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O controle difuso da constitucionalidade

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Agenda 05/12/2020 às 14:40

Relatamos o controle difuso de constitucionalidade como meio de defesa da Constituição e suas particularidades no direito brasileiro e português.

Introdução

O presente relatório visa abordar o controle difuso de constitucionalidade como meio de defesa da Constituição e, para tal, trará um breve retrospecto acerca das raízes do constitucionalismo formal bem como o conceito de Constituição e a prevalência da norma constitucional sobre as normas infraconstitucionais.

Será destacado, portanto, a importância da existência de mecanismos de defesa da supremacia constitucional através dos diferentes tipos de controles de constitucionalidade com destaque no direito português e brasileiro, chegando, ainda, na análise prática dos efeitos das decisões que fiscalizam a constitucionalidade de leis nos dois países.

Diante disso, utilizar-se-á a metodologia baseada no método dedutivo, onde serão expostas as principais razões para a existência do controle de constitucionalidade visando a preservação da supremacia constitucional com base em análise nas legislações, doutrinas e jurisprudências que regem e tratam a matéria de modo a analisar as particularidades, semelhanças e principais diferenças em casa legislação bem como assinalar a evolução deste mecanismo, fundamental para garantia dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

O assunto mostra relevância ao passo que a vida em sociedade está em constante evolução e a proteção e modificação das normas Constitucionais devem ser garantidas de modo a não engessar o progresso, mas também de modo a não permitir a criação de leis que afrontem os direitos e garantias fundamentais.

Portanto, após delimitar o conceito de Constituição e a importância de se preservar sua supremacia o presente relatório abordará diferentes tipos de controle de constitucionalidade, debruçando-se com mais ênfase no controle preventivo e repressivo e na forma concentrada para então, abordar com maior ênfase o controle difuso, sua origem histórica, suas particularidades em Portugal e no Brasil e, por fim tratar dos efeitos decorrentes das decisões no controle difuso de constitucionalidade..


Constitucionalidade e conceito de Constituição

É da natureza humana a convivência em comunidade e essa vida em sociedade demanda organização sistemática, eficiente e com regras a serem reconhecidas como legítimas por todos. A necessidade de criação de regras para o convívio em sociedade faz nascer os primeiros modelos de Estados que visavam a disciplina, distribuição de poder e as atribuições de cada um.

É nesse cenário que a Constituição nasce como um documento fundamental para a organização do Estado, delimitando os direitos e garantias dos membros que compõem a sociedade, os cidadãos, bem como regrando sistemas como a separação dos poderes. Por tal razão defende-se que não há Estado sem Constituição e, mesmo nos sistemas em que não hajam uma Constituição formal há sempre uma base normativa reguladora e indicativa das normas gerais caracterizada por uma Constituição material cujo conteúdo tem supremacia jurídica sobre as demais por ser anterior àquelas[1], como por exemplo a Constituição inglesa, que não é escrita e sim baseada em leis esparsas, costumes, jurisprudências e convenções, em resumo, como afirmou categoricamente Philippe Ardat, “...tous les États du monde on une Constitution[2]”.

Nesse sentido as raízes do constitucionalismo formal advêm das Constituições escritas dos Estados Unidos da América em 1787, oriunda da independência das 13 colônias e a partir da Revolução Francesa, em 1791, contando com traços definidos, quais sejam, a organização e limitação do Estado por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais[3].

Com uma análise mesmo que breve acerca da origem do Estado Constitucional é necessário estabelecer o conceito jurídico de Constituição, pelo qual J. J. Gomes Canotilho[4] define como sendo “a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas”.

Pela importância e concepção de que a Constituição é um instrumento fundamental para o funcionamento do Estado, exercendo não somente função jurídica mas também política, é que se faz necessário o estudo dos métodos a serem utilizados para proteção e modificação da Constituição de acordo com a evolução da vida em sociedade.

