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Desestruturação familiar e criminalidade juvenil:

reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares

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Agenda 13/03/2020 às 15:25

É possível defender que a desestruturação familiar é uma das origens da tendência à criminalidade observada em alguns adolescentes?

1 INTRODUÇÃO

A família é considerada a base da sociedade (art. 226 da Constituição Federal de 1988), e, em razão disso, possui especial atenção do Estado. Segundo concepção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), família é o conjunto de pessoas que residem em um mesmo domicílio, ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência (BERCOVICH; PEREIRA, 1997, p. 6).

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECREAD), Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, imputa à família o local onde a criança e o adolescente devem se desenvolver física e psicologicamente, e receber educação necessária à vida, assegurando-lhe, desse modo, o direito à convivência familiar e comunitária e a completa formação como pessoa natural.

De fato, crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ser criados no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, cabendo aos pais o exercício dos deveres de sustento, guarda e educação dos filhos menores.

É perceptível a importância da instituição familiar, fundamental à própria vida social, cujas funções principais são de natureza educadora, socializadora e psicológica. Atribui-se à família a responsabilidade de adequar o comportamento de seus entes aos valores da sociedade, transmitindo-lhes hábitos, linguagem e cultura, bem como contribuir para o equilíbrio, desenvolvimento afetivo e segurança emocional de seus membros.

Na realidade, essas recomendações não fazem parte de todo convívio familiar, pois ocorrem situações de conflitos e violência intrafamiliar, motivadas por maus tratos físicos, violência psicológica, abuso sexual, negligência, abandono e até mesmo problemas causados por separação conjugal, que podem provocar transtornos emocionais e psíquicos e implicações negativas na formação basilar dos filhos. Logo, fica claro que essas situações trazem consequências negativas ao indivíduo em fase de desenvolvimento, pois

[...] As figuras centrais de autoridade e modelo para os filhos são os próprios pais. A adolescência é um período de importantes modificações psicológicas, familiares e sociais. Devido a modificações corporais internas, o púbere procura estabelecer referências externas fixas. Se o ambiente apresenta modificações, o púbere pode agravar a sua confusão (TIBA, 1998, p. 87, grifo nosso).

É imperioso destacar que o histórico familiar dos pais, como o envolvimento com alcoolismo, tabagismo, uso e abuso de drogas ilícitas, violência doméstica, omissão de cuidado e autoridade também podem acarretar influências negativas em larga escala na formação da personalidade dos filhos, cujo alcance pode originar a tendência voltada para a prática de condutas criminosas pelos adolescentes.

Consciente de que a violência é dos principais problemas sociais brasileiros e que este fenômeno é complexo e multicausal, a família configura-se como um dos contextos em que pode determinar e manifestar a violência, o que influenciou a escolha do tema para este trabalho. 

Em verdade, o problema, antes intrínseco à esfera privada, transforma-se em uma questão social e, por via de consequência, em razão do desvio de conduta, constitui em demanda à estrutura da Segurança Pública e Justiça Criminal. A prática de atos infracionais pode ser um reflexo da capacidade do adolescente de buscar no meio social aspectos que deveriam ter sido incorporados a sua personalidade, mas não foram por deficiências nas relações familiares.

Isto posto, sendo a família o alicerce do desenvolvimento da criança e do adolescente, fonte da formação da personalidade individual e do enfrentamento da complexidade da convivência social, é possível defender que a desestruturação familiar seria uma das origens da tendência à criminalidade praticada por adolescentes?

Nesse trabalho, a hipótese levantada é de que a desestruturação familiar é um fator da perda da base de sustentação afetiva e de estabilidade, fundamentais no processo de construção da subjetividade da criança e do adolescente. A prática de atos infracionais pode ser um reflexo da capacidade do adolescente de buscar no meio social aspectos que deveriam ter sido incorporados a sua personalidade, mas não foram por deficiências nas relações familiares.

Essa problemática é estudada através de uma perspectiva sociológica e psicológica, que auxiliarão no embasamento teórico do tema proposto e sobre as quais se explicará a influência da desestrutura familiar na formação da personalidade da criança e do adolescente, bem como na tendência voltada para a prática de atos infracionais praticada por adolescentes.


2 FAMÍLIA: A BASE DA SOCIEDADE

Nas últimas décadas, as sociedades ocidentais testemunham mudanças nos padrões familiares que seriam inimagináveis para gerações anteriores. Entre as principais observações em torno dos perfis familiares estão a formação e a dissolução de famílias e lares e a mudança crescente de expectativa no seio das relações pessoais dos indivíduos.

