectivas necessidades.
Tal é a importância da educação que, além de constar no catálogo de direitos e garantias fundamentais, consoante art. 6º, caput, da Constituição (BRASIL, 1988), por ser uma primordial ferramenta de empoderamento social e de edificação da sociedade brasileira, a própria coexistência de instituições públicas e privadas de ensino assegura a diversidade de ideias e de concepções pedagógicas, o que permite o respeito ao pluralismo político, consagrado no art. 1º, V, da Constituição. (BRASIL, 1988) (NOVELINO, 2016, p. 817)
Outrossim, partindo da premissa de que cabe ao Estado suprir qualquer omissão ou mesmo desinteresse dos particulares na prestação dos serviços essenciais à coletividade, os quais não podem sofrer solução de continuidade; e considerando, ainda, que o particular só explorará a atividade que se revelar economicamente interessante, é que é dever do Estado garantir o ensino público gratuito e de qualidade, sob pena de ser acionado judicialmente para tanto, dada a exigibilidade desse direito.
4. A EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA
A educação no Brasil e no mundo tem papel de suma importância no desenvolvimento e na formação do indivíduo. Trata-se de um direito social fundamental, previsto na Constituição, conforme arts. 6º e 205, que tem como objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.
Preceitua o art. 6º da Constituição Federal:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988) (grifo nosso)
Nesta senda, destaque-se a relevância da educação para um Estado politicamente organizado e que se intitula democrático e de direito, na medida em que, sem ela, não será possível formar cidadãos úteis à sociedade, que busquem desenvolver suas potencialidades em prol do bem comum. Da mesma sorte, sem educação, o indivíduo será incapaz de conhecer os próprios direitos e, consequentemente, de exigi-los, tornando inócuo o princípio democrático.
Ora, o art. 205, da Constituição, confere a todos o direito à educação, enaltecendo seu papel na formação da pessoa e habilitação para o exercício da cidadania, garantindo à criança, ao adolescente e ao jovem prioridade absoluta na efetivação de tal direito, de acordo com o que preceitua o art. 227, da Norma Ápice.
Tal ressalva prende-se ao fato de que é a partir da infância, da adolescência e da juventude que se mudam os rumos de um Estado, tornando-o verdadeiramente democrático e de direito, capaz de formar cidadãos conscientes de seus direitos e do papel de somar para o desenvolvimento da nação.
Sem embargo de tal ressalva, a educação básica é um direito social fundamental de todos, estando inserido nessa garantia não só o ensino fundamental, mas o ensino em todos os níveis, na medida em que o mercado de trabalho competitivo e globalizado exige profissionais cada vez mais capacitados e habilitados profissionalmente. [7]
Tal ilação decorre da simples leitura do art. 208 da Constituição, especialmente o caput e incisos II e V, que dispõem:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...]II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; V- acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um [...].
Como se vê, o dispositivo em comento, textualmente, estabelece que é garantido o acesso de todos aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo as aptidões de cada indivíduo.
Ora, se o Estado deve garantir dito acesso dos indivíduos a todos os níveis de ensino e de conhecimento, não podemos interpretar o inciso II, acima mencionado, menos abrangente, como mero programa constitucional ou promessa inconsequente do legislador constituinte, sob pena de se estabelecer uma incoerência.
Destarte, o art. 208 da Constituição estabelece garantia cogente, que, em 1988, com um desenvolvimento social e cultural ainda incipiente - sobretudo considerando que o Estado brasileiro havia saído, há menos de um lustro, da ditadura militar – poderia ser até interpretado como norma programática, de aplicabilidade diferida, mas que, nos dias atuais, com a realidade trazida pela globalização, com os avanços da tecnologia e com um mercado de trabalho cada vez mais competitivo é impensável analisar a educação como garantia constitucional sem abranger todos os seus níveis.
Outrossim, dada a natureza fundamental da educação, deve esta ser reputada como conteúdo da dignidade da pessoa humana, já que sem educação não há como se obterem as condições mínimas de existência digna, nem a efetivação do princípio democrático, que se dá seja com a participação do indivíduo nas decisões do Estado, através do voto consciente, seja através da defesa de ideias, da inserção e participação do indivíduo em organizações não governamentais que prestam relevantes serviços à coletividade e que, por estarem mais próximas dos cidadãos, conhecendo os anseios da sociedade, fazem operar grandes transformações, notadamente quando atua no auxílio do poder público, até mesmo sugerindo a adoção de políticas públicas prioritárias.