Controle de constitucionalidade

O controle de constitucionalidade é o mecanismo utilizado na defesa da supremacia da Constituição de cada Estado e, nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[5] “é, pois, a verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei) à Constituição. Envolve a verificação tanto dos requisitos formais – subjetivos, como a competência do órgão que o editou – objetivos, como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição – quanto dos requisitos substanciais – respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição – de constitucionalidade do ato jurídico”.

Embora a firmação da doutrina de controle de constitucionalidade tenha sido consolidada nos Estados Unidos da América, como será melhor visto adiante, a ideia de controle de constitucionalidade remonta do tempo em que magistrados ingleses do período colonial se defrontavam com problemas relacionados às “cartas” que vinculavam a legislação das Colônias e que poderiam aprovar leis que fossem “razoáveis”, ou seja, que não fossem contrárias às leis da Inglaterra. Assim, muitas das leis produzidas pelas Colônias eram anuladas ou deixavam de ser aplicadas por serem contrárias às leis do Reino[6].

Mais recentemente a revolução Francesa estabeleceu uma premissa de que cumpria ao Poder Judiciário uma função secundária em relação ao Poder Legislativo no sentido de que os magistrados deveriam aplicar os comandos legislativos sem qualquer análise mais ponderada, apenas declarando o comando judicial levado à sua apreciação[7].

Essa realidade, que serviu de paradigma para grande parte dos países europeus, perdeu força ao fim da Segunda Guerra Mundial, oportunidade em que várias nações passaram a valorizar mais a Constituição e a importância dos princípios nelas insculpidos dando margem a um maior protagonismo judiciário que passou a ser seu intérprete e guardião[8].

O modelo de proteção aos preceitos constitucionais pelo Poder Judiciário demorou mais a chegar a países em desenvolvimento por consequência de sucessivos regimes ditatoriais existentes, no entanto, é uma realidade que aos poucos chega a todos os continentes[9]. Tal fato se deve porque além da Constituição representar um documento fundamental para a organização do Estado, a Constituição de cada país tem supremacia sobre a norma infraconstitucional e, consequentemente, há a presunção de que as leis e atos normativos criados pelo poder legislativo existam sempre em conformidade com as normas constitucionais[10], ou seja, que se adequem ao texto magno.

Essa ideia é defendida porque é inegável a existência de uma hierarquia normativa em que a Constituição ocupa o topo e toda a legislação abaixo dela deve ser adequada a seu texto, não sendo admissível que ato normativo algum possa modificar ou suprimir os preceitos fundamentais insculpidos na norma constitucional.

Uma eventual violação ao texto constitucional por qualquer lei ou ato normativo oriundo de algum órgão estatal é a denominada inconstitucionalidade e o meio para reprimir tais atos se dá através da fiscalização da constitucionalidade de leis e atos normativos[11].

O controle de constitucionalidade nasce, portanto, com o objetivo de proteger a supremacia da Constituição sobre o ordenamento jurídico infraconstitucional, verificando os requisitos formais e materiais das leis e atos normativos e conferindo ainda rigidez constitucional e proteção aos direitos fundamentais[12] e, dentro da estrutura organizacional do Estado, o Poder Judiciário parece o mais preparado para realizar o controle de constitucionalidade das leis[13].

Nesse sentido é de se esclarecer que o órgão controlador repressivo de constitucionalidade pode ser exercido de diferentes formas, seja através do controle político, realizado em Estados em que o órgão garantidor da constitucionalidade de leis é separado dos demais Poderes Estatais, ou ainda o judiciário ou jurídico, onde o controle e leis e atos normativos é realizado por órgãos integrantes do Poder Judiciário (sistema adotado no Brasil) e o sistema misto, em que a Constituição submete certos atos e leis ao controle político e outras ao controle jurisdicional (sistema adotado em Portugal)[14].

Há, ainda, o controle preventivo que se dá pelas comissões de constituição e justiça dos parlamentos, cuja função é a analise da compatibilidade da proposta legislativa ao texto constitucional e, ainda, o veto jurídico que se dá na hipótese de o chefe do poder executivo vetar projetos de lei aprovados pelo poder legislativo caso verifique a existência de inconstitucionalidade[15], conforme será mais bem exposto adiante.