Outras temáticas também se inserem na discussão, tais como: a crise da nupcialidade, aumento do número de divórcios e de relações monoparentais, surgimento das “famílias reconstituídas” e das famílias homessexuais, crescimento da coabitação entre jovens (GIDDENS, 2005, p. 155).

Trata-se de uma controvérsia: embora a estrutura familiar tenha naturalmente sofrido mudanças no decorrer do tempo, a família continua, indiscutivelmente, considerada uma das bases mais significativas da sociedade.

É importante frisar que a família moderna pauta-se em um conceito mais amplo, de modo que abraça os vários arranjos familiares, e, especialmente, reconhece o elemento da afetividade, essencial ao desenvolvimento social e psíquico da pessoa humana. Nos dizeres do jurista Washington de Barros Monteiro (2004, p. 1), a família representa o núcleo fundamental da sociedade, onde “originam-se e desenvolvem-se hábitos, inclinações e sentimento que decidirão um dia a sorte do indivíduo”.

Se considerarmos a história humana desde a antiguidade, é de fácil percepção o fato de que o homem sempre dependeu do outro para viver. É o contato com o grupo social que concede ao indivíduo a possibilidade de desenvolver as chamadas características humanas e aprimorar suas relações sociais. Por este motivo, as teorias sociológicas asseguraram que a sociedade precede o próprio indivíduo, sendo o ser humano um produto da interação social.

Nessa temática, é prudente explicar que as relações sociais desenvolvem-se por meio das instituições sociais, que incorporaram valores e procedimentos comuns e atendem a certas necessidades básicas da sociedade. Antes de explicitar a importância da família no processo de socialização do indivíduo, é válido mencionar as funções mais importantes exercidas pela instituição familiar, que são:

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  1. Biológica: relacionada à reprodução da espécie e satisfação das necessidades sexuais.
  2. Socialização: refere-se à transmissão da herança social e cultural através da educação dos filhos (linguagem, usos, costumes, valores, crenças).
  3. Social: diz respeito ao papel que a família exerce ao determinar o status inicial do indivíduo. Cada criança começa a vida com o status de classe de sua família.
  4. Assistencial: relaciona-se a responsabilidade que a família tem perante a proteção física, econômica e psicológica de seus membros.
  5. Econômica: a família se constitui numa unidade de produção além do consumo (DIAS, 2006, p. 153-154).

É importante considerar que, em variados níveis, a família, se comparada a outras instituições sociais (escola, igreja), demonstra aspectos singulares. Não é cedo para asseverar que a família influencia não somente no desenvolvimento físico e psíquico das crianças, mas também é a base que fundamenta as atitudes, emoções e decisões humanas no período da adolescência, juventude, e por que não dizer por toda a vida.

2.1 O PAPEL DA FAMÍLIA NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO HUMANA

A exposição até aqui desenvolvida pretendeu comprovar a função basilar que a família possui em toda sociedade, muito embora venha assumindo no passar dos anos arranjos diferenciados, o seio familiar mostra-se como o parâmetro para a formação e desenvolvimento social e psíquico das pessoas. Nesta altura, aliado aos objetivos deste trabalho, constitui um dos interesses, explicar a relevância do papel da família no processo de socialização humana.  

Alguns atores são listados como os principais agentes de socialização: a família, a escola, os grupos de “status”, os meios de comunicação de massa e os grupos de referência. Todavia, atribui-se à família “o principal agente de socialização, é o agente básico e o mais importante no qual o indivíduo é influenciado num primeiro momento ao nascer, e mantém essa influência de alguma forma durante parte de sua vida” (DIAS, 2006, p. 72).

Em outras palavras, compreende-se que a socialização é um processo da vida humana no qual o indivíduo desenvolve a aprendizagem do modo de vida da sociedade - que inclui a cultura, moral, costumes, hábitos - e assimila a importância do seu papel-social enquanto indivíduo como membro do grupo social.

Anthony Giddens (2005, p. 42) leciona que a socialização é o processo pelo qual as crianças, ou outros novos membros, aprendem o modo de vida de sua sociedade e se tornam pessoas autoconscientes e instruídas, hábil da cultura na qual ela nasceu. A socialização é o principal canal para a transmissão da cultura através do tempo e das gerações.

Os sociólogos entendem que o processo de socialização divide-se em duas fases. A primeira delas, a chamada socialização primária, acontece na primeira infância, onde a família, principal agente de socialização, ensina a língua, moral e os padrões básicos de comportamento que formam a base para o aprendizado posterior; já a socialização secundária, ocorre mais tarde, ainda na infância, e maturidade, período em que as interações sociais auxiliam os indivíduos a aprenderem os valores, normas e crenças que constituem os padrões de sua cultura. Neste momento, há a necessidade de atuação de outros agentes na socialização, podendo ser listados: escolas, grupos de iguais, organizações, mídia e trabalho (GIDDENS, 2005, p. 42).

