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Procedimento administrativo de apuração da responsabilidade das pessoas jurídicas

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Agenda 21/11/2019 às 14:06

A adoção da proposta de procedimento de apuração de responsabilidade apresentado, com base na existência de um microssistema de processos administrativo, viabilizaria a uniformização deste procedimento, a efetiva punição das pessoas jurídicas e diminuiria a anulação das penalidades administrativas pelo Poder Judiciário.

Resumo: É crescente a utilização da personalidade jurídica para prática de atos prejudiciais ao erário público e atentatórios aos princípios de Direito Administrativo. A aparente ausência de legislação própria a regular o procedimento administrativo de apuração de responsabilidade das pessoas jurídicas tem possibilitado a impunidade destas, de seus sócios e administradores. Com o objetivo de resolver este suposto problema legislativo, recentemente, foi promulgada a Lei nº. 12.846/13, que frustrou esta expectativa. Por isso, este estudo propõe, a partir da utilização da técnica argumentativa da analogia em direito, a apresentação de um microssistema de procedimento administrativo hábil a possibilitar a responsabilização de pessoas jurídicas decorrente das Leis ns. 8.666/93, 8.443/92 e 10.520/02.

Palavras-Chaves: Procedimento. Administração. Responsabilidade. Impunidade. Prevenção. Punição. Microssistema. Analogia.


INTRODUÇÃO

A pessoa jurídica tem sido frequentemente utilizada para prática de atos prejudiciais ao erário e em violação aos princípios de Direito Administrativo (art. 37, caput, da CF/88, art. 2º, caput, da Lei nº. 9.784/99 e art. 3º, da Lei nº. 8.666/93). Este manejo corrupto e de má-fé já é tão gravoso quanto os danos causados à Administração, diretamente, pelas pessoas naturais e agentes públicos que atuam com este mesmo intuito degradante.

A utilização da personalidade jurídica para prática dos mencionados atos danosos à Administração e ao erário público só tem aumentado no Brasil. Eis o motivo que ensejou a promulgação da Lei nº. 12.846/13, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira.

Ocorre que ainda não se sabe se esse estatuto legal terá a eficácia preventiva e repressiva dele esperada, nem se os casos de responsabilização de que trata abrangem todas as hipóteses de atos prejudiciais à Administração Pública perpetrados pelas pessoas jurídicas, bem como se os procedimentos que dispõe são mais adequados que os preexistentes. 

O que se sabe é que a promulgação da Lei nº. 12.846/13 não unificou, na esfera administrativa, as penalidades que podem ser aplicadas às pessoas jurídicas, nem o procedimento para tanto. Entretanto, aparentemente, reconheceu a existência de um microssistema administrativo de responsabilização da pessoa jurídica, ao fazer menção ao não prejuízo dos procedimentos sancionatórios previstos na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº. 8.666/93), na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº. 8.429/92) e na Lei Antitruste (Lei nº. 12.529/11) [2].  

Destarte, o fato de a Lei nº. 12.846/13 não ter universalizado o procedimento administrativo de aplicação de penalidade das pessoas jurídicas enseja a maturação e apresentação de um procedimento administrativo que se aplique às sanções previstas na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº. 8.666/93) - diploma legal mais utilizado para reger os prélios licitatórios e os contratos administrativos -, bem como na Lei Orgânica do Tribunal de Contas (Lei nº. 8.443/92) e na Lei dos Pregões Eletrônicos (Lei nº. 10.520/02).

A ausência de um procedimento administrativo geral para a responsabilização da pessoa jurídica, na hipótese de aplicação das sanções previstas nos referidos estatutos legais, diminui e desestimula a instauração de processo administrativo para apenação de pessoa jurídicas, além de fazer com que os processos instaurados e concluídos sejam cada vez mais questionados e desconstituídos em juízo.  

Assim, prolifera-se pelo país uma cultura de fraude e simulações em licitações, além de descumprimento de contratos firmados com a Administração e o estimulo à criação de pessoas jurídicas apenas para promover práticas ilícitas, ilegais ou abusivas. Isso porque, em muitos casos, os sócios e os administradores da pessoa jurídica têm como único e exclusivo escopo obterem vantagens indevidas e se valerem da personalidade jurídica como forma de proteção de seus patrimônios. Destarte, instaurou-se, no Brasil, uma cultura de impunidade e enriquecimento ilícito.

