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Limitações à gratuidade de Justiça e possíveis retrocessos inconstitucionais

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Agenda 27/08/2021 às 15:10

Discutem-se as novas regras para concessão da AJG e o fim da gratuidade de justiça nos juizados especiais federais em face dos princípios do acesso à justiça, inafastabilidade do controle jurisdicional e proibição de proteção insuficiente.

NTRODUÇÃO

A Câmara dos Deputados recentemente aprovou, por 304 votos a 133, o texto-base da Medida Provisória 1.045/21, que renova o programa de redução ou suspensão de salários e jornada de trabalho com o pagamento de um benefício emergencial aos trabalhadores. Embora o texto original da MP não contivesse a matéria, foram incluídas limitações ao acesso à justiça pelo condicionamento do âmbito da gratuidade.

Pelo texto que foi encaminhado à aprovação do Senado, apenas aqueles que tenham renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal de até três salários mínimos terão direito à gratuidade de justiça. A simples declaração de impossibilidade não será suficiente, devendo o interessado provar essa condição por meio de comprovante de habilitação no CadÚnico do governo federal para programas sociais. Caso condenada a parte beneficiária da AJG, o credor terá o prazo de 5 (cinco) anos para promover execução, caso haja mudança da situação econômica do vencido, extinguindo-se a dívida após esse prazo. A gratuidade do Juizados Especiais Federais também será suprimida, sendo devida apenas aos beneficiários da Assistência Judiciária Gratuita limitada nos termos já referidos.

Neste breve escorço, superficial ainda pelo caráter não definitivo da normatividade aprovada na Câmara do Deputados, que ainda depende da chancela do Senado Federal, examino alguns pontos recortados das pretensas alterações, assentando, sobretudo, a necessidade de os atores jurídicos que labutam com os Direitos da Seguridade Social, notadamente juízes e advogados, envidarem esforços para ilustrar os membros desta casa legislativa sobre os riscos da supressão parcial da AJG, tanto nos processos em geral, como e mais ainda nos Juizados Especiais Federais.

I – NOVAS REGRAS

De modo sintético, as novas regras do PL que foi encaminhado ao Senado Federal são as seguintes:

  1. Desaparece a atual regra segundo a qual o benefício poderia ser deferido mediante simples de declaração de impossibilidade de pagamento das despesas processuais do requerente, na petição inicial, sem prejuízo da sua subsistência.
  2. Somente será deferida a AJG mediante comprovação efetiva da condição de miserabilidade: renda familiar per capita de ½ salário mínimo ou renda familiar de até 3 (três) salários-mínimos. Os requisitos são alternativos, ou seja, se não atendido o primeiro, poderá ser deferido benefício diante da comprovação do segundo. Ex.: o autor da ação pertence a família com renda mensal per capita superior a ½ salário mínimo, mas renda familiar total inferior a 3 (três) salários-mínimos, independentemente do número de pessoas que compõem o núcleo familiar, terá direito à AJG. Por outro lado, se a renda familiar exceder de 3 (três) salários-mínimos, mas a renda familiar per capita for inferior a ½ salário mínimo, devido ao número de membros, também será deferido o benefício.
  3. Desaparece a gratuidade do Juizado Especial Federal como regra, somente se aplicando mediante o deferimento da Assistência Judiciária Gratuita, nos mesmos moldes que foram estabelecidos na Lei da AJG e no Código de Processo Civil, ou seja, mediante apresentação pelo autor do comprovante de habilitação em cadastro oficial do governo federal instituído para programas sociais de renda familiar mensal per capita de até ½ (meio) salário mínimo ou renda familiar mensal de até 3 (três) salários-mínimos.
  4. Em caso de sucumbência, o beneficiário da AJG não estará isento do pagamento dos honorários advocatícios da parte ex adversa, apenas tendo direito a uma condição suspensiva de exigibilidade por cinco anos contados do trânsito em julgado da sentença condenatória. Durante este interregno pode sofrer o cumprimento da sentença, inclusive se receber valores em outra ação judicial.

II – PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS

O direito à gratuidade da justiça está referido no art. 5º, LXXIV, da Constituição da República, estabelecendo que: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Portanto, consubstancia-se em uma garantia constitucional que assegura aos hipossuficientes a prestação de assistência judiciária gratuita.

Trata-se, ademais, de conquista histórica, princípio constitucional e direito fundamental intimamente relacionado com o valor constitucional estruturante da dignidade humana e uma das ondas de acesso à justiça preconizadas por Cappelletti e Garth. A efetivação do acesso à justiça diz respeito ao cumprimento de condições objetivas que garantem ao cidadão a oportunidade de obter a resolução de seu conflito de interesses pelo Poder Judiciário. No entanto, as despesas processuais podem limitar essa garantia de uma parcela da população. “A justiça [...] só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade apenas formal, mas não efetiva”.[2]

O princípio/direito fundamental ao acesso à justiça desvela-se como o mais importante de todos os princípios constitucionais, porque lhe incumbe a função de maior relevância dentro do sistema constitucional, qual seja, a de assegurar o reconhecimento e o exercício de todos os demais direitos e garantias previstos na Constituição. Em outro dizer, desempenha o papel essencial de garantir a eficácia da própria Constituição e de seus valores essenciais como o Estado Democrático de Direito. A Constituição fundamenta, garante e atribui confiabilidade à jurisdição, e esta retribui protegendo e velando pela higidez do sistema jurídico-constitucional.  Sem acessibilidade à jurisdição eficaz a Constituição passa a ser uma mera manifestação de propósitos sem qualquer utilidade prática. Como bem assinalou o professor Joaquim Gomes Canotilho, “independente das densificações e concretizações que o princípio do Estado de Direito encontra explicita ou implicitamente no texto constitucional, é possível sintetizar os pressupostos materiais subjacentes a este princípio da seguinte forma: 1) juridicidade; 2) constitucionalidade; 3) direitos fundamentais”.[3]

O pleno exercício do direito fundamental ao acesso à justiça funciona como uma espécie de sensor de plenitude democrática. Mede-se o nível de democracia de determinado povo pela amplitude de vias de acesso à justiça, enquanto efetiva e eficaz proteção a ameaças e lesões a direitos individuais, sociais ou políticos. Conforme observou a atual Ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha, “Quanto mais democrático o povo, mais alargada é nele a jurisdição, mais efetiva, rápida, facilitada e concretizada a sua prestação”.[4]

Limitar-se o acesso à justiça representa suprimir a proteção conferida pela ordem jurídica constitucional, notadamente aos direitos fundamentais sociais, hoje mantidos pelo Poder Judiciário, violando o viés do princípio da proporcionalidade que proíbe a proteção insuficiente (e a vedação de retrocessos sociais), como já reconheceu o STF em algumas oportunidades (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 488.208. Rel. Min. Celso de Mello. j. 01/07/2013, p. 3; SL 263, Min. Gilmar Mendes, j. 14/10/2008, p. 14).

Depois que Assistência Judiciária Gratuita passou a ser a panaceia para a desjudicialização, ataca-se, ao invés da origem do problema, o instituto em si, que desempenha papel fundamental na ampliação das vias de acesso à justiça. Mata-se o mensageiro porque a mensagem não nos interessa (“ne nuntium necare”).

Trata-se de rematado equívoco legislativo, se considerarmos que o Brasil é um país marcado pela pobreza extrema e ainda conta com imensos gargalos de acesso à justiça. A quase supressão da AJG ampla, principalmente no processo previdenciário e nos Juizados Especiais Federais, cuja razão de existir está vinculada à necessidade de alargamento das vias de acesso à justiça previdenciária, devido à retração da via administrativa na concessão dos benefícios e à imprescindibilidade de concretização dos direitos sociais fundamentais consagrados na Constituição e em textos infraconstitucionais.

