1. INTRODUÇÃO
No Brasil, vive-se um estado de coisas inconstitucional, já que a maioria dos Entes federativos não consegue adimplir, no prazo constitucionalmente previsto, seus débitos judiciais, em flagrante desobediência ao comando do art. 100 da Constituição Federal (CF).
Segundo informação contida no Parecer do Relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 212-A/2016, Deputado Arnaldo Faria de Sá, “estima-se hoje que os débitos públicos decorrentes de condenações judiciais já superam 100 bilhões de reais, um passivo público que tem maior peso para os Estados, Distrito Federal e Municípios.”
No epicentro desse imbróglio jurídico, político e social, estão os credores que, após longo processo judicial, reconhecido o direito ao crédito, ainda se deparam com a dificuldade de pagamento pela Fazenda pública.
O objeto de nosso estudo será a figura do credor superpreferencial, modalidade criada pela Emenda Constitucional (EC) n.º 62/2009, com modificações posteriores pelas EC’s n.ºs 94/2016 e 99/2017. É que diante da demora no adimplemento dos precatórios, o constituinte reformador deu preferência de pagamento a certo grupo de pessoas, a saber: pessoas acima de 60 anos, de pessoas portadoras de doenças graves ou de pessoas com deficiência, para que esses grupos recebam de forma mais expedita o crédito a que fazem jus.[1] Somente após o pagamento desses créditos, seguem-se os pagamentos dos créditos preferenciais (demais créditos alimentares) e, por fim, dos créditos comuns (todos aqueles não incluídos nas categorias anteriores).
A classificação em crédito superpreferencial tradicionalmente importava para fins de cronologia do pagamento de precatório, já que, para fins de Requisição de Pequeno Valor (RPV), todos eram pagos em tempo expedito.
Ocorre que a Resolução nª 303/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu art. 9º, §3º, determinou que os créditos superpreferenciais fossem pagos na modalidade de RPV, limitado o pagamento nessa modalidade ao triplo (ou quíntuplo, durante o período de regime especial para pagamento dos precatórios) do limite para pagamento por RPV.
Explico melhor: imagine-se um crédito alimentar de R$ 65.000,00, titularizado por pessoa de 65 anos, perante o Município “X”, que estabeleceu legalmente o limite de R$ 10.000,00 para expedição de RPV. Na forma que se trabalhava até a edição da Resolução n.º 303 do CNJ, de 18 de dezembro de 2019, seria expedido um precatório de R$ 65.000,00 (sessenta e cinco mil reais), sendo que o crédito superpreferencial do autor permitiria que ele recebesse R$ 50.000,00[2] (cinquenta mil reais) de forma antecipada, é dizer, antes de outros precatórios expedidos anteriormente ao dele, mas na modalidade de precatório. Nos termos da referida Resolução, o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) será expedido por RPV, com pagamento em até 60 dias, sendo o restante do valor pago na modalidade de precatório, seguindo-se a ordem cronológica de inscrição.
A alteração é substancial e de grande impacto prático, tanto para o credor, notadamente pelas características peculiares, quanto para o devedor.
Pretende-se com este artigo discutir a constitucionalidade da modalidade de pagamento do crédito superpreferencial, através dessa “super RPV” expedida com valores que podem chegar ao triplo ou quíntuplo do montante legalmente estabelecido para o teto da RPVs.
Antes de tratar diretamente da problemática em si, falar-se-á sobre as alterações trazidas pelas EC’s n.ºs 62/2009, 94/2016 e 99/2017, a interpretação que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho da Justiça Federal (CJF) tinham sobre o assunto, para, ao final, analisar a modificação trazida pela Resolução n.º 303/CNJ.
2. A SAGA NA BUSCA DE SOLUCIONAR O PROBLEMA DOS PRECATÓRIOS NO BRASIL: EMENDAS CONSTITUCIONAIS 62/2009, 94/2016 e 99/2017.
