RESUMO. O presente ensaio tem por finalidade precípua analisar, sem caráter exauriente, os efeitos secundários da sentença penal condenatória, criados pela recente Lei nº 13.804, de 2019, que acrescentou o artigo 278-A no Código de Trânsito Nacional, para permitir a cassação do documento de habilitação ou proibição de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos, do condutor condenado pela prática dos crimes de receptação, descaminho, contrabando, previstos nos arts. 180, 334 e 334-A do Código Penal.
Palavras-chave. Direito penal. Lei nº 13.804/2019. Crimes. Receptação. Descaminho. Contrabando. CNH. Proibição. Cassação. Configuração.
A ninguém é dado o direito de não cumprir a lei simplesmente alegando o seu desconhecimento.
Tanto isso é verdade que o artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil preceitua que ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece, podendo tão somente o desconhecimento da lei atuar como circunstância genérica atenuante, artigo 65, II, eis que a existência de grande número de leis penais que tutelam bens e interesses, por vezes, pode dá margem ao seu desconhecimento, que não é suficiente para excluir a culpabilidade do agente, mas pode servir de juízo de censurabilidade mais brando, sendo este o sentido do alcance da atenuante do inciso II do art. 65 do Código Penal, quando da apreciação em torno da aplicação da pena intermediária, dentro do sistema trifásico de HUNGRIA.
E tudo isso faz sentido, inclusive, com previsão legal, e assim, neste ensaio, pretende-se abordar a recente lei nº 13.804, de 2019, que se encontra em pleno vigor no Brasil para não municiar algum desaviado de que não conhecia a lei.
Sabe-se que a principal consequência da sentença penal condenatória é a imposição de uma sanção penal, segundo as espécies de penas previstas no artigo 32 do Código Penal, podendo ser pena privativa de liberdade, restritiva e diretos ou simplesmente pena de multa.
Assim, além desse efeito imediato e principal, tem-se como efeito genérico e automático de toda sentença penal condenatória, o fato de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime e a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito e do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.
Além desses efeitos, existem ainda aqueles ditos específicos e não automáticos, que segundo artigo 92 do Código Penal, pode a sentença penal condenatória ter como efeitos a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública ou quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
Pode ainda a sentença penal condenatória determinar a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente ou contra tutelado ou curatelado.
E, por fim, a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso.
Neste último caso, pretende-se apresentar as inovações da lei nº 13.804, em vigor no Brasil desde o dia 11 de janeiro de 2019.
Nesse desiderato, tem-se que a Lei em comento dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao contrabando, ao descaminho, ao furto, ao roubo e à receptação, alterando a o Código de Trânsito Brasileiro e Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977.
O recente comando normativo acrescentou o artigo 278-A no Código de Trânsito Nacional, para disciplinar que aquele condutor que se utilize de veículo para a prática do crime de receptação, descaminho, contrabando, previstos nos arts. 180, 334 e 334-A do Código Penal, condenado por um desses crimes em decisão judicial transitada em julgado, terá cassado seu documento de habilitação ou será proibido de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos.
O condutor condenado poderá requerer sua reabilitação, submetendo-se a todos os exames necessários à habilitação, na forma do Código de Trânsito.
No caso do condutor preso em flagrante na prática dos crimes relacionados, poderá o juiz, em qualquer fase da investigação ou da ação penal, se houver necessidade para a garantia da ordem pública, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção.
Nos termos do § 1 o do art. 66 da Constituição, houve o veto dos artigos 3º, 4º e 5º do Projeto de Lei nº 1.530, de 2015, por inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público.
O artigo 3º previa que na parte interna dos locais em que se vendem cigarros e bebidas alcoólicas deverá ser afixada advertência escrita, de forma legível e ostensiva, com os seguintes dizeres: ‘É crime vender cigarros e bebidas de origem ilícita. Denuncie!
Por sua vez, o artigo 4º previa que o caput do art. 10 da Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso XLIII:
XLIII - deixar de afixar advertência escrita, de forma legível e ostensiva, de que é crime vender cigarros e bebidas contrabandeadas e/ou falsificadas.
Pena - advertência, interdição, cancelamento da autorização de funcionamento e/ou multa.
Já o artigo 5º previa que a pessoa jurídica que transportar, distribuir, armazenar ou comercializar produtos oriundos de furto, roubo, descaminho ou contrabando ou produtos falsificados perderá sua inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), assegurados o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo.
O parágrafo único determinava que ficava vedada a concessão de novo registro no CNPJ, pelo prazo de 1 (um) a 5 (cinco) anos, à pessoa jurídica que tenha sócios ou administradores em comum com aquela pessoa jurídica que tiver perdido sua inscrição no CNPJ na forma do caput deste artigo.