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Vejo flagrantes inconsistências no PL.

Primeiro, há que se dizer que a exigência de comprovação efetiva da “insuficiência de recursos”, em princípio, não conflita com o texto constitucional, porquanto expressamente prevista no texto constitucional (art. 5º, inciso LXXIV, da CR).

A segunda questão concerne ao valor estabelecido como limite. O parâmetro legal que se pretende instituir (renda familiar mensal per capita de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou renda familiar mensal de até 3 (três) salários mínimos) avilta o direito constitucional ao benefício da gratuidade de modo tal que não atende ao objetivo almejado pela regra constitucional quando estabelece o pressuposto “comprovar insuficiência de recursos”.

Embora o conceito de “insuficiência de recursos” seja plurissignificativo e aberto, mesmo sem recursividade a exercícios matemáticos mais elucidativos, é fácil perceber que uma família cuja renda total não exceda de 3 (três) salários mínimos, hoje R$ 3.300,00 (três mil e trezentos reais), não teria condições de arcar com as despesas processuais.

Não se pode afirmar que o indivíduo que perceba 3 (três) salários mínimos possua condições de arcar com os ônus do processo sem comprometer o sustento próprio ou de sua família. Segundo estimativa do DIEESE[5], o salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas – formada, em média, por dois adultos e duas crianças – com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer vestuário, higiene, transporte e previdência social –, deveria representar o valor líquido de R$ 4.511,52.[6]

Vale lembrar que custear o processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família não significa apenas ter de pagar as custas, e sim também assumir financeiramente o risco de litigar e perder a demanda em face da Fazenda Pública sofrendo a condenação aos honorários de sucumbência (segundo o texto do art. 98, caput, do CPC/15, a gratuidade pressupõe "insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios"). Apesar da condição suspensiva de exigibilidade contida no novo texto legal, conviverá o vencido, por cinco anos, com o fantasma da execução do pouco que possa vir a obter de qualquer modo.

Nesse sentido, o custo mínimo que, por exemplo, um segurado do INSS, poderá ter de suportar litigando no juízo comum da Justiça Federal (1% sobre o valor da causa para ações cíveis, em geral - Lei 9.289/96 - mais 10% de honorários advocatícios sobre o valor da causa – art. 85, § 2º, do CPC/15), considerando o valor da causa de, no mínimo, 60 salários mínimos (valor aquém estará na alçada dos Juizados Especiais Federais) equivale aproximadamente a R$ 6.600,00. Portanto, a percepção de salário pouco acima de R$ 3.300,00 (três mil e trezentos reais) não poderá, à evidência, fazer frente ao custo mínimo do processo judicial.

Portanto, o critério de renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou de renda total familiar mensal de até 3 (três) salários mínimos, que consta do Projeto de lei em comento, e que vem sendo adotado por alguns magistrados na Justiça Federal da 4ª Região, ao que vejo, se revela insuficiente para a finalidade ora proposta.

Lembremos que a gratuidade da justiça requer a presença de hipossuficiência econômico-financeira do interessado, e não a condição de miserabilidade social. Este parâmetro que se pretende implantar pela via legislativa é deveras aviltante e, como disse antes, fere de morte o núcleo essencial do direito fundamental à gratuidade de justiça. Revela-se, dessarte, um critério inconstitucional.

A próxima questão diz respeito ao estabelecimento de um critério legal objetivo, que sempre foi rechaçado na jurisprudência e, se positivo, qual a natureza que se deve conferir a esse critério legal, ou seja, se tal critério deve ser intransponível e fechado ou se poderá admitir interpretações. Em outras palavras, se constituirá presunção absoluta ou relativa.

