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Movimento antivacina contemporâneo à luz da obra Críton, de Platão

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O presente ensaio tem como escopo abordar as relações existentes acerca do movimento antivacina contemporâneo e a obra “Críton”, de Platão. Essa obra discute profundamente questões como o senso crítico, a justiça e até mesmo as noticias falsas.

Resumo: O presente ensaio tem como escopo abordar as relações existentes acerca do movimento antivacina contemporâneo e a obra “Críton”, de Platão. Para isso, o tema em questão foi dividido em três tópicos. Em primeiro lugar, foi analisada a obra em pauta, a fim de tornar possível a compreensão do artigo, mesmo sem ter realizado a leitura de “Críton”. Ademais, ainda no primeiro tópico, foi compreendida a história e os ensinamentos de Sócrates e de Platão. Em segundo lugar, o movimento antivacina foi estudado, não somente o movimento contemporâneo, mas o histórico, representado pela Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, a fim de perceber as diferenças existentes acerca das duas fases desse movimento. Em terceiro lugar, foi relacionada a obra em pauta com o movimento antivacina, a fim de entender a maneira de Sócrates, segundo seus ensinamentos contidos em “Críton”, perceberia tal movimento. Por fim, delimitou-se que existem intensas relações entre os pensamentos socráticos e o movimento antivacina, pois Sócrates era extremamente crítico a diversas características que estão presentes nesse movimento.

Palavras-chave: Fake news. Sócrates. Vacina. Senso crítico.

Sumário: Introdução. 1. Obra e discussão sobre senso comum em Platão. 2. O movimento antivacina – realidade ou fake news? 3. Relação existente entre a obra Críton e o movimento antivacina. Conclusão. Referências.


Introdução

As obras platônicas são fundamentais para a vida contemporânea, já que, além de repassar os ensinamentos fornecidos por Sócrates, elas incentivam reflexões essenciais para a sociedade moderna. Sendo assim, uma das reflexões mais relevantes para os dias atuais, é a análise a respeito do pensamento crítico, pois em um mundo informatizado e repleto de informações disponíveis a todo o momento, é preciso que a população esteja disposta a refletir para não ser enganada. Nem todas as informações contidas nos meios de comunicação, especialmente a internet, são confiáveis, logo, é necessário que o senso crítico seja sempre utilizado.

Dessa forma, na contemporaneidade, é fato que o movimento antivacina está diretamente relacionado ao pensamento socrático existente na obra de Platão. A obra Críton, de Platão, apresenta uma reflexão de Sócrates a respeito do senso comum existente na sociedade e, além disso, do contraste existente entre a opinião pública e a opinião do especialista. Assim, os assuntos mencionados anteriormente possuem intensa relevância para a análise do movimento antivacina contemporâneo, o que por si só demonstra o quanto a obra platônica é atual. Nesse ínterim, qual a contribuição que a obra de Platão pode oferecer para a análise do movimento antivacina?

Primeiramente, nesse artigo será contemplada a história existente por trás dos filósofos em questão e de seus pensamentos e obras. Assim, será feito um estudo da vida de Platão, bem como de seus princípios e ensinamentos, tal como o que defendia e o que acreditava que faria bem à sociedade. Além disso, a biografia de Sócrates também terá espaço nesse artigo, já que a obra Críton é uma das expressões mais claras do pensamento socrático a respeito de muitos assuntos, como justiça e senso comum. Dessa maneira, a vida e a morte de Sócrates serão objetos de estudo, a fim de compreender a filosofia socrática antes de aplicá-la à vida contemporânea. Esse estudo é fundamental para que seja possível relacionar o pensamento filosófico em questão com o movimento antivacina.

Ainda no primeiro tópico, a obra Críton, a qual é o objeto de estudo deste artigo, será detalhada, com a finalidade decontextualizar todas as reflexões que serão feitas posteriormente. Essa contextualização é de imensa importância para o entendimento do artigo, já que nem todos possuem a oportunidade de ter contato com obras filosóficas clássicas ou de analisá-las criticamente.