2.1. Breves apontamentos sobre precatório
O precatório é um ofício enviado pelo juiz da execução ao Presidente do Tribunal, para que este, dentro da sistemática constitucional, ordene o pagamento dos débitos da Fazenda pública, a partir da alocação de verbas que foram destinadas pelo orçamento da entidade devedora.
O precatório foi concebido para moralizar o pagamento dos débitos estatais, a fim de que isso não ficasse à mercê do arbítrio do administrador público, cuja sequência e temporalidade de pagamento fossem submetidas a critérios não republicanos.
Os precatórios apresentados pelo Presidente do Tribunal à entidade devedora até 1º de julho devem ser incluídos no orçamento do ano vindouro para pagamento. (CF, art. 100, §5º)
A desorganização administrativo-financeira dos entes públicos brasileiros gerou um estado de calote institucionalizado para os credores da fazenda pública, o que acarreta num enorme descrédito ao Judiciário, que encontra dificuldades para satisfazer as obrigações de pagar quantia contra a fazenda.[3]
Como forma de diminuir a agonia dos credores, há a modalidade de pagamento denominada de requisição de pequeno valor (RPV), que se trata de ofício enviado pelo juiz da execução ao Presidente do Tribunal (ou diretamente ao devedor, nas hipóteses constitucionais) para que este, dentro da sistemática constitucional, ordene o pagamento dos débitos da fazenda pública no prazo máximo de 60 dias.
De uma simples visão, percebe-se que a sistemática de pagamento da RPV é bem mais expedita quando comparada à do precatório, o que, sem sombra de dúvidas, é bem mais vantajoso para o credor. Todavia, a RPV só é possível quando o valor total do débito não supera 60 salários-mínimos no âmbito federal ou o teto estabelecido pela entidade devedora, desde que não inferior ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social (CF, art. 100, §4º)
O grande problema tem sido o pagamento dos precatórios. Os entes públicos declaradamente não conseguem adimplir seus débitos, não se respeitando o mandamento constitucional de incluir no orçamento as dívidas apresentadas por precatório até 1º de julho do ano anterior.
2.2. A edição da Emenda Constitucional n.º 62/2009
Para atender ao reclamo dos governantes, o Parlamento brasileiro editou a Emenda Constitucional n.º 62/2009, criando um regime especial para pagamento dos precatórios pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, com possibilidade de estender por 15 anos o adimplemento. Instituía-se, como ocorrera outrora com a EC n.º 30/2000, uma moratória constitucional para pagamento das condenações judiciais.
O escopo foi, por um lado, diante do estado de coisa inconstitucional, permitir aos entes federados que se organizem para que venham, em médio prazo, tornarem-se adimplentes com os pagamentos das condenações judiciais, respeitando, portanto, a Constituição. Por outro lado, impõe medidas financeiras para que referidos entes possuam capacidade de pagamento, para além de arbítrios políticos.
Mais diretamente ligado ao objeto deste trabalho, A EC n. º 62/2009, sensível à situação delicada de muitos credores, institui a modalidade de crédito superpreferencial para idosos e doentes graves, deixando o art. 100, §2º, da CF com a seguinte redação:
"Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório."
Nos termos do Parecer do Relator da matéria na Comissão Especial de Regime de Pagamento de Precatórios (PEC 351/2009), o então Deputado Eduardo Cunha, asseverou-se que:
"Isso não é coerente com o sistema jurídico vigente, por dois motivos: primeiro porque, a expedição do precatório, apesar de ser uma atividade administrativa vinculada, integra o processo judicial movido contra o Estado. Constitui-se uma fase indispensável nas execuções contra a Fazenda Pública, haja vista o pagamento do crédito executado só se perfazer por esse meio, podendo-se dizer que se trata de um ato processual realizado no âmbito administrativo; segundo porque, não faria o menor sentido estabelecer prioridade de tramitação para os processos judiciais cujas partes sejam idosos, e chegada a fase administrativa de expedição do precatório, o processo emperrar sob a alegação de que a celeridade prevista no CPC diria em respeito, apenas, aos atos e diligências judiciais. Tal interpretação, excessivamente, formalista não se coaduna com a finalidade da lei e com o Estado Democrático de Direito."