A jurisprudência sempre rechaçou a fixação de critérios objetivos totalizantes aos quais se recorra como balizador único disjuntivo para a concessão ou não da gratuidade da justiça. A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça sobre gratuidade de justiça entende que o exame judicial não pode se amparar unicamente em critério objetivo, sem deixar de considerar a situação financeira concreta da parte interessada (STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp. n. 1.463.237, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 16/02/2017; STJ, 2ª Turma, REsp. n. 1.706.497, Rel. Ministro Og Fernandes, julg. 06/02/2018; STJ, 3ª Turma, AgInt no REsp. n. 1.703.327, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julg. 06/03/2018). Ainda, de acordo com o STJ, a afirmação de pobreza goza de presunção relativa de veracidade, podendo o magistrado, de ofício, indeferir ou revogar o benefício da assistência judiciária gratuita quando houver fundadas razões acerca da condição econômico-financeira da parte (STJ, AgInt nos EDcl no RMS 59185/RJ, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019).

Nesta quadra em que o subjetivismo se inclina por aviltar o direito à gratuidade, disseminando insegurança jurídica e desigualdades, penso que o melhor caminho é o estabelecimento de um critério objetivo, mas não fechado. Um critério que seja apenas o parâmetro para o início de interpretação. Disso tratei em outro artigo para o qual remeto os leitores.[7]

Neste contexto político e jurisprudencial, o que se extrai é que o problema mais sério deixou de ser a fixação de um critério legal para aferimento da presença do pressuposto “insuficiência de recursos”, mas sim o fechamento hermenêutico que, tomando o critério como absoluto para cima e para baixo, impede que se comprove, diante da renda familiar superior ao limite legal, a existência de despesas que denotem a “insuficiência de recursos” para o pagamento das despesas processuais.

Certamente, a aprovação de um texto legal tão limitador, num estágio em que o fantasma do consenso positivista volta a assombrar, representaria um risco muito grande de os juízes não conseguirem se libertar das amarras legislativas e, desconsiderando a diferença entre texto e norma, fazerem tabula rasa das situações particularizadas da facticidade e da fenomenologia de cada caso.

III - O FIM DA GRATUIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS

Uma breve passada de olhos no art. 98, I, da CR[8] permite ver que a estrutura principiológica constitucional e fundante do procedimento dos Juizados Especiais Federais está baseada em três mandados ali contidos, a saber: sumariedade, oralidade e consensualidade. São apenas estes os princípios constitucionais processuais estruturantes típicos dos JEFs. Simplicidade, informalidade, celeridade e economia processual (art. 2º da Lei nº 9.099/95) constituem atributos de qualquer procedimento e, sobretudo, dos Juizados Especiais. São critérios operacionais do procedimento, tal como quis o legislador e sem assento constitucional.

A gratuidade de justiça nos Juizados Especiais encontra-se nos arts. 54 e 55 da Lei 9.099/95, aplicável subsidiariamente aos Juizados Especiais Federais. Não é, todavia, integral, porquanto se aplica apenas ao primeiro grau de jurisdição.

Apesar de não ser um princípio expresso, a gratuidade de justiça pode ser considerada um princípio implícito que decorre da própria natureza dos Juizados, que foram criados para ampliar o acesso à justiça, sobretudo das pessoas vulneráveis, mas não apenas destas, pois, ao que vejo, a gratuidade alcança a todos que se utilizam o microssistema dos Juizados, inclusive porque podem até dispensar a presença de advogado. A gratuidade é da essência constitutiva dos Juizados.