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Não obstante, o que ocorre no Brasil não é, propriamente, a carência de legislação, como se verá vastamente neste trabalho, mas a falta da devida aplicação desta. Ora, o que se vislumbra, portanto, é a necessidade de os diplomas legais serem mais bem empregados, o que se demonstrará viável por meio do manejo da argumentação jurídica e, sobretudo, em sua forma especial, a analogia. O emprego desta possibilitará se falar em um microssistema de responsabilização da pessoa jurídica e de um procedimento administrativo aplicável a este, nos casos de aplicação da Lei nº. 8.666/93, da Lei nº. 8.443/92 e da Lei nº. 10.520/02.

O microssistema de responsabilização das pessoas jurídicas e o procedimento administrativo dele decorrente ainda não têm o devido reconhecimento e aplicação. Por isso a importância desse estudo ao apontar a legislação vigente a ser empregada, de modo a viabilizar o imediato combate aos atos lesivos à Administração Pública perpetrados com intermédio das pessoas jurídicas, possibilitando a redução da impunidade.

O estudo é atual, pois volta à baila com a promulgação da Lei de Responsabilização da Pessoa Jurídica por Atos Praticados contra a Administração Pública Nacional e Estrangeira (Lei nº.12.529/11). Além disso, os índices de corrupção praticados por meio das pessoas jurídicas contra o erário público e os princípios da Administração Pública mostram-se muito elevados e em exponencial crescimento[3].

A falta de punição e difusão cada vez maior dessas práticas dão o tom da impunidade. Assim, impende à imediata e severa repressão, além da busca e demonstração dos meios de prevenção.

A necessidade de um procedimento administrativo de apuração da responsabilidade de pessoas jurídicas.

O procedimento administrativo brasileiro não tem suas disposições legais disciplinadas, predominantemente, em um único código, como ocorre com o Processo Civil (Lei nº. 5.869/73) e Processo Penal (Decreto-Lei nº. 3.689/41), por exemplo. Os dispositivos legais de processo administrativo são esparsos, ou seja, estão presentes em diferentes diplomas, como: Lei nº. 9.784/99, Lei nº. 8.443/92, Lei nº 8.429/92, Lei nº. 8.666/93, Lei nº. 10.520/02, Lei nº. 12.529/11, Lei nº. 12.846/13, bem como na própria Constituição Federal de 1988.

Por esse motivo, este estudo defende a existência de um microssistema de processo administrativo, e a possibilidade de sua aplicação a partir da argumentação jurídica da analogia, sobretudo pela necessidade de uniformizar o procedimento de responsabilização para aplicação das penalidades previstas na Lei nº. 8.666/93, na Lei nº. 8.443/92, e na Lei nº. 10.520/02.

No entanto, este trabalho, em virtude de sua extensão limitada, não se presta a demonstrar todas as soluções a lacunas legislativas e aporias legais que a teoria do microssistema poderia trazer ao Direito Administrativo e ao processo administrativo.

A concentração de esforços deste estudo está na tentativa de apresentar uma solução geral para a ausência de um procedimento administrativo de aplicação de penalidades em pessoas jurídicas, em virtude do descumprimento de relações pré-contratuais, contratuais e pós-contratuais com a Administração Pública, em especial, quanto à responsabilização decorrente da Lei nº. 8.666/93, da Lei nº. 8.443/92, e da Lei nº. 10.520/02.

Assim, exemplificativamente, faz-se mister apresentar algumas das hipóteses de atos prejudiciais à Administração Pública, que se busca reprimir e prevenir com o procedimento administrativo proposto, senão vejamos: 1) práticas pré-contratuais: apresentação de declaração ou de documentos falsos em licitação ou tentativa de frustrar a realização ou o resultado desta, bem como a recusa na celebração do contrato após a participação em certame licitatório ou, ainda, o não preenchimento dos requisitos de habilitação no momento da assinatura do contrato; 2) contratuais: qualquer descumprimento de cláusula contratual que gere prejuízo ao órgão ou entidade contratante, ou então infrinja aos princípios que regem à Administração Pública (art. 37, caput, da CF/88, art. 2º, caput, da Lei nº. 9.784/99 e art. 3º, da Lei nº. 8.666/93), e 3) pós-contratuais: descumprimento da garantia de produtos e serviços e do dever de corrigir e reparar. 