Por fim, fica claro que o processo de socialização humana deve pautar-se na afetividade da família, já que a educação recebida pela criança recobre vários objetivos, essenciais à aquisição de referências e formação da personalidade. Ademais, quando os laços familiares se fragilizam e – em casos extremos – se desintegram, condutas desviantes ou delinquentes podem surgir (FERRIOL; NORECH, 2007, p. 107-108).

2.2 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

As Constituições brasileiras de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 dedicaram atenção para a família, particularmente para definir a indissolubilidade do casamento e instituir a legitimidade da família, não reconhecendo outra forma senão a proveniente da celebração do matrimônio, civil ou religioso, com efeitos civis. O texto legal das disposições constitucionais citadas revelava uma sociedade patriarcal e submissa a autoridade paterna e marital (COUTO, 1999, p. 33).

A rigor, a legislação constitucional tornou-se menos discriminatória a partir do momento em que a sociedade foi mudando seu caráter. Dessa forma, a mulher ganhou papel igualitário no âmbito da atuação jurídica e social. Prova disso é o inciso primeiro do 5º. da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que indica o direito a tratamento igualitário nas relações entre homens e mulheres. No mesmo sentido, o art. 226, parágrafo quinto, da CF/88, prevê que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

Com base nessas disposições legais, destoa que os princípios informadores do Direito consideram as relações jurídicas entre os sujeitos dissociadas da diferenciação dos sexos. De forma que tem caminhado junto com a ciência quanto à realidade nivelada da importância materna e paterna na formação sociológica e psicológica do indivíduo.

É de sumo valor entender que a obrigação de cuidar dos filhos é responsabilidade não somente dos pais, mas, em especial, a estes pertence. Daí porque falar da essência do seio familiar para o desenvolvimento da criança e do adolescente, lugar de onde ele extrai parâmetros de sua criação social e psíquica como pessoa humana.

A partir do princípio da proteção integral referenciado pela Constituição Federal pode-se interpretar, no mais, que “é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, vexatório e constrangedor” (art. 18 do ECREAD).

Outro ponto a que se deve destacar é o direito à convivência familiar (art. 227 da CF/88 e art. 19 do ECREAD), que exalta a importância da família “para a criação e educação da criança e do adolescente, pois será justamente em companhia de seus pais e demais membros que eles terão condições de um melhor desenvolvimento” (NOGUEIRA, 1998, p. 34). O vínculo familiar torna-se tão imprescindível para o desenvolvimento físico e mental da criança e do adolescente que ganhou status de princípio no ordenamento jurídico brasileiro.

O art. 4º. do ECREAD disciplina o princípio da prioridade absoluta, que tem como ponto crucial o planejamento e a execução das políticas públicas, que precisam priorizar o atendimento e a preservação dos direitos da população infanto-juvenil. Da mesma forma, as normas e os operadores do Direito devem ter à frente o melhor interesse da criança e do adolescente.

Por fim, percebe-se que o arcabouço jurídico brasileiro preocupa-se em atribuir autonomia privada às relações jurídicas da família – a base da sociedade e fonte de desenvolvimento de qualquer indivíduo – não esquecendo que nessa discussão o que deve sempre prevalecer é o bem-estar da criança e do adolescente e proteção de seus interesses e direitos fundamentais tão especiais. 


3 DESESTRUTURAÇÃO FAMILIAR

Para situar, esta parte da pesquisa procurou cumprir com um dos objetivos específicos propostos pelo trabalho, que é o de identificar os principais elementos que caracterizam a desestruturação familiar e que podem tornar-se fatores de desequilíbrios emocionais e psíquicos à formação basilar das crianças e adolescentes.

Como diz Anthony Giddens (2005, p. 166), as relações familiares – entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e irmãs, ou entre parentes – podem ser ternas e gratificantes. Contudo, este cenário pode ser palco das mais acentuadas tensões, abusos e violências, o que pode transformar, a depender do grau e da permanência destes problemas, a situação de normalidade da família unida pelos laços de afetividade em uma família desestruturada. 

O que importa na análise deste trabalho é saber que, além do efeito da pauperização das famílias, o processo educativo e desenvolvimento psíquico aos quais são submetidas às crianças e adolescentes de famílias desestruturadas, é uma variável importante no desencadeamento de comportamentos anti-sociais (GOMIDE, 1990, p. 32).