Nesse sentido, necessitados não são somente os economicamente pobres, mas todos aqueles que necessitam de tutela jurídica diferenciada por incapacidade de fazer valer seus interesses de forma individual, dentre os quais, se destaca o pequeno litigante nos novos conflitos surgidos numa sociedade de massa, especialmente os de consumo de pequena monta ou menos complexidade, que estariam excluídos de análise do Poder Judiciário, caso não houvesse o procedimento do Juizado Especial isentando o cidadão de dirigir-se ao órgão jurisdicional a quo, com advogado, sendo ainda que, caso a parte contrária compareça com patrono, o Estado lhe fornecerá profissional do Direito, por ele custeado, exonerando-o do pagamento de despesas e custas processuais, além de honorários advocatícios, nos termos dos artigos 9º e 54, caput, da Lei nº. 9.0995/95.[9]

Para coibir o abuso do direito de ação, o demandismo e a judicialização irresponsável o próprio sistema criou um sistema de controle, limitando a gratuidade ao primeiro grau de jurisdição. Quem ousar recorrer das decisões céleres e informais dos Juizados, correrá o risco de ser condenado ao pagamento das despesas processuais, inclusive as de primeiro grau e honorários advocatícios.

IV – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES OBJETIVADAS

O direito à Assistência Judiciária gratuita, como vim de dizer, tem assento na Constituição e decorre do princípio do Acesso à Justiça (art. 5º, XXV, CR). Representa uma garantia de ampliação do acesso à justiça não apenas para aqueles que não têm condições de pagar as despesas do processo, mas também para aqueles que, devido a outras hipossuficiências, encontrariam dificuldade de acesso aos canais de justiça.

Coloco-me contra o afunilamento do acesso à justiça a partir da limitação ao deferimento do benefício da Assistência Judiciária Gratuita. O problema maior, ao menos na Justiça Federal está na retração da via administrativa previdenciária. Os índices de negativas do INSS, ultimamente muito maiores do que sempre foram, passaram a ser acintosos. Conforme se tem noticiado, mais da metade dos requerimentos são indeferidos.[10] Por outro lado, o elevado índice de procedências evidencia que não se trata de um acesso abusivo à justiça, que mereça ser forçadamente reprimido por uma medida legislativa.

Notadamente no processo previdenciário, não é possível se estabelecer critérios, legais ou jurisprudenciais, demasiado apertados, muito menos absolutos. Os critérios sempre devem ser normas de abertura e não de fechamento. Os segurados do INSS e aqueles que aspiram benefícios previdenciários na via judicial raramente ostentam boas condições financeiras e informacionais. O risco iminente de terem que dispender, com prejuízo para a sua subsistência, e de serem onerados com eventual condenação sucumbencial, pode representar fator de desestimulo ao ajuizamento de ações que certamente teriam sucesso, porquanto existe uma tendência de interpretações tendenciosas e equivocadas nas vias administrativas.

No Estado Social Democrático de Direito que adotamos, é interesse da sociedade e dos Poderes legítimos que dão sustentação ao Estado ampliar o acesso à justiça e não limitar. É dever constitucional de todos os Poderes prevenir e fazer cessar lesões de direitos, e não engendrar artificiosamente mecanismos de limitação do acesso à justiça, esses que irão servir para convolar arbitrariedades e ilegalidades.

Eventuais limites não podem ser estabelecidos de modo tão aviltante que aniquilem o núcleo essencial do direito fundamental constitucional à AJG, como nesta proposta legislativa. Nem podem ser interpretados, os critérios que se pretende estabelecer, como medidas estanques e fechadas. Isso representaria o fim mesmo da AJG, na medida em que engessaria a análise judicial mais acurada e particularizada que deve preceder ao deferimento ou indeferimento do pedido, sob pena de configurar, nos diversos casos concretos, violação aos princípios do acesso à justiça, da inafastabilidade do controle jurisdicional e da proibição de tutela insuficiente.

Se tivermos que adotar um critério legal mais objetivo, o que parece contribuir para afastar os solipsismos judiciais[11], que ele seja tomado como parâmetro hermenêutico inicial, de modo que a percepção de rendimentos acima desse patamar não implique o automático indeferimento da justiça gratuita. A presunção de veracidade, em tal hipótese, apenas terá menor força, e poderá ser complementada por outros meios, conforme a situação econômica específica da parte no caso concreto.[12] Para citar um exemplo, imagine-se a situação em que a parte interessada obtenha rendimentos superiores ao teto de 3 (três) salários mínimos, porém esteja custeando tratamento dispendioso de uma enfermidade sua ou de um familiar, circunstância que a impossibilitará, apesar da renda, de fazer frente às despesas do processo judicial. A ficção jamais deverá se sobrepor à realidade e à facticidade do caso concreto em análise.