As penalidades aplicáveis a essas práticas prejudiciais a Administração Pública, que decorrem do procedimento administrativo objeto deste estudo, são as seguintes: 1) advertência, 2) multa, 3) suspensão do direito de licitar e contratar com o órgão público, e 4) inidoneidade para licitar e contratar com a Administração Pública, estas previstas com suas nuances, basicamente, na Lei nº. 8.443/92, na Lei nº. 8.666/93 e na Lei nº. 10.520/02.

Como se pode observar dos diplomas legais mencionados, o problema que se está a aventar não é a ausência de penalidades, mas a falta de procedimento administrativo próprio para a responsabilização das pessoas jurídicas e consequente aplicação dessas sanções. Algo que parece poder ser solucionado por meio da devida aplicação da forma especial de argumentação jurídica chamada analogia.

Ocorre que, até então, a tentativa de sanar o problema da ausência de previsão legal de procedimento administrativo próprio a regular a aplicação de penalidades em pessoas jurídicas não foi tratado concomitantemente no âmbito da teoria do processo e da argumentação em direito, mas sim, como restará demonstrado, fez parte, recentemente, de um esforço legiferante frustrado. Isso porque o Projeto de Lei nº. 6.826/2010 parecia ter este objetivo. No entanto, a Lei nº. 12.846/13, dele resultante, não tratou do procedimento administrativo referente às sanções previstas na legislação que lhe precede.


CONCEITOS BÁSICOS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Não raro, ouvem-se afirmações de que direito é argumentação, ou melhor, argumentação jurídica. Essa afirmação é falsa. O direito e a argumentação jurídica, de fato, têm pontos de intersecção, mas são institutos diversos.

Alguns conceitos propostos para Direito, como o de Norberto Bobbio e Herbert Hart, realmente possibilitam a sua identificação, quase que irrestrita, com a argumentação jurídica. Os ilustres doutrinadores pontificam, respectivamente, que Direito:

pode ser entendido como um conjunto de discursos, de comunicações linguísticas; discursos dos legisladores (as leis e os códigos), discursos dos juízes (as sentenças), discursos das pessoas privadas (os testamentos e os contratos realizados). Acrescente-se, ainda, que os advogados também produzem discursos, assim como os professores de direito, etc[4] um fenômeno cultural constituído pela linguagem. Por isso, é que Hart, desde a linguística, pretende privilegiar o uso da linguagem normativa como o segredo para que se compreenda a normatividade do direito[5]

Os conceitos abordados por Bobbio e Hart realmente se inserem no Direito e também na argumentação jurídica, mas ambos não se restringem a esses e não são hábeis a defini-los isoladamente.

O conceito de Direito é amplamente discutido na filosofia do direito, sem que se tenha conseguido alcançar um consenso sobre este desde o período da Antiguidade Clássica até os dias de hoje. A concepção defendida por Hans Kelsen[6], por exemplo, nada tem com a acepção de direito como linguagem ou como argumentação jurídica, limitando-se a tratar o Direito como um sistema coativo de normas que regulam a conduta humana.

Outros tantos conceitos atribuídos ao Direito também não abordam a argumentação jurídica, a exemplo daquele proposto por Paulo Dourado de Gusmão, segundo o qual o Direito é um "conjunto de normas executáveis coercitivamente, reconhecidas ou estabelecidas e aplicadas por órgãos institucionalizados[7]". O conceito apresentado por Wilson Campos de Souza Batalha, por sua vez, afirma que Direito é um

conjunto de comandos, disciplinando a vida externa e relacional dos homens, bilaterais, imperativo-atributiva, dotado de validade, eficácia e coercibilidade, que tem o sentido de realizar os valores da justiça, segurança e bem comum, em uma sociedade organizada[8]

Também pode-se citar Vicente Rao, que conceitua o Direito como sendo um:

sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhe atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em conseqüência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo Poder Público[9]

Ainda pode-se incluir o conceito de Paulo Nader, que diz que Direito é um "conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para realização de segurança, segundo critérios de justiça"[10]. E, para finalizar, pode-se destacar o conceito apresentado por Miguel Reale, que define o Direito como uma "ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores"[11].

Todos esses conceitos apresentados para definir o direito não parecem ser excludentes, mas sim complementares. Não obstante, a discussão sobre o conceito de Direito não é o objeto desse trabalho e sua extensão limitada também não permitiria essa abordagem, estando seu foco em justificar a apresentação de um microssistema de responsabilização da pessoa jurídica por atos prejudiciais à Administração Pública.