Essas famílias são denominadas de “famílias em situação de violência”, e o tipo de violência, como de “violência intrafamiliar”. Os especialistas na área de Psicologia consideram que os danos na área sociopsicológica não se restringem somente à vítima direta da violência, mas também ao grupo familiar, criando um problema social de graves proporções (MUSZKAT, 2003, p. 188).

Entre as explicações que apontam as causas da violência intrafamiliar estão

[...] a combinação entre a intensidade emocional e a intimidade pessoal características da vida familiar. Os laços familiares estão normalmente carregados de fortes emoções, misturando amiúde amor e ódio. As brigas que surgem no ambiente familiar podem desencadear antagonismos que não seriam sentidos da mesma forma em outros contextos sociais. O que parece um incidente sem importância pode precipitar gigantescas hostilidades entre os cônjuges ou entre pais e filhos. Um segundo fator é a questão de que um bocado de violência dentro da família é na verdade tolerada e até mesmo aprovada. Embora a violência familiar socialmente sancionada seja de natureza relativamente confinada, ela pode facilmente propagar-se em formas mais severas de agressão (GIDDENS, 2005, p. 157).  

Como o tema da violência assumiu grande importância para a saúde pública em função de sua magnitude, gravidade, vulnerabilidade e impacto social sobre a saúde individual e coletiva, os elementos da desestruturação familiar que serão indicados aqui partem de um material compilado pelo Ministério da Saúde, intitulado “Caderno de Atenção Básica – Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço”, que foi publicado em 2002 com o propósito de mobilizar e fortalecer as ações, serviços e profissionais de saúde na perspectiva de assumir uma nova atitude e colaboração em relação ao problema.

O material editado pelo Governo Federal, através do Ministério da Saúde, conceitua a violência intrafamiliar, como

[...] toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 15).

O Caderno de Atenção Básica, objeto do estudo, descreve que a violência intrafamiliar pode se manifestar de várias formas, em diferentes graus de severidade e periodicidade. Julga-se pertinente listar os tipos de violência intrafamiliar e algumas formas de manifestação, segundo o Ministério da Saúde (2002, p. 17-22):

a) Violência física: Tapas, empurrões, socos, mordidas, chutes, queimaduras, cortes, estrangulamento, lesões por armas ou objetos, obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou inadequados, álcool, drogas ou outros, substâncias, inclusive alimentos, tirar de casa à força, amarrar, arrastar, arrancar a roupa, abandonar em lugares desconhecidos.

b) Violência sexual: Estupro, sexo forcado no casamento, abuso sexual na infância e/ou adolescência, abuso incestuoso, assédio sexual, carícias não desejadas, penetração oral, anal ou genital, com pênis ou objetos de forma forçada, exposição obrigatória à material pornográfico, exibicionismo e masturbação forçados, uso de linguagem erotizada.

c) Violência psicológica: Insultos constantes, humilhação, desvalorização, chantagem, isolamento de amigos e familiares, ridicularização, rechaço, manipulação afetiva, exploração, negligência (atos de omissão a cuidados e proteção contra agravos evitáveis como situações de perigo, doenças, gravidez, alimentação, higiene, entre outros), ameaças.

d) Violência econômica ou financeira: Roubo, destruição de bens pessoais (roupas, objetos, documentos, animais de estimação e outros) ou de bens da sociedade conjugal (residência, móveis e utensílios domésticos, terras e outros), recusa de pagar a pensão alimentícia ou de participar nos gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar, uso dos recursos econômicos de pessoa idosa, tutelada ou incapaz.

e) Violência institucional: Peregrinação por diversos serviços até receber atendimento; falta de escuta e tempo para a clientela, frieza, rispidez, falta de atenção, negligência, maus-tratos dos profissionais para com os usuários, motivados por discriminação, abrangendo questões de raça, idade, opção sexual, gênero, deficiência física, doença mental, violação dos direitos reprodutivos, desqualificação do saber prático, da experiência de vida, diante do saber científico, violência física (por exemplo, negar acesso à anestesia como forma de punição).

Pode-se perceber que a violência intrafamiliar apresenta-se sob diversas formas, com efeitos sintomáticos, de ordem física, sexual ou emocional, razão pela qual merecem demanda políticas e programas específicos de atendimento à família que possam atuar sobre as circunstâncias associadas ao ciclo da violência.