Em segundo lugar, é essencial para a finalidade desse artigo que seja feito um estudo direcionado do movimento antivacina em suas duas formas: histórica, por meio da revolta da vacina, e contemporânea. A Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro, representa o marco inicial de um movimento contra o processo de vacinação obrigatória ocorrida na então capital do país. A contextualização histórica é importante para compreender que a resistência à vacinação não é algo que surgiu recentemente, entretanto, as circunstâncias e os motivos de ambas as formas do movimento são distintas e merecem ser considerados. Ainda neste tópico, a contemplação do movimento social e suas formas também terão espaço para que seja feita a sua análise, já que o movimento antivacina é um movimento social da modernidade.

Ainda no segundo tópico, faz-se necessário o ensaio acerca da contemporaneidade do movimento antivacina, tal como o que ele representa para a sociedade moderna. Ademais, a sociedade midiatizada apresenta diversos riscos à veracidade da informação, considerando que a propagação de notícias falsas é uma das maiores preocupações da modernidade. Posteriormente, é preciso compreender a deficiência existente no sistema educacional e que tal deficiência prejudica, futuramente, toda a sociedade.

Já no terceiro tópico, será explicitada toda a relação existente acerca dos dois tópicos anteriores e seus conteúdos, a fim de encontrar a ligação existente entre o pensamento socrático e o movimento antivacina, já que Sócrates reflete a respeito do contraste que há entre opinião do especialista e a opinião da multidão e a respeito do senso crítico. Ademais, também no terceiro tópico, será estudada a influência e o papel exercidos pelos meios de comunicação na sociedade contemporânea e como tal influência está relacionada com o movimento antivacina e, consequentemente, com o pensamento exposto por Sócrates.

Ainda no terceiro tópico, a questão jurídica deverá ser contemplada, a fim de evidenciar se os pais que escolherem não vacinar seus filhos podem estar transgredindo o ordenamento jurídico, já que evitar a vacinação representa, de fato, grande perigo, não apenas para aquela pessoa, mas para toda a sociedade. Assim, mais uma vez, os pensamentos socráticos mostram-se importantes para a sociedade contemporânea e para o presente artigo, já que ele sempre partia do princípio da obediência às leis.

Dessa maneira, após abordar, refletir e estudos todos os temas citados acima, será possível concluir qual a contribuição que a obra de Platão pode oferecer para a análise do movimento antivacina. Essa conclusão só será possível após intensa reflexão acerca dos assuntos apontados anteriormente.


1. Obra e discussão sobre senso comum em Platão

Platão nasceu, segundo Castilho (2019, p. 50-52), em 428 a.C e foi o principal discípulo de Sócrates e graças a ele, hoje o mundo moderno possui acesso aos pensamentos de seu mestre. Dessa forma, Platão veio de uma família rica aristocrata e foi quem registrou, de forma mais completa, os ensinamentos de Sócrates. Além de exercer tal função, foi o fundador da Academos, uma escola que ensinava ciências, retórica e filosofia. Assim, Platão foi, acima de tudo, um educador que acreditava que a educação, do corpo e da mente, era o que conseguiria resolver os problemas humanos existentes na ordem social. Ademais, esse filósofo defendia que a educação deveria ser oferecida pública e gratuitamente pelo Estado, pois, segundo ele, era de interesse estatal que os homens fossem instruídos e trabalhassem pelo bem da pólis.

Já Sócrates era, segundo Castilho (2019, p. 49-50), pobre. Filho de uma parteira, ensinava onde pudesse reunir seus alunos e, ao contrário de seu discípulo Platão, não criou uma escola para que pudesse ensinar a seus discípulos. Foi um homem que sempre teve como princípio de seus pensamentos e atitudes a ética (CASTILHO, 2019, p. 49):

Sócrates percorria a cidade de Atenas, praticando a sua técnica do diálogo com os jovens, sempre em lugares públicos. Essa técnica, chamada maiêutica, ou parto de ideias, consistia em manter um diálogo irônico que conduzia o interlocutor a aprender e a atingir conclusões. Se pensamento tinha uma sólida base ética. Achava que o homem chegava a ser virtuoso quando alcançava o conhecimento (“Conhece-te a ti mesmo”, dizia ele) e em decorrência do conhecimento inclinava-se à obediência da lei – para Sócrates, a obediência à lei era o que diferenciava o homem do bárbaro.

