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O Mago Merlin e o pacote anticrime

Agenda 17/01/2020 às 14:10

Será necessário o feitiço de Merlin para evitar que a criminalidade e a impunidade voltem a subir após a aprovação do denominado pacote anticrime (Lei 13.964/2019).

Em recente comentário lançado no Twitter, o Ministro Sergio Moro, satirizando os especialistas que alegam que as iniciativas que vêm sendo adotados pelo Governo Federal não teriam nenhuma relação com a queda, sem precedentes, dos índices de criminalidade, escreveu que: “Se quiserem atribuir a queda ao Mago Merlin, não tem problema...o que importa é que os crimes continuem caindo.”

Se a redução destes índices de criminalidade em todo o país no ano de 2019 foi (ou não) obra do Mago Merlin, é questão que dispensa maiores comentários. Mas, certamente, será necessário o feitiço de Merlin para evitar que a criminalidade e a impunidade voltem a subir, após a aprovação do denominado Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019).

Certamente que este Pacote Anticrime trouxe avanços no combate à criminalidade, como, por exemplo, o aumento do tempo máximo de cumprimento da pena para 40 anos (antes era de 30 anos), e o aumento dos percentuais de tempo de cumprimento de pena para que os condenados possam progredir de regimes (fechado, semiaberto e aberto), dentre outros.

O problema é que, neste projeto idealizado pelo Ministro Moro, foram inseridos pelo Congresso Nacional diversos mecanismos que, apesar do aplauso de muitos “especialistas”, acarretará inúmeros obstáculos à repressão do crime, gerando, dentre outras consequências, mais impunidade.

Não se pretende, aqui, elaborar um texto acadêmico, e muito menos uma análise mais profunda. O que se objetiva é apenas alertar para alguns pontos, que não está sendo alvo de comentários (em flagrante omissão intencional), e que podem trazer sérios retrocessos no combate a criminalidade.

O primeiro ponto, como não poderia deixar de ser, porque é o que vem contando com maior visibilidade, é a criação do denominado “Juiz das Garantias”. Que, pela nova lei que alterou, neste aspecto, o Código de Processo Penal (CPP), passa a ser o “...responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário...” (Art. 3º-B).

Em outras palavras, agora haverá um Juiz responsável por acompanhar toda a fase de investigação policial, cuja atuação irá até o momento de recebimento da acusação. A partir, então, do recebimento formal da acusação, inicia-se nova fase, agora processual, passando a atuar no caso outro Juiz que será o responsável pelo julgamento do caso.

São inúmeros os questionamentos ao estabelecimento deste fracionamento da atividade jurisdicional, mas a seguir serão ressaltados apenas alguns.

Um deles é porque há uma quebra de uma regra processual até o momento vigente e inscrita no CPP, art. 399, §2° (O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença), conhecido como “princípio da identidade física do juiz”. Que sempre foi considerada uma regra importante, posto que o Juiz passa a ter conhecimento de tudo o que foi realizando durante a “persecução penal”, ou seja, no decorrer dos procedimentos (policiais e judiciais) para a apuração do crime e indicação do criminoso.

Pelas novas regras, o Juiz responsável pelo julgamento do caso (2ª Fase) está PROIBIDO de ter acesso ao acervo probatório produzido durante a investigação policial. É isto mesmo: é vedado este acesso, ressalvando as provas que eventualmente não possam ser reproduzidas novamente durante a tramitação processual que conduzirá ao julgamento (CPP, Art. 3º-C,  § 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis...”).

Vale dizer, se, por exemplo, o acusado confessou a prática do crime logo que foi pego em flagrante, durante a fase de inquérito policial, e, posteriormente (na 2ª Fase), negar esta confissão e relatar outra versão, o Juiz responsável pelo Julgamento NÃO poderá ter acesso ao conteúdo desta confissão obtida na fase policial. Perdendo, assim, importante oportunidade de formar seu convencimento com base em TUDO aquilo que foi formalizando durante a persecução penal.

Verdadeiro absurdo que parte do pressuposto de que há uma suposta tendência condenatória a respaldar o entendimento daquele Juiz que está acompanhando, também, aquilo que foi produzido durante a investigação policial. Por esse motivo, inclusive, não se confunde com a experiência que é adotada (em certa medida) em alguns outros países, e mesmo no Estado de São Paulo já há algum tempo, com o intitulado “Juiz de Instrução”. Este “Juiz de Instrução” atua de forma a maximizar e agilizar os procedimentos, porém, tudo o que foi coletado nesta etapa, será remetido ao Juiz (outro) que julgará o caso, que , por sua vez, poderá ter amplo acesso a todo este material.

