Capa da publicação Super RPV e crédito superpreferencial: inconstitucionalidade da proposta do CNJ
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O super RPV e o crédito superpreferencial:

inconstitucionalidade do art. 9º, §3º, da Resolução 303/2019 do CNJ

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07/05/2020 às 15:50
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4. O ART. 9º, §3º, DA RESOLUÇÃO N.º 303/2019 DO CNJ, O CRÉDITO SUPERPREFERENCIAL E A “SUPER RPV”.

A Resolução n.º 303, de 18 de dezembro de 2019, do CNJ, dispõe sobre a gestão dos precatórios e respectivos procedimentos operacionais no âmbito do Poder Judiciário.

No art. 1º, afirma que “a expedição, gestão e pagamento das requisições judiciais previstas no art. 100 da Constituição Federal são disciplinadas no âmbito do Poder Judiciário pela presente Resolução. Parágrafo único. Os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, o Conselho da Justiça Federal e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho, no âmbito das respectivas competências, expedirão atos normativos complementares.”

Daí se percebe que se trata de norma infraconstitucional, com caráter geral e abstrato, que regulamenta diretamente a norma constitucional, cabendo aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, ao Conselho da Justiça Federal e ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, no âmbito das respectivas competências, expedir atos normativos complementares.

Nesse sentido, o art. 81 determina que “os tribunais deverão adequar prontamente seus regulamentos e rotinas procedimentais à gestão e à operacionalização da expedição, processamento e liquidação de precatórios e requisições de pagamento de obrigações de pequeno valor às disposições contidas nesta Resolução”.

Especificamente sobre o crédito preferencial, objeto deste trabalho, o art. 2º, III, considera crédito superpreferencial “a parcela que integra o crédito de natureza alimentar, passível de fracionamento e adiantamento nos termos do art. 100, §2º, da Constituição Federal, e art. 102, §2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT”.

Esse crédito de natureza alimentar, titularizado por idosos, portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, será pago com prioridade sobre todos os demais, até o equivalente ao triplo fixado em lei como obrigação de pequeno valor, admitido o fracionamento do valor da execução para essa finalidade.” (Resolução n.º 303/2019 - CNJ, art. 9º, caput e CF, art. 100, §2º)

Enquanto vigente o regime especial[9], o crédito superpreferencial será de até o quíntuplo daquele estabelecido em lei para pagamento por RPV. (Resolução n.º 303/2019 - CNJ, art. 74 e art. 102, §2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT)

Até agora, a Resolução em análise não trouxe nada de novo. O imbróglio começa quando, em seu art. 9º, §3º, preceitua que deferido o pedido de pagamento por crédito superpreferencial, o juízo da execução expedirá requisição judicial de pagamento, distinta de precatório. Como só há duas modalidades de requisitório de pagamento, não sendo precatório, a Resolução determina a expedição de RPV.

Qual o impacto prático disso? Retomemos o exemplo fictício que foi trazido na Introdução deste artigo. Um idoso de 65 anos é titular de crédito alimentar de R$ 65.000,00, em decorrência de condenação judicial, perante o Município “X”, que estabeleceu legalmente o limite de R$ 10.000,00 para expedição de RPV.

Nos termos da Resolução do CNJ em questão, e caso o Município esteja enquadrado no regime especial de pagamento por precatórios, o juízo da execução deverá expedir uma “super RPV” de R$ 50.000,00 e um precatório de R$ 15.000,00.

A “super RPV” será paga em até 60 dias de sua inscrição no Tribunal; já o precatório será pago preferencialmente, por se tratar de natureza alimentar, mas respeitada a cronologia desse tipo de precatório.

Caso o Município não estivesse enquadrado no Regime Especial, o valor da “super RPV” será até o triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor; é dizer, seria possível expedir uma RPV de R$ 30.000,00 e um precatório de R$ 35.000,00.

E qual o problema? O problema está na interpretação que a Resolução dá à expressão constitucional “admitido o fracionamento”, a permitir a expedição de parte do valor pela “super RPV” e a outra parte por precatório[10]. Todavia, crê-se que essa interpretação é inconstitucional, pelas seguintes razões:

1) não há lógica, nem razoabilidade, na compreensão de que o fracionamento do valor, a que se refere a Constituição (art. 100, §2º), é a permissibilidade para a confecção de uma “super RPV”. Se a ratio constitucional era essa, porque a expressão “exceto sobre aqueles referidos no §2º deste artigo”, contida no final do art. 100, §1º? Ora, se o Constituinte, tratando de pagamento preferencial de créditos alimentar em sede de precatório, diz que tal preferência não se aplica aos créditos alimentares superpreferenciais, deixa mais do que evidente que não está discutindo a modalidade de pagamento (se precatório ou RPV), mas que está a debater a cronologia de pagamento dos precatórios;

