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Saque do FGTS em tempos de covid-19.

Algumas reflexões sobre esta possibilidade

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Agenda 22/10/2020 às 15:45

3. UMA ANÁLISE MAIS DETALHADA DO INCISO XVI, DO ARTIGO 20, DA LEI 8.036/1990

O inciso XVI, do artigo 20, da Lei 8.036/1990 utiliza-se da expressão “desastre natural”, para viabilizar a possibilidade de saque do FGTS.

A referida expressão não possui, na Lei 8.036/1990, sua conceituação, mas esta pode ser extraída do Decreto federal 5.113/2004, que possui a seguinte dicção:

Art. 2º Para os fins do disposto neste Decreto, considera-se desastre natural:

I - vendavais ou tempestades;

II - vendavais muito intensos ou ciclones extratropicais;

III - vendavais extremamente intensos, furacões, tufões ou ciclones tropicais;

IV - tornados e trombas d'água;

V - precipitações de granizos;

VI - enchentes ou inundações graduais;

VII - enxurradas ou inundações bruscas;

VIII - alagamentos; e

IX - inundações litorâneas provocadas pela brusca invasão do mar.

Parágrafo único. Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.

Através de uma leitura do decreto federal em questão, não há expressa referência a nenhuma expressão que possa ser considerada equivalente ao termo “pandemia”, associado à COVID-19.

Todavia, pela leitura do artigo em questão, não há, também expressa utilização dos termos “tsunami” ou “terremoto”, situações que, no entanto, alinham-se totalmente com eventos decorrentes da natureza como “tornado”, “tempestade” ou “vendavais”.

Assim sendo, a grande questão é saber se a lista disciplinada pelo artigo 2º, do Decreto Federal 5113/2004 é uma lista exaustiva ou exemplificativa.

Em primeiro lugar, por uma análise lógica, apesar de pouco provável de ocorrer no Brasil um tsunami, ninguém tem dúvidas que tal evento da natureza está na mesma magnitude de situações como “tornado”, “vendavais” ou “tempestade”.

Note-se bem que não estamos dizendo que tais eventos da natureza são semelhantes, mas sim os seus reflexos em relação à sociedade e, por isso, se o objetivo da norma é disciplinar as possibilidades de saque, em situações com reflexos negativos de elevada magnitude, as intempéries da natureza não previstas no decreto (tsunami, tempestade ou vendavais), por uma questão de isonomia, devem ter tratamento jurídico idêntico.

Portanto, com base no primeiro argumento aqui exposto, pode-se concluir que a lista do referido decreto tem natureza jurídica exemplificativa e não exaustiva e, por isso, considerando-se o reflexo de situações catastróficas, uma situação de pandemia se enquadra nas condições de desastre natural.

Além do mais, como já destacado anteriormente, a jurisprudência vem acolhendo pedidos de saque no FGTS a partir de débitos decorrentes de pensão alimentícia onde o devedor, titular da conta do FGTS não dispõe de outros recursos para liquidar tal obrigação.

Quando a jurisprudência acolhe o saque do FGTS nestas situações, leva em consideração a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional previsto no artigo 1º, inciso III da Carta de 1988.

Ora, se a jurisprudência dá amparo a saque nestas situações, apesar de a lei não prever tal possibilidade, o entendimento dos tribunais dá natureza exemplificativa ao texto da lei no artigo 20. E se assim faz em relação à pensão alimentícia, o mesmo critério deve ser acolhido em relação ao artigo 2º, do Decreto 5113/2004.

Por isso, podemos corroborar nosso raciocínio com os seguintes julgados do Egrégio STJ:

(...) Superior Tribunal de Justiça já assentou que o art. 20 da Lei n. 8.036/90 apresenta rol exemplificativo, por entender que não se poderia exigir do legislador a previsão de todas as situações fáticas ensejadoras de proteção ao trabalhador, mediante a autorização para levantar o saldo de FGTS. (STJ, 2ª T. REsp. 1.251.566/SC. Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, j. 07/06/2011).