Ocorre que a construção desse microssistema depende da aplicação analógica de diplomas legais. Eis, portanto, a necessidade de se estudar a argumentação jurídica analógica.

Assim, ao menos a título de apresentação, mister se faz compreender de que se trata a argumentação jurídica. A melhor definição para este instituto parece ser pontificada por Robert Alexy, até porque o doutrinador utiliza diversos teóricos, como Chaim Perelman, Habermas, Hare, Wittgenstein, Austin, Stevenson, Toulmin, dentre outros, para chegar a um conceito, tendo afirmado que:

A explicação do conceito de argumentação jurídica racional nes­te exame consiste na apresentação de um número de regras que a argumentação tem de seguir e de um número de formas que a argu­mentação tem de assumir, se é para tornar boa a exigência implícita nela. Quando uma discussão está de acordo com estas regras e for­mas, então o resultado oferecido por ela pode ser chamado 'corre­to'. As regras e formas do discurso jurídico assim constituem um critério para a correção das decisões jurídicas[12].

Esta conceituação apenas ajuda a compreender que a argumentação jurídica é formada por diversas regras de argumentação, mas qual seria a diferença entre a argumentação jurídica e a argumentação prática geral? A diferença básica é que a argumentação jurídica está relacionada com aplicação da lei válida.

A partir da compreensão de que estamos a tratar de argumentação jurídica, pois envolve a aplicação da lei vigente, mister se faz compreender alguns dos tipos de discursos jurídicos. Nas palavras de Robert Alexy:

Pode-se fazer uma distinção entre as discussões na ciência jurídica (dogmática legal),1 deliberação judicial, debates no tribunal, tratamentos jurídicos de questões legais (quer na própria legislação ou diante de comissões ou comitês), discussão de questões legais entre estudantes ou entre juristas ou advogados ou entre pessoas juridicamente qualificadas na indústria ou administração, bem como debates sobre problemas jurídicos na mídia, onde assumem a forma de argumentos legais. [13]

Destarte, o discurso jurídico se apresenta como o caso especial do discurso prático geral. Esta afirmação, conforme Alexy, teria sustentação, além do fato da preocupação da aplicação da lei vigente, nas seguintes ponderações: (1) as discussões jurídicas se preocupam com questões práticas, isto é, com o que deve ou não ser feito ou deixado de fazer e (2) essas questões são discutidas com a exigência de correção, e é questão de "caso es­pecial" porque as discussões jurídicas (3) acontecem sob limites do tipo descrito. [14]

Assim, observa-se que a argumentação jurídica traz consigo a necessidade de correção, ou seja, que a justificativa utilizada seja a mais correta e essa justificação pode ser feita por meio da lei positiva. Portanto, trata-se da melhor aplicação do Direito a determinada situação, respeitado o princípio da universalizabilidade, ou seja, os casos iguais, que podem merecer tratamento semelhante.

Acerca da correção do discurso jurídico, Luhman pondera a obrigatoriedade de esta restar tão evidente que

os não participantes cheguem a uma convicção de que nada de estranho está acontecendo, de que a verdade e a justiça estão sendo estabelecidos com esforço sério, sin­cero e árduo e que eles também, se for necessário, terão assegura­dos seus direitos pelo recurso a esta instituição. [15]

Como consequência dessa busca pela correção, coloca-se em segundo plano na argumentação jurídica a explicação meramente coercitiva, dando-se espaço à referência de uma situação ideal.

Essa breve introdução à argumentação jurídica é suficiente para compreender dois pontos que parecem ser essenciais para o estudo da analogia: o princípio da universalizabilidade e a correção dos argumentos apresentados.

Sobre o autor
Felipe Jacques Silva

Mestre e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil pela UFBA. Professor Substituto da Faculdade de Direito da UFBA, da Pós-graduação da UNIFACS e de outras faculdades. Sócio-fundador do Escritório Antônio Bastos & Felipe Jacques Advocacia Especializada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Felipe Jacques. Procedimento administrativo de apuração da responsabilidade das pessoas jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5986, 21 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77927. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho objeto de avaliação na disciplina Teoria Geral do Processo no então mestrado em Direito no PPGD/UFBA

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