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O inesquecível caos em São Paulo e os direitos e as garantias dos condenados

Agenda 19/06/2006 às 00:00

1. Introdução

Muito se fala, no âmbito jurídico, que os direitos e as garantias dos condenados devem ser integralmente observados para que haja, além do respeito aos mandamentos legais, o escorreito procedimento destinado à realização das funções da pena e, por conseguinte, a efetiva concretização de tais funções.

Porém, quando ocorrem fatos como o caos em que viveu o Estado de São Paulo, que teve por marco inicial o Dia das Mães deste ano, indagamos, até mesmo de forma involuntária, se os reeducandos merecem tais direitos e garantias, se nossa legislação não deveria ser mais rigorosa ou se institutos, tais como a saída temporária (art. 122 a 125 da Lei 7.210/84), a progressão de regimes e o livramento condicional, colaboram para a ressocialização do preso.

Antes de tecermos comentários sobre os direitos e garantias dos condenados, convém narrar os tristes fatos de São Paulo para fazermos uma sincronização com nosso ordenamento jurídico a fim de que possamos tirar conclusões sem nos precipitarmos.


2. Os ataques no Estado de São Paulo

Muito foi difundida pela mídia a desordem pela qual passou a capital e algumas cidades do Estado de São Paulo. Revolta nos presídios; ataques aos ônibus do sistema de transporte público; mortes de policiais; indignação das famílias paulistanas diante da insegurança e das mortes ocorridas na capital etc.

Vejamos o que narrou o "Jornal da Tarde", em sua versão on line, no dia 14 de maio de 2006:

"O Primeiro Comando da Capital (PCC) liderou, nas últimas 24 horas, o maior ato de desafio de sua história contra o governo do Estado de São Paulo. A facção criminosa que age dentro e fora dos presídios promoveu, até as 20h de ontem, 64 ataques contra guardas civis, policiais civis e militares. A ação terrorista deixou 30 mortos - 25 policiais, 1 civis e 4 bandidos - e 25 feridos. De acordo com o balanço oficial, 24 unidades prisionais se rebelaram, com um total de 142 reféns. E 16 suspeitos foram presos." (Jornal da Tarde, 2006 on line)

Foi quase uma semana de tragédias e medo. E tudo começou, conforme noticiado, como "uma resposta imediata do crime organizado à transferência de 765 líderes da facção para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no extremo Oeste da Capital (600 km da Capital), ocorrida entre quinta e sexta-feira". (Jornal da Tarde, 2006, on line)

O problema se alastrou por algumas cidades do interior paulista mostrando para a sociedade o quanto é forte o poder do crime organizado.

"Segundo a polícia, os presos ligados ao PCC, contemplados com o benefício da saída temporária do Dia das Mães, receberam uma missão especial para executar durante o período de passeio: ‘Atirar contra um policial civil ou militar’." (MAGALHÃES; TAVARES, 2006)

Ainda, foi amplamente divulgado pelos diversos meios de comunicação, que os ataques somente cessaram em virtude de um acordo realizado pelo governo do Estado com líderes da facção criminosa.


3. Direitos e garantias dos condenados e dos cidadãos

Em síntese, como nos ensina a doutrina, os "direitos" são disposições declaratórias, já as "garantias" são disposições assecuratórias, dispostas a fim de evitar arbitrariedades por parte do Estado, no entanto ambas convivem de forma harmônica.

"A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito." (MORAES, 2005, p. 28)

A nossa Magna Carta prevê os direitos e garantias fundamentais em seu Título II, cujo rol não é exaustivo e sendo tais disposições cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV).

Podemos verificar como sendo direitos e garantias do condenado diversos incisos do art. 5º da Constituição Federal, os quais visam sua proteção tanto na condição de investigado como na de condenado por sentença transitada em julgado.