5. De acordo com o artigo 7º, III, da Constituição Federal, o FGTS é um direito de natureza trabalhista e social. Trata-se de uma poupança forçada do trabalhador, que tem suas hipóteses de levantamento elencadas na Lei nº 8.036/1990. O rol não é taxativo, tendo sido contemplados casos diretamente relacionados com a melhora da condição social do trabalhador e de seus dependentes. 6. Esta Corte tem admitido, excepcionalmente, o levantamento do saldo do FGTS em circunstâncias não previstas na lei de regência, mais especificamente nos casos de comprometimento de direito fundamental do titular do fundo ou de seus dependentes, o que não ocorre na situação retratada nos autos. (STJ, 3ª T., REsp 1.619.868/Sp, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, julgado em 24/10/2017, Dje 30/10/2017).

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Como segundo argumento, associado aos efeitos nocivos de intempéries da natureza, temos o que dispõe o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, sobre o conceito de desastre natural, conforme exposição constante no sítio da Secretaria de Educação do Estado do Paraná:

Segundo o INPE, os desastres são conceituados como o resultado de eventos adversos que causam grandes impactos na sociedade, sendo distinguidos principalmente em função de sua origem, isto é, da natureza do fenômeno que o desencadeia. A Defesa Civil no Brasil, obedecendo as normativas da Política Nacional de Defesa Civil, classifica os desastres como naturais, humanos e mistos. Basicamente, a diferença nessa conceituação está na participação direta ou não do homem. Simplificando a análise, os desastres podem ser distinguidos como humanos e naturais. Como fenômenos naturais comuns que podem resultar em desastres naturais, pode-se citar: ciclones, dilúvios, deslizamentos de terra, endemias, epidemias, pandemias, erosão, erupção vulcânica, ciclone tropical (furacão, tufão), incêndio florestal, inundação, queda de meteoro, tempestades (gelo, granizo, raios), tornado, tsunami, terremoto. (Grifos de nossa autoria). (Fonte: http://www.geografia.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=258 – Acesso em 19/10/2020).

No âmbito federal, o Decreto Legislativo nº 6/2020, reconheceu o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do coronavírus (Covid-19 – desastre natural).

Como o decreto impôs várias restrições à população por razões de medida sanitária, tal fator torna inegável que, do ponto de vista do trabalhador, houve inegáveis prejuízos à sua condição financeira.

De tal modo, havendo desastre natural, com reflexos econômicos em todo o país, verifica-se que a situação atual configura necessidade pessoal urgente e grave.

Neste sentido, a Lei 14.020, de 6 de julho de 2020, consequência da conversão Medida Provisória 936/2020, tornou possível a suspensão temporária do contrato de trabalho e com a redução do salário proporcional à jornada.

Ademais, nunca é fora de hora destacar que, segundos dados do dia 19 de outubro de 2020, possuímos 5.235.344 casos de COVID-19 confirmados em todo o país, com 153.905 mortes decorrentes da pandemia. Os números deixam claro que o problema é grave e de proporções nacionais (fonte: https://covid.saude.gov.br/ - acesso em 19/10/2020 às 16 horas e 51 minutos).

Como terceiro argumento para justificar a nossa posição, basta extrair a seguinte passagem, constante no acórdão do REsp 1.1251.566/SC, acima informado, que, ao realizar análise da questão da interpretação do texto de uma lei, deixa claro que a missão do julgador é se alinhar aos fins sociais a que a mesma se destina e não apenas à letra fria do que está escrito na lei:

5. O ponto de partida, certamente, deve ser a letra da lei, não devendo, contudo, ater-se exclusivamente, a ela. De há muito, o brocardo in claris cessat interpretatio vem perdendo espaço na hermenêutica jurídica e cede à necessidade de se interpretar todo e qualquer direito a partir da proteção efetiva do bem jurídico, ainda que eventual situação fática não tenha sido prevista, especificamente, pelo legislador. Obrigação do juiz, na aplicação da lei, em atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro). Mas, quando a lei não encontra no mundo fático suporte concreto na qual deva incidir, cabe ao julgador integrar o ordenamento, mediante analogia, costumes e princípios gerais do direito.