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Segundo Peixoto (2010, p. 664-666):

Atenas foi pioneira quanto a instituição da democracia: o poder político, as decisões administrativas e políticas da cidade, os rumos e destinos da sociedade, estavam sob a responsabilidade não mais de uma pessoa ou de um grupo, mas de todos os que eram considerados cidadãos. Isso obrigou os atenienses a desenvolverem a arte política, a arte do debate, da crítica, da argumentação, do ouvir o outro, do contestar, do votar, do decidir, da consideração do que era justo e injusto e do executar as decisões do coletivo.

Assim, o ambiente em que Sócrates viveu foi propício para que ele pudesse desenvolver suas habilidades argumentativas e reflexivas, pois, historicamente, era um momento revolucionário, já que a Democracia começava a tomar forma. Dessa maneira, o pensador desenvolveu um pensamento crítico, que ia de encontro ao senso comum. Assim, Sócrates criticou as convenções atenienses e ensinou os jovens da pólis a fazerem o mesmo. Ele contestou dogmas instaurados na sociedade e, devido a isso, foi acusado de corromper a juventude e negar os deuses da pólis. Nesse ínterim, foi condenado à morte pela ingestão de cicuta.

Para Peixoto (2010, p. 668):

A sua condenação à morte demonstra que filosofar pode ser um perigo para a própria vida, porque o pensar filosófico é um pensar livre, seu compromisso é com a verdade, por isso é um pensar crítico, autônomo e criativo. A crítica e a verdade presentes no pensamento de Sócrates incomodavam porque superavam, as superficialidades, as aparências, o particular e revelavam as essências, o universal, os fundamentos das coisas. Sua filosofia desinstalava as pessoas do seu comodismo; oferecia elementos que lhes permitiam esclarecer e julgar o sentido do mundo, seja ele o da política, do trabalho, da educação, do pensamento, da cultura.

Ou seja, ao criticar o senso comum e propor à sociedade que saísse do comodismo do senso comum, foi preso e sentenciado à morte. Esse fato demonstra, por si só, que aqueles que se dispõem a questionar os dogmas instaurados em uma sociedade correm riscos, podendo perder inclusive a vida.

Sócrates demonstrou lidar com a morte de uma maneira diferente, pois em nenhum momento se mostrou desesperado com a sentença que recebeu. Foi um filósofo que seguiu sereno até seu último dia de vida, provavelmente porque tinha orgulho do que havia ensinado e não se arrependeu do que fez.

A obra “Críton” ou “O dever”, escrita por Platão, relata exatamente o momento em que o amigo rico de Sócrates, Críton, adentra a cela do filósofo a fim de tentar convencê-lo a fugir e não cumprir a pena dada a ele. Nesse contexto, os dois mantém um diálogo acerca do senso comum, do conceito de justiça e do valor e influência da opinião popular e da opinião do especialista.

Inicialmente, Críton acorda Sócrates, que estava dormindo profundamente, para avisar que sua morte estava próxima. O amigo rico lamentava perder uma amizade tão importante e, ainda nessa passagem, afirma que a morte de Sócrates seria mais dolorosa para ele e seus demais amigos do que para o próprio filósofo, que se mostrava calmo. No decorrer da obra, Críton demonstra que a amizade de Sócrates era especial e diz que nunca mais irá encontrar uma relação tão única quando a que havia entre os dois.

Críton afirma que (1972, p. 120-121):

Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só; à parte a perda de um amigo como não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação vergonhosa do que a de fazer caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo.

Para Críton, Sócrates deveria fugir da prisão utilizando do poder econômico do amigo. Ele se preocupava com o que poderia a população pensar a seu respeito, já que como levava uma vida abastada, teria a oportunidade de custear a fuga do filósofo e sustentá-lo em outra cidade ou país.

Assim sendo, os dois começam uma discussão acerca do valor da opinião da multidão. Segundo Críton “Os fatos mesmos de agora dizem claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como que os maiores; basta que entre eles se espalhem calúnias contra alguém”. Ou seja, para ele, o povo poderia acabar com a vida de alguém apenas acusando falsamente alguém, o que aconteceu com Sócrates, já que ele foi acusado falsamente de corromper a juventude e negar os deuses da pólis e, devido à essa acusação, perdeu a sua vida.