Para fins do presente trabalho pretende-se debruçar mais profundamente no controle repressivo de constitucionalidade realizado de forma difusa pelo Poder Judiciário. Antes, porém, há que se proceder com a análise dos principais e diferentes tipos de controle de constitucionalidade bem como o estabelecer o conceito de controle concentrado a fim de melhor compreender as semelhanças e diferenças entre os variados tipos de controles constitucionais, atendo-se com mais ênfase aos sistemas português e brasileiro.

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3. Tipos de controle de constitucionalidade

3.1. Controle preventivo

Para que uma norma ingresse num determinado ordenamento jurídico é necessária a observância de procedimentos previstos na Constituição de cada país. Em tais procedimentos aparecem as hipóteses de controle preventivo de constitucionalidade que visa evitar que normas inconstitucionais ingressem no ordenamento jurídico exercidas, no Brasil, pelas comissões de constituição e justiça dos poderes legislativos e pelo veto jurídico. Em Portugal esse controle preventivo é exercido pelo Tribunal Constitucional, o mais alto Tribunal de fiscalização constitucional do país.

No Brasil, como mencionado, o controle preventivo de constitucionalidade é exercido no Poder Legislativo através da comissão permanente de constituição e justiça, cuja principal atribuição é a análise de compatibilidade do projeto de lei ou proposta de emenda constitucional com o texto constitucional[16]. A comissão de constituição e justiça é comissão integrante em todas os níveis do Poder Legislativo brasileiro, ou seja, a nível federal, estadual e municipal e visa, substancialmente, que todo projeto de lei ou ato normativo tenha sua constitucionalidade analisada antes de ser votado em plenário.

Há, ainda, a possibilidade de controle preventivo através de veto jurídico, mecanismo através do qual o Chefe do Poder Executivo pode vetar projeto de lei aprovado pelo Poder Legislativo por entender que o projeto é inconstitucional. Em sede constitucional o veto jurídico encontra respaldo no parágrafo primeiro do artigo 66 da Constituição brasileira que dispõe que “se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto”.

Em Portugal o controle preventivo é expressamente previsto no artigo 278.º e, em suma, depois de admitido o pedido de análise ao Tribunal Constitucional este notifica o órgão responsável para que se manifeste sobre o pedido e, em seguida, o Tribunal Constitucional tem prazo de 25 dias para se pronunciar sobre o pedido, prazo esse que posse ser diminuído em caso de urgência por parte da presidência da República.

3.2. Controle Repressivo

O controle repressivo de constitucionalidade tanto no Brasil como em Portugal é aquele exercido pelo Poder Judiciário, órgão responsável pela realização de controle de lei ou ato normativo já editados e que afrontam o texto constitucional para que sejam retirados do ordenamento jurídico.

No Brasil o controle repressivo judiciário é exercido de forma mista, ou seja, é exercido tanto de forma concentrada como de forma difusa. O artigo 102, I, a, da Constituição brasileira[17] prevê a competência do Supremo Tribunal Federal para processa e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual enquanto o artigo 97[18] prevê a possibilidade da efetivação do controle difuso aos Tribunais estaduais.

Em Portugal o controle repressivo é realizado pelo Tribunal Constitucional, competente para análise de matérias dessa natureza, e também admite o processamento de forma mista, ou seja, de forma concentrada e difusa, os quais passam a ser estudados.

3.3. Controle concentrado

Acerca do controle concentrado de constitucionalidade Calil Simão[19] esclarece que “de origem austríaca o controle denominado concentrado recebe este nome por representar um controle reservado apenas a um órgão. Daí o termo concentração para representar essa situação de fato”.

 No controle concentrado (ou abstrato) a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em tese se dá independente da existência de caso concreto em análise e visa a invalidação de lei que contrarie o texto magno com o fim de garantir a segurança das relações jurídicas constitucionais. O objetivo, em síntese, é a retirada imediata da eficácia da norma que confronta com o texto magno.