6. A matriz axiológica das normas, ao menos a partir da visão positivista, é o conjunto de regras elencadas na Constituição, entendida como o ápice do que se entende por ordenamento jurídico. Mais ainda: sob a ótica pós-positivista, além das regras constitucionalmente fixadas, devem-se observar – antes e sobretudo – os princípios que, na maioria das vezes, dão origem às próprias regras (normogênese). Logo, é da Constituição que devem ser extraídos os princípios que, mais que simples regras, indicam os caminhos para toda a atividade hermenêutica do jurista e ostentam caráter de fundamentalidade.

7. (...) A partir da dignidade da pessoa humana, a Carta Magna elencou inúmeros outros direitos, nos arts. 5º e 6º, este último que engloba a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Ainda mais especificamente, a CF/88 garante como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, entre outros que visem à melhoria de sua condição social, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS. (STJ, 2ª T. REsp. 1.251.566/SC. Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, j. 07/06/2011).


4.  SOBRE O VALOR DO SAQUE DO FGTS EM FUNÇÃO DA PANDEMIA E DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO PARA SAQUE ACIMA DO LIMITE DO DECRETO 5113/2004 

4.1 DA POSSIBILIDADE DE SAQUE ACIMA DO VALOR DE R$. 6.220,00

Inicialmente, o Governo Federal, através da Medida Provisória 946/2020, havia estabelecido um limite de saque no valor R$1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais) por trabalhador.

Contudo, esta Medida Provisória não foi convertida em lei e, por isso, o Presidente da Mesa do Congresso Nacional, através de Ato Declaratório 101/2020, reconheceu que a referida MP teve o seu prazo de vigência encerrado em 04 de agosto de 2020.

Com isso, temos sobre o assunto o que dispõe o Decreto nº 5.113/2004, que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990 (FGTS), determinando que:

Art. 4º. O valor do saque será equivalente ao saldo existente na conta vinculada, na data da solicitação, limitado à quantia correspondente a R$ 6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais), por evento caracterizado como desastre natural, desde que o intervalo entre uma movimentação e outra não seja inferior a doze meses.

Visto que a Medida Provisória 946/2020 não possui mais eficácia, a regra que normatiza as possibilidades de saque encontra-se disciplinada no artigo 4º de Decreto acima mencionado.

A grande questão, então, é saber se é possível realização de saque em quantia superior ao valor de R$ 6.220,00 previstos no decreto 5113/2004.

Com efeito, não se pode perder de vista a finalidade dos depósitos do FGTS na conta vinculada do trabalhador: a de formar um "patrimônio" para ser utilizado em momentos especiais (o que inclui situações de natureza emergencial).

Desse modo, desde que demonstrados os requisitos probatórios, entendemos ser possível a realização de saque, no período de pandemia, em quantia superior à prevista no decreto federal 5113/2004.

Com efeito, havendo decreto federal, no qual é possível enquadrar a situação de pandemia como desastre natural, basta o trabalhador, através de processo judicial, provar a urgência e gravidade da sua situação, para ensejar que o valor de saque supere a quantia de R$ 6.220,00.

Afinal de contas, como já destacado anteriormente, o saque do FGTS é um direito constitucional, previsto no artigo 7º, inciso III da Constituição.

Assim sendo, por uma aplicação do direito, pautado em interpretação de princípios constitucionais fundamentais, basta o autor da ação demonstrar a urgência e necessidade do saque em valor superior à previsão do decreto 5113/2004, justificando o saque além do limite, quando necessário, com base no princípio constitucional a dignidade da pessoa humana.

