Infelizmente tem se tornado recorrente a necessidade de explicar, descrever e por vezes desenhar obviedades em quase todas as áreas do conhecimento humano hodierno. Na área jurídica, parece que há ainda mais capacidade de ser incapaz ou de criar imbróglios onde não há complexidade alguma.
A última confusão se dá com o famoso e polêmico jornalista Glenn Greenwald. Ele foi responsável pela divulgação de várias supostas mensagens e comunicações entre autoridades brasileiras, as quais foram captadas de forma criminosa por “hackers” e ainda, segundo consta, alteradas e editadas, seja pelo próprio jornalista, seja pelos demais envolvidos.
Diante dessas notícias, os fatos tiveram imperiosamente de ser investigados, tendo em vista flagrantes violações, em tese, da Constituição Federal e das leis penais vigentes, considerando que a interceptação ou as quebras de sigilos informático, telefônico e/ou telemático somente se podem dar mediante ordem judicial e guardado o inviolável sigilo externo. Violações feitas por particulares, evidentemente sem ordem judicial (a qual seria impossível) , são indiscutivelmente ilegais, inconstitucionais e criminosas.
No decorrer das investigações há notícias de que Glenn é apontado pelos próprios “hackers” identificados e confessos, como participante das infrações, não somente recebendo os conteúdos ou até mesmo os adulterando, mas determinando a atuação e supostamente pagando por seus serviços. Isso, sem a menor dúvida, configura, no mínimo, para a teoria mais clássica, participação delitiva em concurso de agentes. Já para a chamada “Teoria do Domínio do Fato”, Glenn sequer seria apenas um partícipe da infração, mas um coautor com poder de mando, de modo que sua culpabilidade seria mais intensa.
É claro que se Glenn houvesse apenas recebido as comunicações e as divulgado na atividade jornalística, estaria acobertado pela prerrogativa profissional. Afinal, não teria qualquer participação ou autoria nas violações de sigilo criminosas. E poderia realmente manter o sigilo de sua fonte, o que lhe é constitucionalmente garantido.
Mas, ao menos ao que parece, ao menos de acordo com os indícios até o momento expostos, não foi o que ocorreu. Glenn é acusado de ter participado e até coordenado e ordenado as práticas criminosas. Nesse passo, embora seja um jornalista, é uma pessoa humana submetida à legislação brasileira, já que aqui se encontra atuando e pode, normalmente, como qualquer um, incidir em infrações penais. O jornalista não tem carta branca ou salvo – conduto para a prática de infrações penais em nome do exercício profissional. Isso seria um absurdo.
O atual Ministro Alexandre de Moraes, já ensinava em sua obra de “Direito Constitucional” o seguinte:
Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º. da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro ‘escudo protetivo’ da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como agravamento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. [1]
Uma coisa é o exercício legítimo de prerrogativas profissionais, as quais não podem ser desrespeitadas, outra completamente diversa, é a utilização dessas mesmas prerrogativas como desculpa ou manto para acobertar ações ilícitas, até mesmo criminosas.
Mas, parece que até dentre os juristas brasileiros o senso de proporcionalidade e mesmo de distinção entre situações claramente diversas encontra-se terrivelmente embotado, ao ponto de se ver manchetes em que se alega haver uma “criminalização do jornalismo” (sic) com a denúncia ministerial ofertada contra Glenn. Não. Há uma criminalização secundária das condutas criminosas primariamente elegidas pelo legislador brasileiro, o que nada mais é do que o cumprimento de uma obrigação funcional da Polícia e do Ministério Público. Se os fatos imputados não têm sustento nos autos, se não ficar comprovada a participação ou autoria de Glenn nos crimes, ele será absolvido. Caberá, primordialmente ao órgão acusador provar suas alegações e, subsidiariamente, à defesa de Glenn, também comprovar se puder e quiser, sua inocência e a falta de sustento das imputações criminosas. E mais, em caso de dúvida quanto à atuação criminosa de Glenn, este será beneficiado, já que o ônus da prova compete à acusação no Processo Penal.
Não há criminalização alguma do jornalismo. Esse tipo de alegação é sintoma de uma histeria que parece tomar conta de boa parte da suposta casta pensante brasileira e até mundial.
Basta fazer uma comparação simples com outras profissões que são dotadas de certas prerrogativas. Um advogado, por exemplo, pode atuar em prol de seu constituinte, guardar segredos profissionais etc. Mas, não pode, só porque é advogado, passar a participar das operações criminosas do seu cliente. Por exemplo: se um advogado tem contato com seu cliente preso e este lhe pede para buscar certa quantidade de drogas e levá-la de um local para o outro, se o advogado faz isso, se transforma em traficante de drogas. Quando um advogado recebe dinheiro de um cliente para contratar um matador de aluguel, é um homicida, um advogado homicida, mas, enfim, um homicida. Outro exemplo, um médico pode praticar cirurgias, causando lesões necessárias no paciente, quando o corta. Pode receitar drogas e medicamentos para tratamentos dentro dos limites legais. Mas, se um médico usa da medicina para matar ou lesionar pessoas, já não é acobertado pela prerrogativa profissional, é um criminoso comum. Se um médico usa de sua profissão para fornecer drogas ilícitas, em desacordo com as determinações legais e regulamentares, a um paciente, pode incidir em crimes da Lei de Drogas. Ou seja, a prerrogativa profissional existente não configura uma autorização para agir como quiser em nome dela.
E se há alguma falha formal ou mesmo injustiça patente na imputação ministerial, haverá, logo de início, a oportunidade de Resposta à Acusação, sendo possível desde a rejeição da denúncia pelo juiz até mesmo a absolvição sumária do jornalista. Tudo de acordo com o devido processo legal que nada, absolutamente nada tem a ver com repressão ao jornalismo. E mais, tudo que for decidido está submetido ao duplo grau de jurisdição e aos recursos a ele inerentes, inclusive aqueles da via extraordinária.
Dizer isso, ter de explicar essa evidência é extremamente frustrante para quem acredita na racionalidade do gênero humano, incluídos nisso os juristas brasileiros e demais “formadores de opinião” (sic).
Dentre os juristas, segundo já nos advertia Erasmo de Roterdam, não é de se espantar que coisas simples sejam apresentadas como emaranhados complexos. Sua lição é providencial:
Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franco, a sua profissão é, em última análise, um verdadeiro trabalho de Sísifo. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime e laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência. [2]
Quando iremos finalmente aprender que a verdadeira beleza e a verdade residem na simplicidade, mesmo porque o que é verdadeiro é belo e vice versa, e não há nada mais simples que isso? Talvez quando simplesmente percebermos que tudo isso deriva de outra coisa bem simples, a honestidade moral e intelectual. Então, estaremos prontos para acatar a sabedoria da passagem bíblica que ensina: “Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna”. [3]
REFERÊNCIAS
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
ROTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
Notas
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 58. Neste sentido na jurisprudência: RT - STF 709/418; STJ - 6a. Turma RHC 2.777-0/RJ - Rel. Mi n. Pedro Acioli - Ementário 08/721.
[2] ROTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 98.
[3] Mateus, 5:37.