O sistema de controle concentrado se dá por meio de ação de inconstitucionalidade que permite o controle da norma in abstracto. Nesse caso busca-se impugnar perante o tribunal competente uma lei que poderá perder sua validade constitucional e consequentemente ser anulada com efeito erga omnes[20].

Oswaldo Luiz Palu[21] esclarece que “no modo abstrato de controle de constitucionalidade temos o “processo objetivo”, assim chamado por oposição ao processo subjetivo, a tutelar este uma situação subjetiva, individual ou coletiva. O objeto do primeiro é a garantia da ordem jurídica, abstratamente considerada. E não a solução de controvérsias individuais e (ou coletivas). Quando se afirma tratar-se de processo objetivo se quer dizer aquele em que não afeta a interesses individuais ou coletivos específicos”.

O controle concentrado de constitucionalidade acaba por transformar, portanto, a corte suprema em legislador negativo, pois, como se destaca da decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em processo de relatoria do Ministro Celso de Mello quando do julgamento Recurso Especial de nº. 178/22-24[22], “a decisão emanada desta Corte - ao declarar, in abstracto, a ilegitimidade constitucional de lei ou ato normativo federal ou estadual - importa em eliminação dos atos estatais eivados de inconstitucionalidade, os quais vêm a ser excluídos, por efeito desse mesmo pronunciamento jurisdicional, do próprio sistema de direito positivo ao qual se achavam, até então, formalmente incorporados”.

No Brasil, portanto, o controle concentrado constitucionalidade nasceu através da Emenda Constitucional n.º 16, de 16 de dezembro de 1965, que delegou ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar ações de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, contudo, somente era legitimado a propor tal ação o procurador geral da República (Art. 2.º, letra k, Emenda Constitucional n.º 16).

Posteriormente a Constituição de 1988 ampliou o rol de agentes e entidades legitimadas a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que era desaconselhável o monopólio da iniciativa de representação ao Procurador Geral da República que levava, muitas vezes, à não propositura de ação direta[23] passando o artigo 103 da Constituição a legitimar o Presidente da República, a mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa da Assembleia Legislativa, o Governador de Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe no âmbito nacional.

O artigo 97 da Constituição brasileira dispõe ainda que compete ao Supremo Tribunal Federal a declaração, por maioria absoluta de seus membros, de inconstitucionalidade de uma lei ou ato do Poder Público.

Em Portugal o controle concentrado de constitucionalidade é regrado pelo artigo 281.º da Constituição da República, que dispõe que a fiscalização abstrata de constitucionalidade deve ser apreciada pelo Tribunal Constitucional e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, a ilegalidade de normas constantes em atos legislativos com base em violação de lei, a ilegalidade de normas constante em diplomas regionais com base em violação do estatuto da região autônoma e, ainda, a ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma emanado dos órgãos de soberania com fundamento em violação dos direitos de uma região consagrados no seu estatuto.

A força do controle concentrado de constitucionalidade é ressaltada no número “1” do art. 281.º que, de forma similar ao sistema de controle brasileiro destaca que depois de apreciado e declarado o pedido de inconstitucionalidade de determinada norma, a eficácia de tal decisão se aplica de forma geral ao ordenamento jurídico português eliminando-se, por consequência, a norma inconstitucional do ordenamento.

Tamanha é a importância do controle concentrado que a Constituição Portuguesa limita os legitimados a propor o tipo de ação em seu artigo 281.º, ou seja, não é qualquer cidadão parte legítima a propor ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, tal qual no Brasil e diferentemente da Alemanha, por exemplo, onde qualquer pessoa pode acionar a jurisdição constitucional em casos de lesão a direitos individuais[24].

Como já destacado o presente trabalho visa a análise mais aprofundada do controle de repressivo de constitucionalidade realizado pelo poder judiciário de forma difusa, pelo que os próximos capítulos se destinarão, portanto, ao tema, com sua abordagem histórica, a forma de exercício do controle difuso de constitucionalidade em Portugal e no Brasil bem como os efeitos dele decorrente.