Outrossim, para Críton, a atitude de Sócrates de escolher obedecer às leis, mesmo não concordando com a sentença dada a ele, era injusta. Na seguinte passagem ele deixa claro o que pensa sobre o amigo se entregar e mostra-se preocupado com o futuro dos filhos de Sócrates, que se tornariam órfãos (1972, p. 122):

Demais, Sócrates, acho que cometes uma injustiça entregando-te, quando te podes salvar; estás trabalhando para que te aconteça exatamente aquilo a que visariam teus inimigos. - a que visaram quando decidiram tua perda. Demais a mais, ao meu ver, atraiçoa também os teus filhos; podendo criá-los e educá-los, tu queres ir-te, abandonando-os; no que te concerne, fiquem eles entregues à sua sorte; a deles, é natural, será a sorte costumeira dos que caem na orfandade. A gente deve ou não ter filhos, ou sofrer juntamente com eles, criando-os e educando-os. Tu me dás a impressão de estarem escolhendo a sua maior comodidade.

Assim, Sócrates pede para que o amigo não insista e inicia outro questionamento, retomando um assunto tratado anteriormente: “Será retomando, em primeiro lugar, aquela razão que alegas a propósito das opiniões? Estávamos certos ou errados ao repetirmos que das opiniões umas devemosacatar, outras não?”. Para o filósofo, algumas opiniões deveriam ser acatadas, já outras, não. Para ele, a opinião do especialista devia ser sempre levada em consideração, já que ele iria possuir maior conhecimento acerca do assunto. Segundo Sócrates, aquele que seguisse a opinião da multidão e não seguisse a do especialista estaria prejudicando-se imensamente (1972, p. 125):

Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade emmatéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, paracomeçar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nosinquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nosmatar.

Por meio desse pensamento, Sócrates diz ao amigo que, já que a opinião do especialista era dotada de maior valor, então, deveriam seguir o que os especialistas da justiça diziam e ignorar a opinião da multidão. Assim, justamente por desejar seguir o pensamento dos especialistas, Sócrates disse que iria obedecer às leis e cumprir a sentença que lhe havia dado.

A fim de convencer o amigo de que fugir da prisão não seria justo, Sócrates propõe um debate de ideias, assim, caso Críton conseguisse provar, por meio de argumentos, que a sua fuga seria algo justo, eles iriam tentar escapar. Entretanto, caso Sócrates comprovasse a sua teoria de que fugir era algo injusto e ruim, ele iria permanecer na prisão e cumpriria a pena. Assim, o pensador começa sua reflexão afirmando que nunca deve-se proceder contra a justiça e que nunca deve-se retribuir a injustiça com mais injustiça. Para ele, “Em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause”.

Sócrates continua sua reflexão afirmando que em todos os momentos de sua vida as leis de Atenas foram boas e suficientes e ele as seguiu. Então, agora não seria diferente, mesmo que ele não concordasse com sua sentença, ele a cumpriria como sempre fez com as demais decisões e legislações da pólis. Além disso, se Sócrates permaneceu em Atenas e escolheu construir sua vida lá, foi porque ele acatou às leis da pólis, ou seja, Atenas e suas leis tinham sido suficientes. Em nenhum momento de sua vida Sócrates cogitou morar em outra cidade, pois onde ele vivia agradava-o e satisfazia suas necessidades. Dessa forma, ele afirma que a lei consideraria a sua fuga injusta, pois Atenas havia sido seu berço e de seus filhos, lá ele havia sido educado e pôde educar. Logo, seria injusto que naquele momento, por não considerar justa a sua morte, ele fugisse com a ajuda de Críton. Sendo assim, Críton encontra-se sem argumentos capazes de refutar as reflexões de Sócrates e desiste de tentar convencer o amigo a fugir.

Assim, considerando os argumentos e análises realizados anteriormente, faz-se necessária a discussão acerca do movimento antivacina, pois, como visto anteriormente acerca do pensamento socrático, a opinião do especialista deveria sempre ser levada em consideração e, a respeito dos integrantes desse movimento, as pesquisas científicas acerca do assunto não são consideradas. Além disso, também é essencial compreender a historicidade existente na resistência populacional a vacinar-se, a fim de que seja possível notar as diferenças entre o movimento passado e o contemporâneo.