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Assim, por exemplo, não poderá haver julgamento senão por órgão constitucional previamente determinado (inciso XXXVII); somente a lei pode estabelecer tipos penais, ou seja, só ela pode definir crimes, sendo vedada sua aplicação retroativa (XXXIX, XL); "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido" (XLV) etc. Além dessas estipulações que atingem o âmbito penal, outras aplicadas a segmentos diversos também podem ser elencadas, tais como: a ampla defesa (LV); o devido processo legal (LIV); a inviolabilidade da honra e da imagem (X) etc.

Quanto ao cidadão, podemos dizer que todos os incisos do art. 5º estão dirigidos a ele, pois cidadão em sentido amplo é aquele que está preso ou não, é o homem ou a mulher, é o que possui bom ou mau caráter, enfim, é como nos ensina Silva Neto, ao explicar o sentido amplo do termo que

"[...] comporta desdobramentos que se afinam propriamente ao Estado Democrático de Direito. Consagrar o fundamento referente à cidadania em sentido amplo é vincular o Estado à obrigação de destinar aos indivíduos direitos e garantias fundamentais, mui especialmente aqueles relacionados a direitos sociais." (SILVA NETO, 2005, p. 22)

3.1 O choque de interesses da sociedade com os dos condenados. Como ficam seus direitos e garantias?

A sociedade, tutelada pelo Estado, que a ampara através da Lei, se sente desprotegida diante das diversas ocorrências criminosas no país. O nefasto acontecimento em São Paulo, o qual retratamos aqui de forma abreviada, só colaborou para o descrédito social perante os Poderes Públicos. Agora, como se fosse a solução imediata, estão sendo votados pelo Poder Legislativo, conforme também difundiu a mídia, projetos que propõem: a) a dificultar a utilização de aparelhos celulares e a punir com mais rigor quem os utiliza nos estabelecimentos prisionais; b) a criação de um novo regime disciplinar; c) aumento do prazo prescricional etc.

"Para reduzir os benefícios dos chefes de ações criminosas, o principal projeto cria o regime Disciplinar de Segurança Máxima (RDMax). Por esse sistema, o preso poderá ficar isolado por até 720 dias e esse prazo poderá ser renovado por mais dois anos." (COMÉRCIO DO JAHU, 2006, on line)

Ora, o que não se fez em anos quer se fazer em poucos dias! Será que realmente era preciso chegar a esse extremo, com a demonstração do real e forte poder dos criminosos, para que se tomassem providências?

Providências já deveriam ter sido tomadas, principalmente as cautelares, isto é, as que visam à prevenção, evitando que situações como o caos em questão se concretizasse, colocando em perigo toda a sociedade.

Não se pode negar as garantias e os direitos previstos na Constituição e nas leis esparsas àqueles que cumprem, por certo motivo, uma condenação, seja em que regime for ou, se não privativa de liberdade, qualquer que seja a restrição imposta.

Mas, em alusão ao caso objeto deste ínfimo trabalho, de acordo com o noticiado, líderes criminosos presos, condenados por crimes de natureza hedionda, foram os responsáveis por comandar os atos de crueldade que narramos; presos estes que cumprem pena privativa de liberdade em regime, como reza a Lei dos Crimes Hediondos, integralmente fechado. Tais delinqüentes usaram também, como meio, outros criminosos que se beneficiaram com a saída temporária para a prática das trágicas ações.

Talvez, boa parte daqueles que adquiriram o direito à utilização do instituto previsto no art. 122 da Lei de Execuções Penais não poderia ter outra escolha senão cumprir as ordens do "patrão", pois caso não as executassem sofreriam quando do retorno ao estabelecimento prisional ou até mesmo suas famílias "pagariam" pelo descumprimento.

Questiona-se então: o que fazer diante dessa situação?

De um lado, o cidadão "de bem" tem o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, e de outro, o condenado tem direito ao "contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes", à "visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados" (LEP), à obtenção da saída temporária, se preenchidos os requisitos legais, além dos mencionados direitos e garantias constitucionais.