3.4. Controle Difuso

O sistema de controle difuso de constitucionalidade se diferencia do controle concentrado, basicamente, porque no sistema de controle difuso qualquer juiz pode declarar a inconstitucionalidade incidental de qualquer lei ou ato normativo do Poder Público, tendo efeito, tal decisão, somente inter partes[25].

Conforme destaca Calil Simão[26], “no controle difuso o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma não a anula ou revoga, permanecendo, em tese, eficaz e aplicável aos demais casos (...) no controle difuso a constitucionalidade é analisada como questão prejudicial e não principal, o reconhecimento da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinada lei não faz coisa julgada”.

Antes de se aprofundar no tema, é necessário, portanto, uma abordagem histórica da origem do controle difuso de constitucionalidade.

3.4.1. Origem histórica

Os precedentes de controle difuso de constitucionalidade de leis remontam desde a História da Inglaterra, entretanto, firmou-se como sistema sólido a partir do direito norte americano, país que foi pioneiro em atribuir à Constituição um valor normativo superior às leis ordinárias[27]. Esse sistema se origina a partir do emblemático caso Marbury versus Madison no qual John Marshall construiu um raciocínio jurídico que deu origem ao controle difuso constitucional, pela via incidental.

John Marshall era então Chief Justice da Suprema Corte e era o responsável pela análise e interpretação dos princípios decorrentes da Carta de 1787 tendo em vista a ação judicial proposta por Marbury à Suprema Corte requerendo fosse a ele garantido o direito a posse como juiz de paz no Distrito de Columbia, título esse conferido a ele pelo presidente Adams durante as últimas horas de seu governo, já que havia perdido as eleições e pretendia com a manobra garantir certa governabilidade através do Poder Judiciário[28].

A estratégia do governo Adams foi de expressividade tão significativa que na véspera da posse de Thomas Jefferson, seu sucessor presidencial, assinavam-se novas nomeações para os cargos de juiz até as 21 horas, cujos beneficiários foram apelidados de “juízes da meia noite”[29].

No entanto, Madison, novo secretário de Governo de Thomas Jefferson, seguindo as instruções do novo presidente negou posse no cargo de juiz de paz a Marbury, que ingressou com ação na Corte Suprema visando garantir sua posse no cargo nomeado por Adams[30].

A análise e decisão do Chief Justice John Marshall acerca do assunto tornou-se então exemplo no estudo do direito constitucional e da ciência política, especialmente pelas premissas estabelecidas por Marshall para julgamento do caso, que, muito embora tenha reconhecido que o ato de Madison em negar posse a Marbury era ilegal, tal direito deveria ser buscado pelas vias adequadas, ou seja, através de mandanus, meio pelo qual Madison poderia ser compelido a dar posse a Marbury. Não cabia, no entanto, análise do pedido na Corte Suprema, cuja competência originária era definida pela Constituição e não poderia ter sido elastecida pela Lei Judiciária 1789. Marshall, portanto, declarou inconstitucional o art. 13 da lei, que previa competência originária da Suprema Corte para expedir ordens como a que se pleiteava por Marbury[31].

A proposição de Marshall foi no seguinte sentido: ou a Constituição controla todo ato legislativo que a contrarie, ou o legislativo, por um ato ordinatório, poderá modificar a Constituição. Não há meio termo entre tais alternativas. Logo, afirma ele: “ou a Constituição é lei superior e suprema, que se não pode alterar por vias ordinárias, ou entra na mesma esfera e categoria dos atos legislativos ordinários, sendo como tais suscetível também de modificar-se ao arbítrio da legislatura”[32]. Por esse raciocínio Marshall entendeu que é dever do Poder Judiciário declarar o direito, de modo que se uma lei colide com a Constituição e se ambas (lei e Constituição) se aplicam a um mesmo assunto, o tribunal deve reconhecer a supremacia da Constituição declarando, incidentalmente, a inconstitucionalidade da lei que a afronta.