Importante frisar que, muito embora a lei 13.804, de 2019, se refira, na sua ementa, que a lei dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao contrabando, ao descaminho, ao furto, ao roubo e à receptação, o artigo 278-A do Código de Trânsito expressamente se refere tão somente aos crimes de receptação, contrabando e descaminho, como efeitos da condenação a cassado do documento de habilitação ou será proibido de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos.
Insta salientar que os crimes de furto e roubo a que se refere o texto era previsto no artigo 5º do Projeto de Lei nº 1. 530/2015, que traria moralidades de penalidades para pessoas jurídicas, mas que foi vetado, conforme exposição em epígrafe.
As razões do veto para os artigos 3º e 4º, foram assim expostos:
“A sobrecarga de deveres ao particular na condução da empresa pode redundar um risco ao livre exercício da atividade econômica, princípios consagrados nos artigos 170 e 171 da Constituição. Ademais, sob o prisma dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, os dispositivos estabelecem obrigação que não se mostra coerente com a lógica de desoneração que deve reger a relação do Estado para com os cidadãos. ”
Por sua vez, as razões do veto do artigo 5º consistem em:
“O dispositivo possibilita a vedação de nova concessão ou a perda da inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) à pessoa jurídica de forma geral e objetiva sem a observação de critérios que considerem as hipóteses de acordo com a gravidade da infração, os antecedentes e condição econômica do infrator. Desta forma, tal propositura afigura-se dissociada dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e individualização da pena preconizados pelo sistema jurídico nacional. ”
DAS HIPÓTESES DE CABIMENTO
As hipóteses de cabimento de cassação do documento de habilitação ou proibição de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos, são as condenações por crimes de receptação, descaminho e contrabando, respectivamente, previstos no art. 180, 334 e 334-A do Código Penal brasileiro.
I - Receptação.
O crime de receptação encontra-se previsto no artigo 180 e 180-A do Código Penal.
Desta feita, o crime de receptação pode ser classificado como receptação comum prevista no tipo fundamental, consiste em adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte, com pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa.
O § 1º disciplina a receptação qualificada, consistente em adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime, com pena de reclusão, de três a oito anos, e multa.
Existe também a receptação impropriamente chamada pela doutrina de culposa, prevista no § 3º, punindo o autor que adquire ou recebe coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso, punindo com de detenção, de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas.
Por fim, o artigo 180-A, instituído pela lei nº 13.330, de 2016, cria a receptação de animais, punindo a conduta de adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime, com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Discorrendo sobre o delito, o festejado professor GRECO[1], apresenta importante apontamentos acerca da classificação do delito:
“[...] podemos visualizar no caput do art. 180 do Código Penal duas espécies de receptação, a saber: Própria; Imprópria.
Diz própria a receptação quando a conduta do agente se amolda a um dos comportamentos previstos na primeira parte do caput do art. 180 do Código Penal, vale dizer, quando o agente adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime. Merece destacar as condutas de transportar e conduzir foram inseridas no caput do art. 180 do Código Penal pela Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996.
Denomina-se imprópria a receptação quando o agente peva a efeito o comportamento previsto na segunda parte do caput do art. 180 do Código Penal, ou seja, quando influi para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. Tanto na receptação própria quanto na imprópria, seja, por exemplo, adquirindo a coisa ou, mesmo, influenciando para que terceiro a adquira, o agente deve saber ser a res produto de crime. Inicialmente, tendo em vista a determinação legal, não poderá ser considerado objeto material da receptação coisa que seja produto de contravenção penal, pois a lei exige a prática de um crime anterior[...]”
II – Descaminho e Contrabando.
O crime de descaminho é previsto no artigo 334 do Código penal, consistente em iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria, com pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Já o ilícito penal de contrabando, art. 334-A, consiste em importar ou exportar mercadoria proibida, com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
MASSON, com brilhantismo de sempre, ensina que:
“[...] na redação original do Código Penal, o art. 334 contemplava dois crimes: contrabando e descaminho. Com a entrada em vigor da Lei 13.008/2014, tais delitos foram separados em tipos penais diversos. O descaminho permaneceu no art. 334, e o contrabando, cuja pena foi aumentada, acabou deslocado para o novo art. 334-A. No descaminho, o legislador mais uma vez excepcionou a teoria unitária ou monista no tocante ao concurso de pessoas, adotada como regra geral no art. 29, caput, do Código Penal.248 Com efeito, o funcionário público que facilita o descaminho responde pelo crime mais grave, de natureza funcional, tipificado no art. 318 do Código Penal, justamente em razão da sua peculiar condição, a qual torna mais reprovável a conduta por ele praticada. De outra banda, a pessoa (particular ou mesmo um outro funcionário público) que realiza o descaminho incide no delito menos grave e comum definido no art. 334 do Código Penal, nada obstante ambos concorram para um só resultado. O descaminho, também conhecido como “contrabando impróprio”, é a fraude utilizada para iludir, total ou parcialmente, o pagamento de impostos de importação ou exportação. Essa mercadoria pode ser inclusive de fabricação nacional, desde que tenha procedência estrangeira, como na hipótese de um automóvel fabricado no Brasil, para exportação, e posteriormente aqui introduzido sem o pagamento dos tributos respectivos. É importante destacar que o imposto pelo consumo de mercadoria, contido na parte final do caput do art. 334 do Código Penal e vigente à época em que o Código Penal entrou em vigor, foi substituído pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). E a sonegação desse tributo acarreta a configuração do crime tipificado no art. 1.º da Lei 8.137/1990, em face do princípio da especialidade, pois nesse caso não há entrada ou saída de mercadoria do território nacional[...]”