O processo previdenciário, em razão da sua marcada conotação social, não pode ser um processo de risco, em que o fantasma da condenação honorária paire sobre as cabeças dos segurados e seus dependentes. Sempre foi assente a presunção de hipossuficiência dos segurados do INSS em juízo (ver precedente vinculante do STJ, o conhecido Tema 629, em que essa condição ficou expressa). Daí, já se vê que a gratuidade da justiça é princípio intrínseco a essa tipologia de processo. Negar esse direito aos segurados da Previdência Social e aos que litigam nos JEFs me parece violar, além do princípio do acesso à justiça, o princípio constitucional da máxima proteção social. Parece inequívoco que ao suprimir-se a proteção almejada pelos Juizados Especiais viola-se o princípio constitucional da vedação de proteção insuficiente.

Veja-se que, nestes processos, sobretudo quando aumentam exponencialmente as ações cujo objeto são benefícios por incapacidade, em razão do adoecimento da população, a perícia médica se faz essencial. Como exigir que o segurado, sem o benefício da AJG, adiante os honorários periciais?

Se existem casos de pessoas que litigam indevidamente sob o pálio da Assistência Judiciária Gratuita, são estes abusos e somente esses que devem ser coibidos.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, como últimas reflexões, sustento que:

(1) mesmo com a possibilidade legal de concessão parcial da AJG, não parece ser útil e nem produtivo ao Poder Judiciário passar a exigir comprovação de pobreza  dos autores destas ações. O custo-benefício será negativo. Mais producente seria tornar gratuita a justiça previdenciária como regra geral. Vai-se gastar dinheiro e tempo precioso com uma questão periférica. Hoje, uma enxurrada de agravos de instrumento assoberba os tribunais discutindo justamente os limites para a concessão da AJG, enquanto o mérito destas ações fica para um segundo plano;

(2) o parâmetro fixado (renda familiar mensal per capita de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou renda familiar mensal de até 3 (três) salários mínimos), por si só, viola o direito constitucional ao benefício da gratuidade de justiça, pois não atende, icto oculi, ao objetivo almejado pela regra constitucional quando estabelece o pressuposto econômico “insuficiência de recursos”;

(3)  a percepção de rendimentos brutos até o limite legal que vier a ser estabelecido não afasta, por si só, a presunção de veracidade da afirmação de hipossuficiência econômica, de modo que a percepção de renda bruta acima desse limite não acarreta o automático indeferimento da gratuidade da justiça. Resumindo: a renda comprovada até o limite legal constitui presunção absoluta de insuficiência de recursos; enquanto a renda superior aperfeiçoa presunção relativa de suficiência de recursos, incumbindo ao requerente a prova em contrário;

(4) é da essência constitutiva e do pleno cumprimento do papel institucional dos Juizados Especiais a gratuidade no primeiro grau de jurisdição. O fim da gratuidade no primeiro grau dos Juizados Especiais Federais conflita com os objetivos constitucionais de sua criação, no sentido de não apenas ampliar o acesso à justiça dos necessitados, mas de todos os usuários do microssistema, contemplando, portanto, outras formas de vulnerabilidades.

Sobre o autor
Paulo Afonso Brum Vaz

Doutor em Direito Publico (Unisinos), Mestre em Poder Judiciario (FGV), Desembargador Federal do TRF4, Professor e escritor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VAZ, Paulo Afonso Brum. Limitações à gratuidade de Justiça e possíveis retrocessos inconstitucionais: (MPV 1.045/21). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6631, 27 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92557. Acesso em: 22 dez. 2024.

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