Nesse contexto, a educação está inserida no mínimo existencial, no dizer de BARCELLOS (2011, p. 302), que leciona:
[...] Na linha do que se identificou no exame sistemático da própria Carta de 1988, o ‘mínimo existencial’ que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação básica (assumindo-se a nova nomenclatura constitucional), a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana a que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário. [...]
Nesse passo, verifica-se que a Constituição dera enorme relevância à cultura, tomado esse termo em sentido abrangente da formação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do espírito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. (SILVA, p. 314)
Tal assertiva traz à baila à ideia de identidade nacional, de corporativismo, estes que são determinantes ao sentimento de coletividade, alimentando em cada indivíduo a consciência do verdadeiro sentido e alcance da noção de Estado Democrático e de Direito, e, notadamente, a noção de cidadania, concebida sob três elementos essenciais nucleares, ou seja, o civil, o político e o social, segundo as ideias de Marshall, que trouxe a primeira concepção de cidadania e que serviu de base para todos os estudos sérios nessa seara até os dias de hoje. (MARSHALL, 1967, pp. 63 e 64)[8]
O elemento civil é composto pelos direitos necessários à liberdade individual - liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, de pensamento e de fé -; pelo direito de propriedade; pelo direito de concluir contratos válidos; e pelo direito à justiça. As instituições que asseguram tais direitos são os Tribunais de Justiça. (MARSHALL, 1967, pp. 63 e 64)
O elemento político, por sua vez, é composto pelo direito de participar do exercício do poder político, figurando o parlamento e os conselhos de governo local como as instituições que o assegura. (MARSHALL, 1967, pp. 63 e 64)
Outrossim, o elemento social da cidadania é composto pelo direito a um mínimo de bem-estar econômico e de segurança; pelo direito de participar plenamente da herança social; e pelo direito de ter uma vida compatível com a de um ser civilizado, de acordo com padrões sociais. As instituições que correspondem a esse elemento, assegurando-o, são o sistema educacional e os serviços sociais. (MARSHALL, 1967)
Ora, segundo as ideias de MARSHALL, na realidade inglesa, num dado momento da história, quando ocorreu a separação das instituições que garantem a cidadania, cada um dos elementos respectivos seguiram em separado, só voltando a caminhar juntos em meados do século XX. Devido ao período de divórcio dos elementos, é possível atribuir a cada um deles uma época de formação: direitos civis, séc. XVIII; direitos políticos, séc. XIX; e direitos sociais, séc. XX.
O período de formação dos direitos civis, na Inglaterra, dá-se, precisamente, da Revolução Francesa à primeira Lei de Reforma (1832). Ao final desse período, quando os direitos políticos fizeram sua primeira tentativa infantil de andar, em 1832, os direitos civis já haviam sido incorporados pelo homem, tendo, na maioria dos fundamentos, os mesmos contornos que tinham em meados do século XX, época da conferência. O avanço dos direitos civis deveu-se, em certa medida, ao trabalho dos tribunais em defesa da liberdade individual.
Os direitos políticos começaram a se formar no século XIX, quando os direitos civis já haviam adquirido substância suficiente. E já no início, não correspondia à criação de novos direitos, já desfrutados por todos, mas à concessão de direitos antigos para novas camadas da população.
No século XVIII, não havia uma distribuição eficaz dos direitos políticos. A Lei de 1832 fizera pouco para corrigir esse defeito, porque os direitos políticos ainda não eram franqueados a todos, sendo o direito a voto monopólio de grupos abertos com base econômica suficiente (capitalismo).
Somente no século XX, com a Lei de 1918, é que se adotou, na Inglaterra, o sufrágio universal, mudando a base dos direitos políticos de substância econômica para o status pessoal.
A Lei de 1918 não estabeleceu a igualdade política de todos em termos de direito de cidadania, restando resquício de desigualdade com base em critério econômico (voto plural passa a ser duplo), o que persistiu até 1949.
A fonte original dos direitos sociais foi a adesão das comunidades locais e associações funcionais, fonte substituída pela Lei dos Pobres (Poor Law), que introduziu um sistema de regulação de salários, sistema este que foi se deteriorando no século XVIII, não só porque a mudança industrial o tornara administrativamente impossível, como também porque a regulação salarial violava o princípio individualista do contrato de trabalho livre.
A Lei dos Pobres (Poor Law) garantiu assistência aos pobres, mas representava, na Inglaterra da época, a destituição do status de cidadão. O indivíduo era estigmatizado, já que, como alternativa àquele que, por idade ou doença, havia desistido da luta, era prestada assistência com a condição de que o assistido deixasse de ser cidadão em qualquer sentido verdadeiro da palavra.