Após o caso Marbury versus Madison a Corte americana somente voltou a declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal em 1857, no caso Dred Scott, quando se reconheceu a incompatibilidade da seção 8ª de lei que proibia a escravidão nos territórios norte-americanos, tendo a Suprema Corte se firmado como a responsável pelo exercício do controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos dos governos estaduais[33].

3.4.2. O controle difuso de constitucionalidade no Brasil

A possibilidade de exercício do controle difuso de constitucionalidade no Brasil existe desde a Constituição Republicana de 1891 que destacava em seu artigo 59 que “das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal quando se contestar a validade de leis ou actos de governos dos Estados em face da Constituição, ou de leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado considerar validos esses actos, ou essas leis impugnadas”[34].

Assim, como ressaltou Rui Barbosa[35], a Constituição “obriga esse tribunal a negar validade às leis federaes, quando contrarias à Constituição, e as leis federaes são contrárias à Constituição, quando o Poder Legislativo, adoptando taes leis, não teve nos limites, em que a Constituição o autoriza a legislar, isto é, transpassou a competência, em que a Constituição o circunscreve”.

No Brasil, portanto, tal qual o modelo norte-americano, prevalece o sistema em que cabe à Suprema Corte a interpretação da Constituição da República e o controle difuso de constitucionalidade tornou-se efetivo no Brasil com a promulgação /da Lei Federal número 221 de 1984, que estabeleceu competência a juízes e tribunais para a apreciação de validade de leis e regulamentos e para que deixassem de aplicar normas que confrontassem a Constituição Federal[36].

Acerca da apreciação da fiscalização difusa de constitucionalidade pela Corte Constitucional, Calil Simão[37] anota que “o recurso extraordinário é um instrumento processual-constitucional que serve para levar à apreciação do órgão encarregado da defesa abstrata das normas constitucionais uma inconstitucionalidade suscitada por meio do controle difuso (CRF, art. 102, III[38]). Pode-se definir o recurso extraordinário como o instrumento processual-constitucional capaz de levar, no Brasil, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação incidental de uma inconstitucionalidade arguida na via ordinária, tendo como parâmetro a Constituição Federal”.

Ainda, é de se destacar que a Constituição de 1934 aperfeiçoou os mecanismos para efetividade do controle difuso, manifestando previsão da criação da cláusula de reserva de plenário e a intervenção do Senado Federal no procedimento do controle difuso, que permanecem hígidos na Constituição de 1988[39].

Necessário, portanto, o esclarecimento acerca da cláusula de reserva de plenário e o controle difuso de constitucionalidade realizado pelo Senado Federal.

O artigo 97[40] da Constituição vigente estabelece que “somente pelo voto da maioria de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. Esse quórum qualificado para declaração de inconstitucionalidade de lei justifica-se no princípio de presunção de constitucionalidade de leis[41], no entanto o rigor do artigo 97 vem sendo mitigado ao longos dos anos, vindo o Supremo Tribunal Federal a admitir que haja a declaração de inconstitucionalidade de lei sem julgamento por voto de maioria.

A cláusula de reserva de plenário, no entanto, não impossibilita que o juiz monocrático declare a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, mas tão somente estabelece regras a serem observadas pelos tribunais para garantir segurança jurídica aos atos legislativos. Assim, a cláusula de reserva de plenário é de observância no âmbito dos tribunais, não se aplicando, evidentemente, ao juiz monocrático[42] ao qual permitido a análise de inconstitucionalidade incidental de lei ou ato normativo, no entanto, sua decisão fica limitada ao caso em concreto, deixando de abranger outras situações semelhantes, respeitadas as exceções legais, em que se aplica efeito vinculante da decisão do STF.

Nesse sentido, se pode citar casos de decisões de reconhecimento de inconstitucionalidade em ações Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade que, por maioria de 2/3 dos membros do Supremo Tribunal Federal terão seus efeitos modulados, estabelecendo-se ainda a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade com eficácia contra rodos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal[43].