2. O movimento antivacina – realidade ou fake news?

A Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, no Rio de Janeiro, foi, sem dúvidas, uma das mais marcantes de toda a história contemporânea, já que foi um movimento popular independente, como contextualiza Porto (2003, online):

A população da cidade revoltou-se contra o plano de saneamento, mas, sobretudo, com a remodelação urbana feita pelo presidente Rodrigues Alves (1902-1906), que decidiu modernizar a cidade e tomar medidas drásticas para combater as epidemias. Cortiços e casebres, que compunham inúmeros quarteirões dos bairros centrais, foram demolidos, e deram lugar a grandes avenidas e ao alargamento das ruas, seguindo o modelo de urbanização dos grandes bulevares parisienses. A população local foi desalojada, refugiando-se em barracos nos morros cariocas ou em bairros distantes na periferia. As favelas começaram a se expandir.

Assim, o movimento foi legítimo, já que o poder público agiu com tamanha truculência e não procurou sanar a desinformação populacional. Ainda segundo Porto (2003, online) “Durante uma semana, as ruas do Rio viveram uma guerra civil. Segundo a polícia, o saldo negativo foi de 23 mortos e 67 feridos, tendo sido presas 945 pessoas, das quais quase a metade foi deportada para o Acre, onde foi submetida a trabalhos forçados”.

O governo carioca e o governo federal desejavam sanear a cidade do Rio de Janeiro, à época capital do Brasil, entretanto, toda mudança na sociedade deve ser acompanhada de informações à população, o que esteve em falta nesse momento histórico. Souza (2019, online) afirma que:

Tanto a revolta da população contra uma lei que se destinava a protegê-la quanto os meios violentos que as autoridades empregaram para impor a medida hoje parecem surpreendentes. Em nenhum momento antes da determinação, o governo levou à população informações que pudessem esclarecer a importância da ação profilática. Diante da falta de adesão e informações, criou-se um ambiente fértil para todo tipo de especulação.

Logo, fica explícito que a falta de informação foi o principal catalisador para a reação populacional. Toda atitude deve vir acompanhada de conhecimento, justamente para evitar desentendimentos como o citado anteriormente.

Para Lakatos e Marconi (1999, p. 309-311), os movimentos sociais apresentam-se sob várias formas, e o que permite que seja feita a diferenciação é o conteúdo de cada um. Um dos movimentos sociais estudados na obra foi o movimento regressivo “Também denominados reacionários, consistem numa tentativa de retornar às condições imperantes em um momento anterior. Nascem, geralmente, do descontentamento com a direção e as tendências de determinada mudança”. Logo, talvez seja possível considerar movimento antivacina como um movimento regressivo, já que ele deseja convencer as pessoas a não vacinarem seus filhos ou se vacinarem, voltando a um período mais arcaico, em que a sociedade ainda não tinha conhecimento do benefício da vacina, tal qual a época da Revolta da Vacina ocorrida no Rio de Janeiro. Portanto, ao contrário do que muitos afirmam, o movimento antivacina não é conservador, pois a sua finalidade não é conservar o pensamento a respeito da vacinação, mas regredir.

Nesse contexto, no passado o movimento antivacina mostrou-se presente no meio social brasileiro por meio da Revolta da Vacina, ocasionada pela falta de informação por parte do povo. Porém, na contemporaneidade, também existe uma justificativa para a existência desse movimento?

Contemporaneamente, o movimento antivacina foi acrescentado na lista feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de dez maiores ameaças à saúde em 2019, segundo o portal de notícias O Globo (2019, online), pois, segundo a organização, o movimento ameaça o progresso feito no combate às doenças evitáveis por meio da vacinação. Assim, diversos fatos influenciam diretamente na popularização de tal movimento, dentre eles, as fake news, impulsionadas pelos meios de comunicação presentes na sociedade contemporânea. Uma das fake news mais conhecidas constantemente utilizada pelos membros do movimento antivacina, é a que a vacina seria causadora do autismo e por isso crianças não deveriam ser vacinadas.