A violência física, do ponto de vista clínico, pode ser mais facilmente diagnosticada por uma equipe de saúde dado os sinais que provocam nos órgãos internos e externos do corpo, no entanto o que se deve apurar, concomitantemente, são as implicações emocionais que estes atos também podem causar. Cabe observar que, da mesma forma, as agressões sexuais podem ser apuradas pelas lesões nos órgãos sexuais e possíveis doenças sexualmente transmissíveis, gravidez, mas, além disso, tendem a influenciar o aparecimento de sintomas psicológicos.

A violência psicológica, que se manifesta através de insultos, humilhação, desvalorização, isolamento, pode ser traumática às vítimas, gerando inclusive efeitos sobre a saúde caso não sejam devidamente tradados por profissionais especializados.  As violências econômica/financeira e institucional caracterizam o estado de vulnerabilidade social ao qual está submetido a família, seja por falta ou carência de suprimentos econômicos, seja pela dificuldade ou problemas de acesso e atendimento aos serviços básicos e fundamentais à vida (saúde, educação, segurança). 

Outra informação importante demonstrada pelo documento do Ministério da Saúde é que o ambiente familiar muitas vezes revela a existência de condições particulares individuais, familiares e coletivas, que podem auxiliar na identificação de fatores de risco da violência intrafamiliar e, consequentemente, subsidiar o prognóstico e a prevenção do problema. Alguns dos fatores de risco elencados pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2002, p. 23-26) são:

1º) Na família: distribuição desigual de autoridade e poder; famílias cujas relações são centradas em papéis e funções rígidas; famílias sem diferenciação de papéis; famílias com alto nível de tensão; estrutura de funcionamento fechada; situação de crise, perdas (separação do casal, desemprego, morte); modelo familiar violento (maus tratos, abuso na infância e abandono); abuso de drogas; história de antecedentes criminais.

2º) Na relação do pais: indicativos de violência em relacionamentos anteriores; dinâmica agressiva, isolamento e fechamento da relação conjugal; elevado tempo de convivência em situação de violência; baixa capacidade de negociação frente a conflitos; elevado nível de dependência econômica e/ou emocional dos parceiros; baixa auto-estima dos parceiros; sentimento de posse exagerado; alcoolismo e/ou drogadição.

3º) Na criança: a) Referentes aos pais: histórico de maus-tratos, abuso sexual ou rejeição/abandono; gravidez na adolescência, não planejada, de risco; depressão na gravidez; pai/mãe com múltiplos parceiros; expectativas altas em relação à criança; ausência ou pouca manifestação de afeto; estilo disciplinar rigoroso; possessividade; b) Referentes à criança: Crianças separadas da mãe ao nascer por doença ou prematuridade; crianças nascidas com mal-formações congênitas ou doenças crônicas (retardo mental, hiperatividade); crianças com falta de vínculo parental nos primeiros anos de vida.

Sem dúvida, o trabalho de identificação dos tipos de violência intrafamiliar, as suas formas de manifestação e os fatores de risco determinaram a amplitude e gravidade da questão, e em especial, foram contundentes para demonstrar os elementos que abarcam a desestruturação familiar.

Sabe-se que a família é o espaço privilegiado para a garantia de desenvolvimento, proteção das crianças e demais membros, por isso que a questão da violência intrafamiliar deve ser tratada com rigor, ainda mais porque, como avalia o doutor em Educação Pedro Demo (2002, p. 199), a desagregação familiar

[...] é geralmente apontada como fator importante na proliferação de crianças e adolescentes em situação de rua, com realce para a condição de marginalização socioeconômica. Isso pode levar ao aumento de gravidez precoce, à valorização de ambientes arriscados fora da família ou do ambiente familiar, à formação de gangues e fenômenos similares, ao baixo desempenho escolar, a distanciamentos geracionais ainda maiores (grifo nosso).

Vê-se, assim, que a violência intrafamiliar é um problema social que merece contínuo acompanhamento, discussão e formação de redes sociais com a composição de diversos atores, nas várias esferas de poder, incluindo, neste caso, os profissionais de segurança pública, justiça criminal, saúde, psicólogos, assistentes sociais, membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. 

Sobre a autora
Sabrina Oliveira de Figueiredo

Doutoranda em Administração na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre em Administração pela UFES (2015), Pós-graduada em Cidadania pela Escola Superior do Ministério Público (2010) e em Gestão Integrada em Segurança Pública pela Universidade Vila Velha em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública (2011) e graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (2008).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Sabrina Oliveira. Desestruturação familiar e criminalidade juvenil:: reflexões sobre uma possível relação à luz de abordagens interdisciplinares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6099, 13 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79709. Acesso em: 22 dez. 2024.

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