2) a interpretação de que a expressão “admitido fracionamento” permitiria o fracionamento do requisitório para pagamento em parte através da “Super RPV” e o restante através de precatório, viola o art. 100, §8º[11], que proíbe o fracionamento de requisitórios, a fim de parte ou a totalidade do crédito seja pago por RPV;[12]

3) a Suprema Corte já teve a oportunidade de discutir e sumular tese jurídica sobre se a constituição de regime diferenciado de crédito instituído pela Constituição teria o condão de modificar a modalidade de pagamento de precatório para RPV ou se apenas significaria uma preferência absoluta no pagamento cronológico. O enunciado da Súmula n.º 665 resume bem a tese construída: “A exceção prevista no art. 100, caput, da Constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”;

4) se o CNJ entende que o crédito superpreferencial possui elementos específicos que justificam uma distinção com o precedente formado pelo STF ou, mesmo não havendo distinção, mas pretende fazer a superação do precedente (sobre o que temos sérias restrições, caso seja a hipótese), deveria ter trazido motivação suficiente nos “Considerandos” da Resolução, fazendo um necessário diálogo institucional. Dentro de um Estado Democrático de Direito, a ausência de motivação adequada e a obscuridade na tomada de decisão configuram violação à segurança jurídica, e não há Estado Democrático sem segurança jurídica;

5) o STF já teve oportunidade de se manifestar expressamente sobre o crédito de natureza superpreferencial, quando do julgamento conjunto das ADI’s 4.357 e 4.425, no voto-vencedor do Min. Luiz Fux, deixando clarividente que o precatório expedido com base nesse crédito terá a mais elevada ordem de preferência, numa demonstração de coerência interna, estabilidade[13], respeito aos próprios precedentes. Veja-se o seguinte trecho do voto:

"Sob este pano de fundo, o que pretendeu a EC nº 62/09 foi incrementar essa diferenciação no regime de pagamentos, adicionando agora, ao referido critério objetivo da natureza do crédito alimentar, alguns parâmetros subjetivos quanto à pessoa do credor, cujo preenchimento alça o precatório de que é titular a uma segunda e mais elevada ordem de precedência, acima dos precatórios alimentares ordinários e dos precatórios sem qualquer qualificativo. Daí a denominação de “superpreferência” ao regime instituído pelo §2º do art. 100 da Constituição, que toca os créditos alimentícios cujos titulares (i) tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do precatório ou (ii) sejam portadores de doença grave, definidos na forma da lei, limitada a preferência, em qualquer caso, “até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório." (grifos acrescentados)

Não restam dúvidas de que a redação dada pelo art. 9º, §3º, da Resolução do CNJ padece de inconstitucionalidade, devendo haver declaração judicial com redução de texto, para ser excluída a expressão “distinta de precatório”.

E qual a forma correta de expedição, então?

Se o valor do crédito ultrapassa o teto da RPV, deve-se expedir um único precatório. O valor correspondente ao triplo ou quíntuplo (a depender se o ente público está ou não submetido ao regime especial de precatórios) deverá ser inserido pelo tribunal na condição de crédito superpreferencial e ser pago com absoluta prioridade no prazo constitucional de pagamento dos precatórios. O valor que sobejar ao crédito superpreferencial, caso exista, será pago na categoria intermediária como natureza alimentar, respeitada a ordem cronológica entre eles, tendo preferência total sobre os créditos de natureza comum.

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Por fim, de lege ferenda, expressamente a Constituição só dá tratamento diferenciado para o idoso, portador de doença grave e pessoas com deficiência quando o crédito é de natureza alimentar. E sobre o crédito comum, eles não têm prioridade? Ora, se o fundamento para o pagamento prioritário do crédito alimentar é a situação de vulnerabilidade social deles, esse pagamento prioritário também deve se estender para os créditos comuns, respeitadas as filas próprias de cada qualidade de crédito, com base no princípio geral da isonomia, a partir da máxima de que onde há as mesmas razões deve haver o mesmo direito. Tanto para os créditos de natureza alimentar, quanto para os créditos de natureza comum, deve haver a fila preferencial dos idosos, portadores de doença grave e pessoas com deficiência.


5. CONCLUSÃO

O problema do pagamento dos débitos judiciais da Fazenda pública é estrutural. Várias Emendas Constitucionais foram editadas para tentar solucioná-lo, sem, todavia, um êxito expressivo.