Com relação ao tipo de ação judicial, é possível a propositura de uma ação ordinária, com pedido de tutela de urgência ou, se atendidas as exigências necessárias, é possível a propositura de um mandado de segurança, com pedido de liminar para saque acima do valor previsto no decreto 5113/2004.

4.2 SAQUE ACIMA DO LIMITE DO DECRETO 5113/2004 – COMPETÊNCIA PARA PROPOSITURA DA AÇÃO: JUSTIÇA FEDERAL OU JUSTIÇA DO TRABALHO?

Todavia, para obtenção desse benefício, referente a saque do FGTS acima do valor declinado no Decreto 5113/2004, destacamos que a situação irá demandar a propositura de uma ação judicial.

Mas onde? Na justiça federal?

Isto porque a Caixa Econômica Financeira, como gestora do FGTS, será a parte ré a ser demandada judicialmente.

Assim sendo, chegamos ao segundo ponto deste tópico: a ação deverá ser proposta na justiça federal, por se tratar a CEF de ser uma empresa pública, acarretando a aplicação do que dispõe o artigo 109, inciso I, da Constituição?

Ou, de outra forma: a competência seria da Justiça do Trabalho, em decorrência do que prevê o artigo 114, I, do texto constitucional decorrente da emenda constitucional 45/2004?

A leitura do artigo 109, I, do texto constitucional já define uma luz ao fim do túnel. Observe-se:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho. (Grifos nossos).

Pela análise do artigo 109, I, do texto constitucional, fica claro que a competência da justiça federal se apura por exclusão às ações relativas a processos de competência da Justiça do Trabalho.

Afinal de contas, o artigo 114, I, do mesmo texto constitucional dispõe que:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

É oportuno destacar que, em face da emenda constitucional 45/2004, a Súmula 176, do Tribunal Superior do Trabalho foi cancelada.

Por ela, a competência da Justiça do Trabalho, em questões do FGTS, somente ocorreria quando o dissídio submetido à justiça trabalhista envolvesse relação jurídica entre empregado x empregador.

Assim sendo, ações alusivas ao FGTS entre o trabalhador e a Caixa Econômica Federal não seriam da alçada da Justiça do Trabalho.

Contudo, como já foi dito, este entendimento ficou superado a partir da edição da EC 45/2004.

Neste sentido, assim se posiciona, atualmente, a jurisprudência do TST:

Com o cancelamento da Súmula 176 desta Corte, em razão da superveniência da Emenda Constitucional 45/2004, a discussão quanto à competência material acerca da expedição de alvará para saque do FGTS, quando estabelecida a relação processual diretamente entre o trabalhador titular da conta vinculada e a CEF, na qualidade de órgão gestor do FGTS, sem que haja demanda entre empregado e empregador, encontra-se superada nesta Corte. Observa-se a competência material da Justiça do Trabalho para apreciar pretensão de ex-empregado de expedição de alvará judicial para fins de saque dos depósitos do FGTS junto à Caixa Econômica Federal - CEF, porquanto o pleito decorre de uma relação emprego, o que enseja a aplicação do art. 114, I, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/04. Ressalte-se que o fato da presente ação ter sido proposta pelos sucessores do de cujus, trabalhador que deixou conta vinculada do FGTS em seu nome, não tem o condão de afastar a competência material da Justiça do Trabalho para analisar o pedido de expedição de alvará para levantamento do FGTS. Recurso de revista conhecido e provido. (TST - RR: 1703020165230071, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 25/03/2020, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/03/2020).

Sobre o autor
Marcos Costa

Contador, Advogado, mestre em direito público e especialista em contabilidade e finanças. Professor Universitário e sócio do escritório Marcos Costa Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Marcos. Saque do FGTS em tempos de covid-19.: Algumas reflexões sobre esta possibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6322, 22 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86127. Acesso em: 23 nov. 2024.

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