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É uma falácia, portanto, comparar esta experiência paulista, e de alguns países, com o que foi subrepticiamente inserido em nossa legislação e denominada de “Juiz das Garantias”.

O golpe foi ainda mais traiçoeiro, porque não apenas impede que o Juiz que tenha praticado qualquer destes atos (agora atribuídos ao “Juiz das Garantias”) fique impedido de atuar no processo judicial e posterior julgamento (Art. 3º-D). Fato que por si só é extremamente prejudicial, posto que, dada a eficácia imediata das leis processuais (CPP, art. 2°), os atuais Magistrados que vem atuando em casos de relevância (como os da Lava Jato), estarão impedidos de proferir julgamentos nestes casos. Gerando demoras adicionais, porque os autos deverão ser distribuídos a outros Juízes/Ministros que não tiveram contato com o expediente até então. O ardil vai além, porque, de forma desmembrada, foi posicionada outra armadilha processual, agora no art. 157, § 5° do CPP, com a seguinte redação: “O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão.”

Esta nova redação do CPP (art. 157, § 5°), a uma leitura desatenta, pode não despertar maiores interesses. Porém, na prática, seus efeitos são avassaladores. Explica-se. Obviamente, não se pode admitir em processos judiciais provas ilícitas (CPP, art. 157, e CF, art. 5°, LVI). Ocorre que, até este momento, em sendo considerada a prova ilícita, a consequência natural era a sua retirada do processo e a impossibilidade de ser levada em consideração no julgamento. A partir de agora, entretanto, se porventura o Juiz condutor do processo se deparar com uma prova ilícita (mesmo que juntada ao processo pela acusação ou defesa), NÃO poderá mais atuar no mesmo, devendo o caso ser redistribuído a outro Julgador.

Imagine-se, ilustrativamente, que a defesa, supondo que o Julgador está inclinado a proferir condenação contra seu cliente, adote a estratégia de juntar ao processo uma prova ilícita, como uma gravação obtida clandestinamente feita por terceiro, ou um documento conseguindo de forma ilegal. Pela nova redação, o Juiz, ao tomar conhecimento destas provas e as considerar ilícita, terá que se afastar do processo, ainda que estes meios probatórios ilegais tenham sido juntados ao processo propositadamente pela defesa, exatamente para criar esta confusão, e ganhar tempo, até que outro Juiz seja designado para acompanhar o caso.

Nesta mesma esteira, agora, para que o Juiz possa decretar uma prisão preventiva contra o suspeito de um crime terá que (em regra), primeiro intimar o acusado para manifestação prévia e, só depois decidir sobre eventual decretação da prisão preventiva (CPP, Art. 282, § 3º). Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias...e os casos de urgência ou de perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional.).

Certamente que os “especialistas” dirão que ainda é possível a decretação da prisão preventiva sem intimação do acusado, porque a lei ressalva que, em “casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida” não será necessária esta intimação. Porém, o próprio dispositivo exige fundamentação exaustiva que justifiquem essa medida excepcional. Sendo que, se isto for somado com a recente Lei de Crime Abuso de Autoridades (Lei 13.869/19), poderá inibir o Julgador, uma vez que este, para se precaver, eventualmente passará a promover intimações do acusado nestes casos (mesmo com risco de ineficácia da medida de prisão: o acusado, sabendo da iminente prisão, terá a opção de fugir) para evitar seu enquadramento na Lei de Abuso de Autoridade.

Como se verifica, estas recentes modificações introduzidas pelo Congresso Nacional no Pacote Anticrime não são simples alterações procedimentais, como alguns pretendem transparecer. Mas sim, de profundas modificações na sistemática processual penal, diante desta ruptura radical com as regras vigentes (estas acima indicadas são apenas alguns exemplos).

Diante deste novo contexto normativo, ao que tudo leva a crer, somente mesmo o Mago Merlin terá condições de evitar que os índices de criminalidade e impunidade voltem a subir.

O cenário é preocupante, especialmente porque parte-se do pressuposto que o ESTADO é um agente opressor, que deseja aniquilar as garantias individuais. Na realidade, com todas falhas que nosso atual ESTADO Federal possa ter, é um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que vem tentando implementar medidas duras e eficazes contra aqueles que corrompem a Nação.

Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. O Mago Merlin e o pacote anticrime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6043, 17 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78999. Acesso em: 21 nov. 2024.

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