Os dois crimes em apreço são de competência da Justiça Federal, pois ofendem interesses da União. Enquadram-se, portanto, na regra prevista no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.
Nesse sentido, assim dispõe a Súmula nº 151 do Superior Tribunal de Justiça:
“A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens”.
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se percebe, claramente, as hipóteses de cabimento para que o condutor tenha cassado o seu documento de habilitação ou seja proibido de obter a habilitação para dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos, é a condenação por sentença penal condenatória, por quaisquer dos crimes de receptação, descaminho ou contrabando.
Muito embora a nova lei anuncie, na sua ementa, as mesmas consequências para as condenações de crimes de furto e roubo, o artigo 278-A do Código de Trânsito não contemplou essas duas hipóteses, não se permitindo estender os efeitos secundários para esses casos, que somente foram previstos para pessoa jurídica que viesse a transportar, distribuir, armazenar ou comercializar produtos oriundos de furto, roubo, descaminho ou contrabando ou produtos falsificados, que perderia a sua inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), assegurados o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo.
Importante salientar que o artigo 5º do projeto de lei nº 1.530/2015 foi vetado pelo Presidente da República.
Arremata-se, afirmando, numa visão apriorística e não estanque, que a nova Lei nº 13.804, de 2019, criou mais uma hipótese de cassação do documento de habilitação ou proibição de dirigir veículo automotor pelo prazo de 5 (cinco) anos, efeito genérico e automático da sentença penal condenatória com trânsito em julgado, muito embora existam os efeitos secundários específicos, não automáticos, como por exemplo, a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso, a teor do artigo 92, III, do Código Penal, que não podem ser confundidos com os efeitos criados pela novíssima lei em apreço.
Ainda em sede de prisão em flagrante do condutor na prática dos crimes relacionados, poderá o juiz, em qualquer fase da investigação ou da ação penal, se houver necessidade para a garantia da ordem pública, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção.
Soma-se, doravante, às hipóteses previstas no artigo 263 do Código de Trânsito Nacional, Lei nº 9.503/97, quais sejam:
Art. 263. A cassação do documento de habilitação dar-se-á:
I - quando, suspenso o direito de dirigir, o infrator conduzir qualquer veículo;
II - no caso de reincidência, no prazo de doze meses, das infrações previstas no inciso III do art. 162 e nos arts. 163, 164, 165, 173, 174 e 175;
III - quando condenado judicialmente por delito de trânsito, observado o disposto no art. 160.
Assim, o novo comando normativo cria norma rígida para prevenir e reprimir que condutor de veículos automotores se utilizam do veículo para a prática de crimes de receptação, descaminho e contrabando, na melhor forma da Lei nº 13.804, de 2019, sendo mais um instrumento para proteger os interesses da sociedade.
Por derradeiro, tem-se a esperança que um dia a função de produtor de normas cogentes do legislador será definitivamente extinta, mesmo na dinamicidade de uma sociedade que evolui feito raio de luz, com a velocidade do pensamento, por conta da existência de uma sociedade consciente que deixará de engendrar meios de enganar o próximo, em face da fidelidade espontânea de todos os cidadãos no cumprimento dos preceitos sociais, que passarão a usar da sua capacidade intelectiva e volitiva tão somente criar oportunidades de amar o próximo com espírito de humanismo, solidariedade e fraternidade, usando-se da sinergia de todos, acolhendo as forças do mundo. E não me chamem de sonhador, pois mesmo que o fosse, isso indubitavelmente, costuma alimentar a alma de quem acredita em dias melhores, e mesmo que os sonhos invadissem abruptamente e ungissem as minhas entranhas, certamente não seria a única criatura contaminada pelas quimeras de um futuro melhor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume II, Artigos 121 a 212 do Código Penal. 14ª edição. Editora Ímpetus. Niteroi. Rio de Janeiro. 2017.
MASSON, Cleber Direito penal: parte especial arts. 213 a 359-h / Cleber Masson. - 8. ed. - São Paulo: Forense, 2018.
Nota
[1] GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Volume II, Artigos 121 a 212 do Código Penal. 14ª edição. Editora Ímpetus. Niteroi. Rio de Janeiro. 2017.