Dessa maneira, a sociedade atual é midiatizada, ou seja, a maioria das pessoas possuem acesso a algum meio de informação e esse fato facilita a propagação das fake news. Segundo o portal de notícias G1 (2018, online), segundo a ONU, mais da metade da população mundial usa internet. Esse percentual é mais acentuado nos países Europeus, os quais apresentavam, em 2018, 76,6% de sua população conectadas à internet. Ou seja, todas essas pessoas possuem acesso à informação a todo o momento e nem todas possuem fontes confiáveis ou conteúdos verídicos.

As fake news, propagadas por meio da mídia, especialmente pela internet, influenciam diretamente o comportamento da sociedade e isso não foi diferente com os adeptos ao movimento antivacina. Segundo Vasconcellos-Silva, Castiel e Griep (2015, online):

Segundo tais padrões, as crianças subimunizadas vivem sob condições sócio-econômico-educacionais adversas: filhos de mães mais jovens e solteiras com baixa escolaridade e residentes em vizinhanças pobres de grandes centros. Em contraste, as crianças absolutamente não imunizadas eram filhos (o sexo masculino predomina, por motivos explicitados adiante) de mães casadas, com alto nível de escolaridade, que residem em vizinhanças com renda acima da média nacional e contam com amplo acesso aos meios de comunicação de massa. Grande parte dos casais “não vacinadores” expressou enfáticas preocupações acerca dos efeitos ocultos das vacinas, sobretudo concernentes à condição neurológica do autismo. Também admitiram que seus pediatras exerciam pouca ou nenhuma influência sobre as decisões familiares nesse campo. Sabe-se que, entre as 17.000 crianças não vacinadas anualmente, uma significativa maioria reside em estados americanos que não obrigam os pais à vacinação desde que estes aleguem “motivos filosóficos”

Assim, por meio dessa passagem, fica claro que o problema não reside na falta de formação acadêmica da sociedade, pois como citado anteriormente, os pais das crianças absolutamente não imunizadas possuíam alto nível de escolaridade, entretanto, possuíam amplo acesso aos meios de massa, o que demonstra claramente a influência dos meios de comunicação na formação de pensamentos na contemporaneidade. Além disso, o medo por parte dos pais a respeito da possibilidade de seus filhos “contraírem autismo” também demonstra a influência midiática, já que tal informação é comprovadamente falsa. Essa comprovação é relatada pela revista Galileu (2019, online), a qual afirma que um novo estudo publicado na revista “Annals of Internal Medicine” aponta que vacinas não causam autismo.

Nesse ínterim, no passado, a falta de informação por parte da população culminou na revolta na vacina. Entretanto, na contemporaneidade, o excesso de informação fornecido pelos meios de comunicação, com menção especial à internet, também é um dos catalisadores acerca do movimento antivacina. Ou seja, tanto a falta quanto o excesso mostram-se prejudiciais à vida em sociedade.

Dessa forma, segundo o site da BBC (GRAGNANI, 2019, online), os apoiadores do movimento antivacina também utilizam plataformas de vídeo, tal qual o YouTube, para difundir seus pensamentos e o sistema de recomendação adotado pelo site facilita essa propagação. Segundo a matéria da BBC:

"Não sou eu que estou falando, são os fatos", diz um rapaz brasileiro para a câmera.

Os "fatos", segundo ele: "o vírus da zika foi criado pela família americana Rockefeller, enquanto Bill Gates usou sua fortuna para investir em vacinas. Ambos com o mesmo objetivo: reduzir a população mundial". O vídeo está disponível no YouTube, tem cerca de 825 mil visualizações e pode ser encontrado pela ferramenta de buscas. Uma propaganda interrompe o vídeo, o que significa que ele é monetizado - ou seja, rende lucro ao autor -, embora o YouTube tenha anunciado que vídeos com desinformação seriam impedidos de explorar esse recurso. Um vídeo igual, mas publicado em outra conta, tem quase 244 mil visualizações. Sem estar logada em qualquer conta no YouTube, a BBC News Brasil fez buscas na plataforma com os termos "vacina", "devo vacinar minha filha" e "devo vacinar meu filho". A maior parte dos resultados são vídeos com informações verídicas sobre a vacinação. Alguns, contudo, são vídeos contrários à vacinação. E, ao clicar nestes, a recomendação dos vídeos seguintes leva o usuário a outros vídeos antivacina, levando a uma espécie de "bolha" no YouTube.

