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O juiz, sua relação com as partes e seu compromisso com a Justiça

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3. A Realidade Brasileira      

Como visto, a transição do Estado Liberal (modelo adversarial) para o Estado “do bem estar social”(Welfare State), foi  marcado por uma ampliação da participação estatal na vida em sociedade. No plano processual, isto se traduziu com a ampliação dos poderes e das atividades desempenhadas pelo juiz, se reestruturando a divisão de tarefas entre as partes e o órgão da jurisdição.[56]

O Código de Processo Civil de 1973, em vigor, reflete esta realidade. Manteve a inércia da jurisdição, vedando a instauração de processo ex officio, mas uma vez instaurado, assegura o impulso oficial(art. 262), o que se repete no Código de Processo Civil de 2015(art. 2°.[57]).

Barbosa Moreira[58]em escrito datado de 1985 já identificava que a condução formal do processo é função do órgão judicial, sendo-lhe imposto o dever de velar pela rápida solução do litigio (art. 125,II / art. 139,II[59], CPC 2015 que repete a previsão constitucional de razoável duração do processo – art. 5°, LXXVIII), lhe sendo autorizado agir de oficio em algumas hipóteses. Grande parte delas se mantiveram incólume ao longo dos anos, sendo inclusive mantidas no Código de Processo Civil de 2015. Vejamos:

-     possibilidade de ordenar reunião de ações propostas em separado havendo conexão ou continência (art.105 / art. 57[60], CPC 2015);

-     sobrestar no andamento do processo, até que se pronuncie o juízo penal, se a decisão da lide depender da verificação da existência de fato delituoso (art. 110, caput / art. 315,CPC 2015[61]);

-     a de declarar a própria incompetência, quando absoluta, remetendo os autos ao órgão competente (art. 113 e § 2.º / art. 64, §1°, CPC 2015[62]);

-     a de indeferir diligências inúteis ou meramente protelatórias (art. 130, fine / art. 370, parágrafo único CPC 2015[63]);

-     a de prorrogar prazos, no máximo por sessenta dias, nas comarcas onde for difícil o transporte (art. 182, caput, 2.ª parte / art. 222 CPC 2015[64]);

-     a de extinguir o processo sem exame do mérito, determinando o arquivamento dos autos, se aquele ficar paralisado durante mais de um ano, por negligência das partes, e estas, pessoalmente intimadas, não lhe derem movimento (art. 267, II e § 1.º/ art. 485, II e §1°)[65]; entre outros.

-     a de prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça(art. 125,III /art. 139,III CPC 2015[66]), conceito em que se enquadram frear os atos do devedor que maliciosamente frauda a execução ou se recusa a indicar bens(art. 600), o que foi ainda mais ampliado no Código de Processo Civil de 2015, com a ampliação da possibilidade de aplicação de medidas coercitivas, sub-rogatórias, indutivas ou mandamentais, inclusive para o cumprimento da ordem judicial que envolva prestação pecuniária (art. 139,IV[67]).

A propósito, o Código de Processo Civil de 2015 amplia ainda o rol de poderes do juiz quando lhe permite dilatar prazos processuais, alterar a ordem de produção dos meios de prova (art. 139,V[68]), exercer o poder de polícia(art. 139,VI[69]), entre outros. 

Na seara do combate à isonomia formal, verifica-se a obrigatoriedade de se constar no mandado citatório a advertência da presunção de veracidade dos fatos alegados na hipótese de não contestação (art. 285, fine / art. 250, II, III e IV CPC 2015[70]), a obrigatoriedade de se dar oportunidade ao autor de adequar a petição inicial caso não preencha os requisitos legais(art. 284, caput / art. 321, caput CPC 2015[71]).