Ainda, nas hipóteses de declaração incidental de inconstitucionalidade de lei pelo Supremo Tribunal Federal, é possível que o órgão oficie o Senado Federal para que este, através de resolução suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional pela Corte Suprema, no entanto, o senado Federal não está obrigado a proceder com a elaboração de resolução, eis que se trata de ato discricionário do Poder Legislativo[44].

Sobre a força e efetividade do controle difuso de constitucionalidade brasileiro é interessante trazer à baila as consideração dos Ministros do STF Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Mendes[45] para quem “desde o advento da Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que introduziu o controle abstrato de constitucionalidade, não se pode mais cogitar a existência de um típico modelo difuso de constitucionalidade entre nós. Daí ter Pontes de Miranda asseverado que ‘a solução só acidental, de origem americana, foi a que quiseram impor ao Brasil, mas acabou sendo repelida”.

Essa compreensão se dá tendo em vista a significativa ampliação dos legitimados do a propor ação direta de inconstitucionalidade na Constituição de 1988, previsto no artigo 103 da carta magna, ou seja, a amplitude faz com que praticamente todas as controvérsias constitucionais sejam apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal através do controle concentrado de constitucionalidade. Ao ampliar de forma significativa os legitimados a contestar a constitucionalidade de leis pelo controle concentrado de normas acabou-se por restringir de forma substancial a efetividade do controle difuso de constitucionalidade[46], não havendo que se falar, no entanto, em destruição do controle difuso, já que, nas palavras do Ministro Moreira Alves[47], quando de julgamento no Supremo Tribunal Federal destacou que “apesar da expansão dada ao controle concentrado (...) este [controle difuso], continua a ser regra, devendo haver convivência dos dois sistemas a integralidade das suas características”. 

3.4.3. O controle difuso de constitucionalidade em Portugal

O modelo de controle difuso de constitucionalidade português foi instituído na vigência do texto constitucional de 1911 que Rui Medeiros apud Felipe Ferreira Manguba[48] destaca como sendo a “precursora na Europa na consagração expressa de um sistema de fiscalização jurisdicional difuso”. Tal modelo foi inspirado na Constituição Republicana brasileira de 1891, que adotou o modelo norte americano da judicial review[49].

O sistema de controle de constitucionalidade português é misto, ou seja, a Constituição submete certos atos e leis ao controle político e outras ao controle jurisdicional bem como se admite o sistema concentrado e difuso de constitucionalidade.

O controle difuso encontra assento no artigo 204 da Constituição da República[50], que dispõe que “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”, impondo ao titular da jurisdição o dever de não aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nelas constantes[51].

Nesse aspecto Ricardo Fiuza[52] destaca que “em resumo, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões de 1º grau e de 2º grau que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em sua inconstitucionalidade; que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo; ou que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional”.

Outro aspecto relevante acerca do controle difuso de constitucionalidade na Constituição Portuguesa é o contido no artigo 281, n.º 3[53] que determina que “o Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos”, ou seja, o Tribunal Constitucional desempenhará fiscalização difusa somente na ocorrência de casos anteriores de inconstitucionalidade da matéria objeto de análise judicial.

Ou seja, há uma passagem do controle difuso para o concentrado e, conforme anota Elisa Ustarróz[54] “essa passagem da fiscalização concreta à fiscalização abstrata não ocorre automaticamente, nem está o Tribunal Constitucional obrigado a fazer, ficando dependente de iniciativa. Note-se, também, que não é necessário que a norma constitucional considerada como parâmetro nos três casos em que se posicionou pela inconstitucionalidade seja a mesma. É a norma tida como inconstitucional que deve se repetir. Da mesma sorte, nada impede que o Tribunal Constitucional declare apenas um segmento da norma inconstitucional, dando, portanto, uma amplitude menor à declaração da inconstitucionalidade em abstrato”.