Se ao permitir, por exemplo, a saída temporária de presos, pois estes se encaixaram nos requisitos legais (cumprimento de pena em regime semi-aberto; comportamento adequado; cumprimento de, no mínimo, um sexto da pena, se o condenado for primário, e um quarto, se for reincidente; e compatibilidade do benefício com os objetivos da pena), o Estado também permite colocar em risco a integridade e a segurança da população, é lógico que, neste caso, deve-se negar o benefício (direito) do condenado a fim de que se possa resguardar um direito muito mais importante e muito maior, por sua abrangência, que é o direito dos cidadãos à efetiva proteção que deve ser prestada pelo Estado, o qual, em contrapartida, tem o dever de proporcioná-la.

Também é evidente que, se o Estado, atuando por meio de seus órgãos, não podia prever que tamanho evento danoso fosse acontecer, não há que se falar em negar o benefício supracitado, porque neste caso além de violação à lei configuraria atuação arbitrária, podendo o suposto beneficiado reclamar judicialmente o que lhe é devido.

Ao se referir sobre o instituto da saída temporária, assim disserta Renato Flávio Marcão:

"Visa-se com tal benefício o fortalecimento de valores ético-sociais, de sentimentos nobres, o estreitamento dos laços afetivos e do convívio social harmônico pautado por responsabilidade, imprescindíveis para a (re)socialização do condenado, bem como o surgimento de contra-estímulos ao crime." (MARCÃO, 2004, p. 149)

Concordamos plenamente com as lições de Marcão. Não queremos dilapidar o instituto da saída temporária, só esperamos que sejam observados cabalmente os requisitos legais e as causas que contornam toda a situação, para que fatores externos, como o conluio dos presos para a práticas de crimes, não acabem com a grandiosidade social do instituto.

Assim, um preso primário pode estar cumprindo pena em regime semi-aberto, com comportamento adequado, já tendo suportado mais de um sexto da pena, e ser o benefício da saída temporária aparentemente compatível com os objetivos da pena (realmente faria bem ao preso encontrar-se com sua família, por exemplo), mas, por circunstâncias que envolvem a nova situação por que passará o apenado, ser o referido benefício negado. É o caso de o preso se enquadrar nos requisitos legais, mas que por ordem de chefes do narcotráfico ficar "concordado" que ele deverá cometer algum ilícito durante seu período de liberdade. Neste caso o magistrado deverá valer-se do bom senso (se conhecer, ou pelo menos ouvir rumores, do fato extraordinário) para denegar o pedido de saída temporária. Na verdade, neste caso, se observarmos com mais atenção, concluiremos que o preso não preenche os requisitos da LEP, pois o benefício não será compatível com os objetivos da pena.

Não queremos esgotar nossos vocábulos discorrendo sobre a saída temporária, entretanto, esta se mostra como importantíssimo fator no episódio do caos em São Paulo, por isso justifica-se aqui esclarecer também que o benefício previsto no art. 122 da LEP é um "direito público subjetivo do condenado" (MARCÃO, 2004, p. 152). Porém lembramos: deve-se sempre evitar o mal maior, nem que para isso tenha de ser suprimido direitos inferiores, já que outros maiores serão assegurados.

Da mesma forma procede-se com relação às visitas e os demais direitos. Ora, se é através de visitantes que os presos líderes de facções adquirem, v.g., aparelhos celulares, então que se proíbam as visitas! Realmente não se pode concordar com as revistas íntimas dos visitantes; é um ato constrangedor que pode acarretar em vexame para o "inocente" (que não portava nenhum objeto ilegal), motivar o ostracismo do preso comportado, pois a freqüência das visitas poderá diminuir etc.

3.2. Leis mais severas com menos direitos destinados aos presos. Reflexo social do ocorrido em São Paulo

Os eventos em São Paulo contribuíram para o engrandecimento do pensamento, da sociedade em geral, de que nossas leis são flexíveis demais, brandas, e que deveriam ser editadas outras mais severas.