Os poderes instrutórios do juiz são tidos como inerentes à função jurisdicional que ao exercê-los não se substitui as partes. Ressalta José Carlos Barbosa Moreira que: [72]

(...)é inquestionável que o uso hábil e diligente de tais poderes, na medida em que logre iluminar aspectos da situação fática, até então deixados na sombra por deficiência da atuação deste ou daquele litigante, contribui, do ponto de vista prático, para suprir inferioridades ligadas à carência de recursos e de informações, ou à dificuldade de obter o patrocínio de advogados mais capazes e experientes. Ressalta, com isso, a importância social do ponto.

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Desta forma, como visto, cabe ao juiz, inclusive de oficio, determinar as provas necessárias à instrução do feito (art. 130 / 370,parágrafo único CPC 2015), podendo convocar as partes para interrogatório (art. 342 /art. 139,VIII CPC 2015[73]) a qualquer tempo; ordenar exibição de documento ou coisa (art. 335 e 360 / 396 e 401  CPC 2015[74]); requisitar certidões ou procedimentos administrativos à administração pública (art. 399 / art. 438 CPC 2015[75]) quando necessário para o deslinde da controvérsia estabelecida em juízo; proceder à inspeção de pessoas ou coisas (art. 440 / art. 481 CPC 2015[76]); ordenar inquirição de testemunhas, inclusive de ofício(art. 418,I / art. 461,I CPC 2015[77]), com  a possibilidade de acareação quando divergirem sobre fato que possa influir na decisão da causa (art. 418,II / art. 461,II CPC 2015[78]). 

No direito brasileiro, apesar da legislação permitir, a postura ativa do juiz continua dependendo, de alguma forma, de um ato inaugural praticado pela parte,  de inciativa privativa desta, de modo que nenhum processo civil se instaura de oficio,[79] sem a demanda do interessado[80], ficando a cargo do autor delimitar seu pedido, não se permitindo, como  regra, que o juiz julgue fora deste[81]; aos litigantes é conferida certa disponibilidade da relação jurídica material ante a possibilidade de autocomposição à qualquer tempo, ou ainda mediante ato unilateral (renúncia, reconhecimento) ou bilateral (transação), para as quais o juiz apenas, apreciando a validade, outorga a chancela judicial.[82] [83]

A lei processual garante, ainda, certo poder de configuração do iter processual, ampliado ainda mais no Código de Processo Civil de 2015, com a possibilidade de negócios jurídicos processuais(art. 190) e de calendário processual (art. 191).

Podem as partes prorrogar ou reduzir por acordo prazos dilatórios[84]; renunciar a prazos fixados exclusivamente a seu favor[85], adiar a audiência de instrução e julgamento, uma única vez por convenção entre as partes[86]; suspender, também por convenção, o processo por tempo não superior a seis meses[87].

Até mesmo regras de competência em razão do valor ou território, possuem relativa flexibilidade, sendo facultado as partes a fixação de convencional de foro[88], permitindo a prorrogação da competência se não arguida pelo réu[89]. 

Muito embora o sistema brasileiro deite suas raízes no sistema da civil law o que o assemelharia ao modelo inquisitivo, é um sistema muito peculiar que também reúne características próprias da tradição da common law, o que o assemelharia ao modelo adversarial, trazendo no campo processual aspectos de ambas as tradições, sendo ainda marcadamente inquisitorial.

No sistema brasileiro, o papel do juiz e das partes se complementam não obstante a visão social do fenômeno processual, se caracterizando como de colaboração entre um e outros[90].

Com características que mesclam o modelo adversarial e inquisitivo, o sistema brasileiro, pautado no contraditório, começa a assumir forma do que a doutrina identifica como modelo cooperativo de processo.