O argumento para a inserção de tratamento diferenciado para os idosos é válido e legitimo, outorgando-lhe prioridade na tramitação do procedimento administrativo de pagamento do precatório.
2.3. O impacto jurídico do julgamento conjunto das ADI’s de n.ºs 4.357 e 4.425 pelo Supremo Tribunal Federal
A Emenda Constitucional n.º 62/2009 trouxe grande e profunda modificação na sistemática de pagamento dos precatórios. Muitos de seus dispositivos normativos tiveram a constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), através das Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.ºs 4357 e 4425.
No que nos interessa por ora, o STF no julgamento conjunto das referidas ações, apreciou a constitucionalidade: a) da sistemática de “superpreferência” a credores de verbas alimentícias quando idosos ou portadores de doença grave; e b) da limitação da preferência a idosos que completem 60 (sessenta) anos até a expedição do precatório.
Quanto ao primeiro ponto, o STF assentou que:
"O pagamento prioritário, até certo limite, de precatórios devidos a titulares idosos ou que sejam portadores de doença grave promove, com razoabilidade, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e a proporcionalidade (CF, art. 5º, LIV), situando-se dentro da margem de conformação do legislador constituinte para operacionalização da novel preferência subjetiva criada pela Emenda Constitucional nº 62/2009."[4]
Quanto ao segundo ponto, firmou-se a tese de que:
"A expressão “na data de expedição do precatório”, contida no art. 100, §2º, da CF, com redação dada pela EC nº 62/09, enquanto baliza temporal para a aplicação da preferência no pagamento de idosos, ultraja a isonomia (CF, art. 5º, caput) entre os cidadãos credores da Fazenda Pública, na medida em que discrimina, sem qualquer fundamento, aqueles que venham a alcançar a idade de sessenta anos não na data da expedição do precatório, mas sim posteriormente, enquanto pendente este e ainda não ocorrido o pagamento."[5]
Segundo o voto-vencedor do Min. Luiz Fux, “o Min. relator rejeitou a arguição de inconstitucionalidade, forte no argumento de que o regime de “superpreferência”, por ter sido originalmente criado pela própria EC nº 62/2009, não possuía contornos anteriores na Carta de 1988, de sorte que o legislador detinha liberdade para criá-lo limitadamente, isto é, dentro de balizas bem definidas.”
2.4. As Emendas Constitucionais n.ºs 94/2016 e 97/2017
Como visto, o julgamento conjunto das ADI’s 4425 e 4357, ocorrido em 25 de março de 2015, importou na declaração de inconstitucionalidade de vários dispositivos importantes da EC n.º 62/2009. Para que não houvesse um “vácuo normativo” quanto ao pagamento dos precatórios, o STF decidiu normatizar de forma transitória a questão, até que o Congresso editasse nova emenda constitucional.
A Emenda Constitucional n.º 94, de 15 de dezembro de 2016, foi editada para regulamentar o regime de pagamento de débitos públicos, diante do reconhecimento de inconstitucionalidade pelo STF. Acatou os fundamentos da decisão proferida pela Suprema Corte, normatizando em sintonia com ela, num verdadeiro espírito de diálogo institucional.
No que nos importa mais diretamente, a referida Emenda apenas modificou a redação do §2º do art. 100, para acrescentar as pessoas com deficiência para, ao lado dos idosos e dos portadores de doença grave, titularizarem o crédito superpreferencial de natureza alimentar.