Mas, será que leis que definam penas mais graves e restringem os direitos dos condenados refletiriam positivamente na seara social? A resposta é não. Ou pelo menos, não por si só, já que necessário se faz primeiramente o cumprimento total de nossas leis, com a devida observação de todos os institutos previstos para que as funções de ressocialização e de prevenção possam ser alcançadas, assim, deve-se, dentre outras tarefas, criar estabelecimentos prisionais adequados, respeitando, por exemplo, as regras do regime semi-aberto (como a instituição de colônias agrícolas ou industriais) e cumprindo-se assim a Lei de Execuções Penais, o Código Penal, o Código de Processo Penal etc.

Não se pode esquecer das vítimas e seus familiares que não só merecem mas também têm direito às reparações dos danos suportados. E quem deve pagar por isso? A nossa lei é clara: ao infrator incumbe o dever de reparar o dano (CF, art. 5º, XLV; CP, art. 45, § 1º, art. 78, § 2º e art. 81, II, art. 83, IV e art. 91, I), porém, em casos extremos, como nas mortes de policiais que foram alvejados por bandidos, caracterizando autêntico extermínio, onde se torna impossível identificar todos os autores, o Estado deverá arcar com tal dever de indenizar.


4. Considerações Finais

Sobre a violência em São Paulo: impossível é ficar indiferente diante de tal situação.

O fato tornou-se mundialmente conhecido; muitas mortes ocorreram; a população se sente desprotegida e indignada, por isso deve o Estado mostrar seu poder, através não só da edição, mas também do cumprimento de leis, garantindo o bem-estar social, buscando a reintegração do criminoso, a preservação da liberdade dos cidadãos de bem, a reparação do dano derivado de conduta delituosa...

O que nós pretendemos demonstrar é que os interesses tutelados pelo Estado geram verdadeiros direitos à sociedade, onde em caso de choque aparente deve prevalecer aquele que tem por objeto a proteção maior, seja qualitativamente, seja quantitativamente.

Na verdade, a posteriori, não existem choques de direitos, pois ao se assegurar, por exemplo, a segurança e a vida dos indivíduos, o Estado também prevê que, para um condenado beneficiar-se com a saída temporária, progressão de regimes, livramento condicional etc., é necessário o preenchimento de certos requisitos que determinarão, justamente, que aquela pessoa, que se encontra cumprindo uma pena, não colocará em risco a aludida segurança e a vida dos demais cidadãos.

A confecção puramente de leis mais severas por si só não resolveria o problema. Quiçá tenhamos de rever todo nosso ordenamento jurídico penal e processual penal, podendo até mesmo surgir certas regras mais rigorosas, mas também devemos primar por sua escorreita execução, o que não acontece nem com as leis que temos em vigor como ocorre com a Lei de Execuções Penais: em quantas cidades brasileiras não existem albergues?


Referências Bibliográficas

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso básico de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, tomo II.

MARCÃO, Renato Flávio. Curso de execução penal. São Paulo: Saraiva, 2004.

COMÉRCIO DO JAHU. Senado deve votar hoje pacote rigoroso contra o crime. Disponível em: <http://comerciodojahu.uol.com.br/noticiacompleta.php?codgrupo=24&codigo=88822>. Acesso em: 21mai. 2006.

MAGALHÃES, Rita; TAVARES, Bruno. Situação sem controle. PCC continuou, pela segunda noite, a comandar o maior ataque de sua história contra o governo do Estado. Disponível em: <http://txt.jt.com.br/editorias/2006/05/15/ger-1.94.4.20060515.42.1.xml>. Acesso em: 21 mai. 2006.

JORNAL DA TARDE. O PCC declara guerra. Os integrantes da organização criminosa mataram 25 policiais e 2 civis em 60 ataques e atentados no Estado. Disponível em: <http://www.jt.com.br/editorias/2006/05/14/ger-1.94.4.20060514.29.1.xml>. Acesso em: 21 mai. 2006.

Sobre o autor
Thiago Amorim dos Reis Carvalho

advogado em Anápolis (GO), especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Católica de Goiás e Academia Estadual de Segurança Pública

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Thiago Amorim Reis. O inesquecível caos em São Paulo e os direitos e as garantias dos condenados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1083, 19 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8532. Acesso em: 26 dez. 2024.

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