A ideia de cooperação, há muito defendida, pressupõe um juiz ativo, colocado no centro da controvérsia, bem como considera fundamental o diálogo entre os sujeitos do processo. Hoje, afirma-se que a participação constitui direito fundamental.[91] Cooperação e diálogo são elementos inafastáveis do princípio do contraditório, compreendido este como a efetiva participação de todos os sujeitos no resultado final do processo.[92]

A análise do processo sob a compreensão das determinantes constitucionais do sistema jurídico brasileiro fez com que Daniel Mitidiero[93] traçasse através do plano constitucional o arcabouço lógico-jurídico para sustentar que da face democrática do Estado Constitucional brasileiro, que funda o direito processual civil no valor da participação que é traduzido pelo contraditório e a juridicidade no processo, também própria do Estado Constitucional que se mostra nas decisões do juiz que são impostas assimetricamente, dada a imperatividade da jurisdição, surgiria no Estado Brasileiro, aliando-se determinadas condições sociais e também certas opções lógicas e éticas, o modelo cooperativo de processo.

Referida constatação, feita antes mesmo do dever de colaboração vir expresso no texto do que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015, constituindo verdadeira decorrência do Estado Constitucional, onde a legalidade é superada pela juridicidade que objetiva alcançar a justiça no caso concreto, a determinar mais intenso diálogo e, portanto, maior necessidade de colaboração[94], estaria fundamentado na conformação constitucional de um Estado Democrático de Direito (art. 1°, caput) que é fundado na dignidade da pessoa humana(art. 1°, III), com o objetivo de construir uma sociedade livre justa e solidária(art. 3°, I), o que faz com que a sociedade contemporânea seja ela mesma um ‘empreendimento de cooperação entre os seus membros em vista da obtenção de proveito mútuo’[95].  

No arcabouço normativo do Código de Processo Civil de 2015, o dever de colaboração é um de seus pilares de sustentação. Impõe –se às partes uma conduta processual pautada na lealdade, na boa –fé e pelo respeito à dignidade do Poder Judiciário. 

O novo Código parece cristalizar as ideias de Fredie Didier Junior, Daniel Mitidieiro, Lorena Miranda Santos Barreiros, entre outros e consagrar o modelo cooperativo de processo civil para o ordenamento jurídico no Brasil. 

A questão é que referido modelo muito mais do que uma releitura do sistema, implica em necessária mudança de consciência para o qual, talvez, a realidade brasileira, ainda, não esteja suficientemente madura para experimentar, mas para a qual parece caminhar inevitavelmente.

Nos parece, na mesma linha defendida por Marcelo José Magalhães Bonício[96],  que o redimensionamento do principio do contraditório à luz das novas aspirações sociais, exigindo que juiz estabeleça um diálogo com as partes a respeito de todos os atos do processo, inclusive  no campo probatório, muita mais salutar do que a que coloca o magistrado em posição de superioridade. 

O fato é que este redimensionamento, que sim é trazido pelo novo código, não parece suficiente para caracterizar um novo modelo ideológico de processo, guiando muito mais uma releitura ou a identificação da segunda vertente do principio do contraditório do que propriamente a implantação de um modelo processual novo. Como isto vai ser aplicado no dia a dia forense, para que tenhamos uma real amplitude do alcance da norma, só o tempo dirá, mas acostumados “a realidade do nosso sistema, que ainda é apegado a uma figura de juiz distante e, em algumas vezes, autoritário, que pouco diálogo propõe entre as partes (...) razoável supor que dificilmente aceitaria dialogar em posição de igualdade com elas.”[97]


Conclusão

A questão da divisão de tarefas entre juiz e partes é tema dos mais relevantes em matéria processual civil. Desta análise, identificamos o que é considerado uma solução justa e qual o caminho para persegui-la em cada modelo de processo que por sua vez é produto de um modelo jurídico especifico que traça as diretrizes daquilo que o Estado constituído pretende alcançar e os meios e fins admitidos para se atingir as finalidades almejadas, não existindo, no mundo real, modelos puros.

No modelo adversarial pudemos identificar que a solução justa é aquela proferida por um juiz que não participa do processo, que se coloca em posição de neutralidade e passividade, sendo estas exigências para a manutenção de sua imparcialidade. Se deixa às partes a tarefa de trazer todas as informações necessárias, e todo o arcabouço probatório para que o julgamento seja proferido, satisfazendo pela isonomia formal entre as partes, sem qualquer perquirição ou analise da isonomia substancial. Mesmo em países tradicionalmente identificados por este modelo como a Inglaterra e o Estado Unidos vem se verificando um aumento da atividade estatal na condução do processo visando conferir-lhe maior efetividade.