A Emenda Constitucional n.º 99/2017, por sua vez, tendo por foco apenas aquilo que nos interessa de maneira especificada, incluiu o §2º ao art. 102 do Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias (ADCT), para que
"Na vigência do regime especial previsto no art. 101 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, as preferências relativas à idade, ao estado de saúde e à deficiência serão atendidas até o valor equivalente ao quíntuplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º do art. 100 da Constituição Federal, admitido o fracionamento para essa finalidade, e o restante será pago em ordem cronológica de apresentação do precatório."
Ou seja, de ordinário, o crédito superpreferencial é aquele limitado ao triplo do valor previsto para RPV do respectivo ente público. Nos termos do art. 102, §2º, do ADCT, enquanto perdurar o regime especial de pagamento de precatórios, o crédito superpreferencial será estendido ao quíntuplo do valor previsto para RPV do respectivo ente público.
Objetiva-se, com tal medida, enquanto permanecer a situação excepcional, fazer com que os titulares do crédito superpreferencial possam receber, no menor espaço de tempo, a maior quantia possível.
3. DO ESTADO DA ARTE
Até a edição da Resolução n.º 303, de 18 de dezembro de 2019, do CNJ, o entendimento assentado sobre o crédito superpreferencial era de que ele não importava ordem de pagamento imediato, apenas ordem de preferência, conforme art. 17 da Resolução n.º 458/2017, do Conselho da Justiça Federal (CJF).
O entendimento assentado pela referida Resolução do CJF dialogava com o entendimento remansoso do STF[6], no sentido de que os créditos de natureza alimentar, ainda que submetidos a uma ordem cronológica preferencial de pagamento, submeter-se-iam ao rito do precatório.
Merece destaque o assentado no voto-vencedor do Min. Luiz Fux na ADI n.º 4.425[7]:
"Sabe-se que foi a redação original da Constituição Federal de 1988 que inovou, no histórico constitucional brasileiro, ao estabelecer um regime diferenciado para os créditos de natureza alimentar contra a Fazenda Pública no universo dos precatórios judiciais (CF/88, art. 100, caput, primeira parte). Fundou-se tal regime na consideração da premência a que se sujeitam os titulares de créditos alimentares não adimplidos, já que intimamente ligados a necessidades essenciais, assim merecedores de um tratamento privilegiado em face dos demais débitos judiciais da Fazenda. Discutiu-se muito, após a entrada em vigor da Carta, se tal inovação teria o condão de simplesmente retirar os créditos alimentares do sistema de precatórios, para que com isso fosse devido o pagamento imediato pela Fazenda Pública (...). Referida tese restou vencida nesta Suprema Corte a partir do julgamento da ADIn nº 47/SP, Rel. Min. Octavio Galloti, assentando-se o entendimento de que os créditos alimentares estão submetidos a uma ordem cronológica preferencial para satisfação dos respectivos precatórios, em sequenciamento paralelo à ordem cronológica dos demais credores da Fazenda, conforme hoje afirma a Súmula 655 deste Tribunal (...)."
A matéria é objeto da Súmula n.º 655 do STF, com o seguinte enunciado:
"A exceção prevista no art. 100, caput, da Constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza."
Ou seja, a tese jurídica formada é no sentido de que o regime constitucionalmente diferenciado dos créditos alimentares não dá direito automático ao pagamento por RPV, mas “apenas” a uma preferência absoluta dos créditos de natureza alimentícia sobre aqueles de caráter meramente comum.
Nesse sentido vinha sendo a interpretação[8] e aplicação também para os créditos denominados superpreferenciais, de que se tratavam de um regime constitucionalmente superdiferenciados, pois teriam máxima preferência na ordem cronológica de pagamento dos precatórios, mas não os transformavam em RPV. Ora, dentro da teoria de precedentes, situações semelhantes demandas respostas normativas semelhantes (treat like cases alike).
Mas aí veio a Resolução n.º 303, de 18 de dezembro de 2019, do CNJ. Vamos à análise dela.