Além disso, ainda de acordo com essa matéria, “O conteúdo dos vídeos brasileiros muitas vezes é copiado ou traduzido de vídeos antivacina americanos. Dois dos vídeos são de supostos médicos que contraindicam especificamente vacinas contra gripe e contra a febre amarela”. Assim, mesmo com diversos estudos realizados por especialistas que comprovam a eficácia da vacinação, o intenso acesso à informação colaborou com a divulgação de fake news que fazem muitas pessoas desacreditarem das pesquisas feitas por especialistas.

Para Flumignan (2018, online), em artigo publicado pelo site Justificando:

O poder de persuasão das fake news é incalculável. Com base nisto, caso haja demora em retirar o conteúdo falso da internet pode haver severas consequências eleitorais. Não se pode esperar o trâmite de uma ação judicial que, em sua maioria, é morosa e insuficiente para atingir o objetivo pleiteado de retirar imediatamente a notícia falsa da internet.

Percebe-se, assim, que o fator tempo assume nítida importância neste tipo de ilícito, pois, quanto maior o tempo para retirar uma notícia falsa da internet, maiores serão as consequências para o candidato e para os eleitores, podendo, inclusive, ser capaz de mudar o resultado do pleito. Neste cenário, demonstra-se mais razoável que eventual nova legislação a respeito das fake news utilizasse o sistema anterior ao Marco Civil da Internet, ou seja, o notice and take down, pois o período eleitoral é relativamente curto e não pode esperar uma determinação judicial para retirada de toda e qualquer fake news.

Logo, é possível traçar um paralelo entre as consequências da morosidade judicial para a retirada de fake news em épocas de eleição e entre o movimento antivacina. Em período eleitoral, um candidato pode ser desmoralizado e perder milhares de votos em decorrência da propagação de fake news a seu respeito, da mesma forma, o número de crianças vacinadas pode diminuir consideravelmente com a divulgação de notícias falsas, pois, ao ter acesso à essa informação, os pais podem decidir não vacinar os filhos.

Ainda segundo Flumignan (2018, online):

Não restam dúvidas de que o Marco Civil da Internet representa um avanço no trato jurídico das relações derivadas do uso da internet. No entanto, a legislação se mostra conflitante e insuficiente em alguns pontos com entendimentos e leis que beneficiam os usuários, principalmente quando o assunto é fake news.

Assim, para o mestre Flumignan, o ordenamento jurídico brasileiro não protege suficientemente as pessoas das fake news, logo, não é eficaz para o seu combate. Logo, com uma legislação ineficiente, a população fica mais exposta às notícias falsas e podem basear suas atitudes em informações erradas, a exemplo das informações utilizadas como base do movimento antivacina.

Dessa maneira, com uma legislação ineficiente que não detém a propagação de fake news, a população fica vulnerável e pode deixar-se convencer por mentiras acessadas na internet. Sendo assim, é possível afirmar que falta senso crítico por parte da sociedade, já que, como dito anteriormente, dentro da sociedade americana, as crianças não imunizadas eram oriundas de famílias com alto nível de escolaridade. Assim, fica exposto que, mesmo com acesso pleno e eficaz à informação, a população ainda acredita em fake news e aderem movimentos pautados em falácias, como o movimento antivacina.

Ou seja, o problema está na formação educacional crítica e não apenas na simples alfabetização ou acesso ao ensino superior. A carência reside na ausência de pensamento crítico, entretanto, em países com deficiência no sistema de ensino, essa carência pode ser agravada pela falta de acesso à uma educação de qualidade. Logo, fica claro que a educação que foca apenas em alfabetizar, mas não ensina o aluno a pensar de forma crítica não é libertadora e pode prejudicar toda a sociedade. Pois como afirmou Paulo Freire “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”.

Sobre os autores
Helen Correa Solis Neves

Graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (1996). Mestre em Direito Público pela Universidade Católica de Brasília (2005). Professora orientadora do artigo em questão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGO, Maria Eduarda; NEVES, Helen Correa Solis. Movimento antivacina contemporâneo à luz da obra Críton, de Platão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6786, 29 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79540. Acesso em: 22 dez. 2024.

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