Em decorrência do abismo social que o Estado Liberal, o surgimento do Estado Social visando combater estas desigualdades deu origem ao modelo inquisitivo de processo, em que este passa a ser visto como relação jurídica de direito público. Se estrutura na conferência ao juiz de inúmeros poderes, especialmente instrutórios, colocando-o em posição assimétrica em relação às partes. Aqui uma solução justa é pautada na busca da verdade por meio da atividade probatória. O papel das partes, que no modelo adversarial era  proeminente, neste modelo assume posição secundária, afastando-se o dogma da isonomia formal se perseguindo a isonomia substancial.

Verificamos também que esta ampliação de poderes do magistrado na condução do processo especialmente no campo probatório recebe criticas doutrinas de uma corrente de pensamento conhecida como garantista , que o identifica como um modelo autoritário.

O modelo cooperativo de processo, por sua vez, imprime uma mudança na divisão de tarefas e colocando o magistrado em situação de paridade com as partes na condução do processo, devendo delas se distanciar assimetricamente quando proferir sua decisão, impõe o dever de colaboração de modo a transformar o processo em uma comunidade de trabalho, passando o próprio juiz, ele mesmo, a ser destinatário do contraditório, pautando toda a dialética processual  no diálogo e no respeito à boa –fé e à própria dignidade da justiça.

Ao fazermos uma breve análise do sistema brasileiro, o identificamos como um sistema peculiar que mescla características próprias do modelo adversarial e do modelo inquisitivo, além da própria inserção recente do dever de colaboração no novo código de processo civil que, a nosso ver, não foi suficiente para caracterizar o modelo brasileiro como cooperativo.

Nosso sistema não tolera a figura de um juiz extremamente passivo, conferindo a ele poderes instrutórios, se impondo, a nosso ver, a necessidade de diálogo que decorre muito mais do próprio principio do contraditório em sua segunda vertente que propriamente de um modelo cooperativo de processo para o qual a realidade brasileira, ainda, não esteja preparada. 

Uma decisão justa para o nosso sistema é aquela pautada em um processo que tenha permitido e garantido às partes uma atuação em contraditório, com o redimensionamento do principio do contraditório à luz das novas aspirações sociais, exigindo que juiz estabeleça um diálogo com as partes a respeito de todos os atos do processo, inclusive  no campo probatório, o que é muito mais salutar do que se manter o magistrado em posição de superioridade.

Sobre os autores
Cristhiane Bessas Juscelino

Doutoranda em Direito Processual na Universidade de São Paulo, Mestre em Direito Processual na Universidade de São Paulo(2018). Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2004), pós graduação "lato sensu" em Direito e Relações do Trabalho pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2012), pos gradução "lato sensu" em Direito Processual Civil (2014). Atualmente é coordenadora do Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Segurança Privada e Curso Superior de Tecnologia em Serviços Jurídicos, Cartorários e Notariais da Universidade Santo Amaro (UNISA), professora titular de Direito Civil e Processo Civil na mesma instituição, professora convidada dos cursos de Pós Graduação da Escola Superior da Advocacia(ESA). Atuou como membro do Programa de Ensino Aprendizagem da Universidade de São Paulo (PAE - USP), tendo sido professora Assistente de Prática Civil I na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho atuando principalmente nos seguintes temas: indenização, prova, reclamação trabalhista. Mantendo escritório próprio desde 2008.

Gilberto Kenji Futada

Advogado. Professor. Coordenador Adjunto do curso de Direito na Universidade Santo Amaro (UNISA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUSCELINO, Cristhiane Bessas; FUTADA, Gilberto Kenji Futada. O juiz, sua relação com as partes e seu compromisso com a Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6621, 17 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92251. Acesso em: 22 dez. 2024.

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