Uma medida paliativa para enfrentamento do problema foi atribuir preferência de pagamento aos créditos de natureza alimentar, que, segundo entendimento do STF, cristalizado na Súmula n.º 655, tal crédito, se superior ao teto legal para expedição de RPV, deve naturalmente ser expedido como precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza.

Outra medida paliativa foi a criação do crédito superpreferencial, quando o crédito de natureza alimentar for titularizado por pessoas idosas, portadoras de doença grave ou por pessoas com deficiência. Até a edição da Resolução n.º 303, de 18 de dezembro de 2019, do CNJ, o entendimento sobre o crédito superpreferencial era de que ele não tinha o condão de ser expedido através de RPV, mas que geraria uma preferência absoluta sobre todos os demais créditos que aguardassem pagamento na fila dos precatórios. A redação do art. 9º, 3º, da referida Resolução inova no mundo jurídico para, textualmente, afirmar que o crédito superpreferencial pode ser pago por RPV até o triplo ou quíntuplo do valor que legalmente é o teto da RPV. Ou seja, a Resolução cria a figura da “Super RPV”, apegando-se à expressão contida no art. 100, §2º, da CF.

Entendemos que a “Super RPV”, embora destinada a categorias de pessoas com vulnerabilidade social, padece de inconstitucionalidade, devendo ser expurgada do mundo jurídico. Os fundamentos para a inconstitucionalidade são:

1) não há lógica, nem razoabilidade, na compreensão de que o fracionamento do valor, a que se refere a Constituição (art. 100, §2º), é a permissibilidade para a confecção de uma “super RPV”. Se a ratio constitucional era essa, porque a expressão “exceto sobre aqueles referidos no §2º deste artigo”, contida no final do art. 100, §1º? Ora, se o Constituinte, tratando de pagamento preferencial de créditos alimentar em sede de precatório, diz que tal preferência não se aplica aos créditos alimentares superpreferenciais, deixa mais do que evidente que não está discutindo a modalidade de pagamento (se precatório ou RPV), mas que está a debater a cronologia de pagamento dos precatórios;

2) a interpretação de que a expressão “admitido fracionamento” permitiria o fracionamento do requisitório para pagamento em parte através da “Super RPV” e o restante através de precatório, viola o art. 100, §8º[14], que proíbe o fracionamento de requisitórios, a fim de parte ou a totalidade do crédito seja pago por RPV;[15]

3) a Suprema Corte já teve a oportunidade de discutir e sumular tese jurídica sobre se a constituição de regime diferenciado de crédito instituído pela Constituição teria o condão de modificar a modalidade de pagamento de precatório para RPV ou se apenas significaria uma preferência absoluta no pagamento cronológico. O enunciado da Súmula n.º 665 resume bem a tese construída: “A exceção prevista no art. 100, caput, da Constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”;

4) se o CNJ entende que o crédito superpreferencial possui elementos específicos que justificam uma distinção com o precedente formado pelo STF ou, mesmo não havendo distinção, mas pretende fazer a superação do precedente (sobre o que temos sérias restrições, caso seja a hipótese), deveria ter trazido motivação suficiente nos “Considerandos” da Resolução, fazendo um necessário diálogo institucional. Dentro de um Estado Democrático de Direito, a ausência de motivação adequada e a obscuridade na tomada de decisão configuram violação à segurança jurídica, e não há Estado Democrático sem segurança jurídica;

5) o STF já teve oportunidade de se manifestar expressamente sobre o crédito de natureza superpreferencial, quando do julgamento conjunto das ADI’s 4.357 e 4.425, no voto-vencedor do Min. Luiz Fux, deixando clarividente que o precatório expedido com base nesse crédito terá a mais elevada ordem de preferência, numa demonstração de coerência interna, estabilidade[16], respeito aos próprios precedentes.

Por fim, de lege ferenda, sugere-se que o crédito superpreferencial seja estendido para além dos créditos alimentares, alcançando os créditos comuns, com base nos princípios da isonomia e da proporcionalidade.

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Sobre o autor
Matusalém Dantas

Mestre em Direito pela FADIC/PE. Presidente do Instituto Potiguar de Direito Processual Civil - IPPC. Professor da Graduação e da Pós-graduação lato sensu do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNI-RN), onde ministra a disciplina de Direito Processual Civil. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPro e membro da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo - ANNEP. Diretor de Secretaria da 4ª Vara da Justiça Federal de Primeiro Grau no Rio Grande do Norte.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Matusalém. O super RPV e o crédito superpreferencial:: inconstitucionalidade do art. 9º, §3º, da Resolução 303/2019 do CNJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6154, 7 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81904. Acesso em: 25 abr. 2024.

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