A Constituição Portuguesa permite ainda, através do disposto no artigo 280 da Constituição da República, a possiblidade de apresentação de recurso (obrigatório ao Ministério Público em hipóteses previstas na Constituição da República[55]) para o Tribunal Constitucional contra as decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

3.5. Efeitos das decisões no controle difuso de constitucionalidade

Conforme já destacado o sistema difuso tem como sua principal característica a existência de partes litigantes acerca de determinado objeto cuja declaração de inconstitucionalidade é sempre incidental e inter partes. Ainda, a retroatividade da decisão que declara a inconstitucionalidade de alguma lei ou ato normativo é tido como o único meio de se atender ao pedido do autor ou do réu.

Oswaldo Luiz Palu[56] traz, como exemplo, a seguinte situação: “Se as partes celebraram um contrato baseado em norma inconstitucional, ao depois levado à juízo, com pretensão anulatória, somente declarando a invalidade constitucional (inconstitucionalidade) da norma, incidentalmente, e fazendo retroagir os seus efeitos ao início da relação jurídica – nulidade da lei inconstitucional e de seus efeitos com eficácia retroativa – é, que se poderá atender ao pedido do autor, desconstituindo a relação jurídica subjacente. Não espanta que, nesse sistema, a nulidade tenha sempre caráter retroativo, o único meio de trazer efeitos para as partes”.

Portanto, a retroatividade da decisão de inconstitucionalidade no sistema difuso é característica marcante desse sistema, já que não se pode admitir a inconstitucionalidade de determinada lei sem que seja atingida a relação jurídica desde sua origem.

Há que se destacar que não há efeito retroativo no caso de o Senado Federal editar resolução erga omnes suspendendo a eficácia, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, caso existente no Brasil (art. 52, X da Constituição brasileira[57]).

Nesse sentido, o Supremo Federal Tribunal vem relativizando a eficácia ­inter partes da inconstitucionalidade havida pelo controle difuso, dando nova interpretação na qual dispõe que quando o STF declara uma lei inconstitucional, mesmo em sede de controle difuso, a decisão já tem efeito vinculante e erga omnes tendo o STF apenas que comunicar ao Senado Federal com o objetivo de que a casa legislativa dê publicidade ao que foi decidido[58].

Em decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 3406/RJ e 3470/RJ de Relatoria da Ministra Rosa Weber, julgados em 29/11/2017, o Ministro Celso de Mello anotou, sobre uma possível releitura do artigo 52, X da Constituição Federal, já que “considerou se estar diante de verdadeira mutação constitucional que expande os poderes do STF em tema de jurisdição constitucional (...) o que se propõe é uma interpretação que confira ao Senado Federal a possibilidade de simplesmente, mediante publicação, divulgar a decisão do STF. Mas a eficácia vinculante resulta da decisão da Corte”.

Nesse julgamento a ministra Cármen Lúcia afirmou, na mesma linha, que “a Corte está caminhando para uma inovação da jurisprudência no sentido de não ser mais declarado inconstitucional cada ato normativo, mas a própria matéria que nele se contém”.

Muito embora a norma considerada inconstitucional deixe de ter aplicação no caso concreto não há que se falar em eliminação desta do ordenamento jurídico, o que redunda no fato de que a mesma norma declarada inconstitucional em determinado processo seja reconhecida como constitucional em outra análise judicial, ou seja, nesse sistema outras relações judiciais idênticas e findas não são atingidas pelo controle difuso incidental de constitucionalidade.

Sobre o autor
César Godoy

Advogado na empresa Cesar Godoy Advocacia Mestrando em Ciências Jurídico-Criminais na Universidade Autônoma de Lisboa Especialista em Direito Processual Penal e Direito Penal na UNICURITIBA - Centro Universitário Curitiba Especialista em Direito Civil e Empresarial na PUC-PR Graduado em Direito na Univille - Universidade da Região de Joinville

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, César. O controle difuso da constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6366, 5 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78455. Acesso em: 26 dez. 2024.

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Artigo redigido ara obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas.

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