No séc. XIX, já quando consolidados os direitos civis e com os direitos políticos ganhando fôlego suficiente, na Inglaterra, é que se colocam os direitos sociais, como sendo os voltados à educação e à assistência social.
Nesse passo, não é por acaso que a Inglaterra é um Estado evoluído social e democraticamente, uma vez que, já no século XIX, a educação infantil era preconizada como tendo influência direta sobre a cidadania, dado o propósito de moldar o adulto enquanto criança, sendo requisito necessário à liberdade civil e ao exercício dos direitos políticos, que consistem no direito de participar ativamente das decisões do Estado, no direito de o indivíduo ser ouvido pela representação política.
Assim, já no séc. XIX, na Inglaterra, a educação primária não só era livre como obrigatória, sendo cada vez mais reconhecido que a democracia necessitava de um eleitorado educado e que a higidez social dependia da civilização.
Na Inglaterra, encarada esta como berço da Revolução Industrial e sempre diretamente envolvida nas revoluções liberais europeias, é natural se verificar uma maior movimentação no sentido de desenvolvimento dos direitos civis, políticos e sociais, já que o senso de cidadania fora desenvolvido no país progressiva e continuamente no decorrer da história e já em 1949, ano em que foram lançadas as ideias de Marshall, encontrava-se bastante consolidado.
Já no Brasil, cujo povo fora, preponderantemente, mero espectador, não tendo participação determinante sequer na Independência, ocorrida em 1822, sempre prevalecera o poderio dos senhores de terra e das elites rurais.
No caso brasileiro, a ordem de formação dos elementos componentes da cidadania é invertida. Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão de direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular.
Por sua vez, quanto aos direitos políticos, a maior expansão do direito a voto deu-se em período ditatorial. Já no que tange aos direitos civis - base da sequência proposta por Marshall e que, na Inglaterra, abriram as portas para os demais elementos da cidadania - são inacessíveis à maioria. (CARVALHO, 2008, p. 219-220)
Atualmente, a tendência da cidadania é que caminhe no sentido da redução das desigualdades sociais, tendo a educação papel primordial nesse desiderato, na medida em que viabilizará a formação de cidadãos conscientes dos seus direitos civis, aptos a exercer os direitos políticos e que cobrem respeito aos direitos sociais.
Outrossim, apesar da inversão da ordem dos direitos no Brasil (tendo como referência a ordem proposta de Thomas Humphrey Marshall), é com o exercício continuado da democracia e da cidadania, dando a educação a importância que merece, é que será possível ampliar o gozo dos direitos civis, abrindo espaço aos demais.
Ora, somente a formação do indivíduo é capaz de estabelecer a mudança necessária de atitude, de mentalidade, de modo que as políticas assistenciais não sirvam de instrumento de estagnação da sociedade, mas sim de um caminho à busca gradativa da efetivação da garantia da igualdade de oportunidades.
Nesse passo, fazendo um comparativo com o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra, em que aqueles que necessitassem das políticas assistenciais eram estigmatizados, como se houvessem desistido da luta, no Brasil, sem negar os déficits históricos que vitimaram algumas etnias e grupos sociais e daí porque as ações afirmativas são um imperativo, é preciso que o Estado volte a erigir a educação como principal política pública. O império da educação precisa ser estabelecido, sob pena de continuarmos a viver em uma sociedade em que cidadãos têm ferramentas de mudança de realidade, mas estão fadados aos estamentos de sempre por falta de aptidão para operar essas mesmas ferramentas.
Às camadas mais favorecidas, vimos o monopólio do conhecimento, a manipulação das massas com propagação de ideologias top down e que cada vez mais fogem da perspectiva de pluralismo.
O princípio da liberdade de ensino, que abrange liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, consagrado no art. 206, II, da Constituição (BRASIL, 1988), está atrelado diretamente ao pluralismo político consagrado este como fundamento da República Federativa do Brasil, consoante disposto no art. 1º, V, da Constituição (BRASIL, 1988).
Assim é que sem educação e educação de qualidade, não se pode falar em igualdade de oportunidades, em cidadania e tampouco em Estado Democrático de Direito, mas apenas em uma ordem jurídica que destoa da realidade à qual se destina.
Em outras palavras, somente se pode falar na promoção dos direitos fundamentais e na realização da dignidade da pessoa humana com a implantação de políticas públicas que concretizem a Constituição, garantindo a “maior eficácia possível” de suas normas (HESSE, 1991, p. 27). O caminho para tais objetivos, sem sombra de dúvidas, é a educação.