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Violência doméstica:

possibilidade jurídica da nova hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade

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Agenda 21/12/2006 às 00:00

(C) A sistemática legal da prisão cautelar indica que são óbices a sua admissibilidade: (i) tratar-se de crime culposo ou não punido com reclusão (CPP, art. 313); (ii) que a pena de reclusão cominada seja de tal monta que, tendo em vista o regime prisional a ser aplicado, a prisão cautelar seja mais grave que a sanção eleita pelo legislador, o que faz incidir a reprovação do princípio da proporcionalidade, pois o meio empregado – prisão – é inadequado aos fins da Jurisdição, uma vez que o convívio social do agente não foi considerado pernicioso, em abstrato.

Pois bem, não vemos incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisão cautelar para assegurar o cumprimento e efetividade das medidas de proteção descritas na Lei Maria da Penha e a sistemática legal e constitucional da prisão ante tempus.

Veja-se a redação do art. 42 da citada Lei:

Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:

"Art. 313.... . .............................................

................................................................

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência." (NR)

Decorre da subordinação do teor das partes do artigo ao contido em sua cabeça, como impõe o art. 10 da Lei Complementar 95/98, que nos crimes dolosos punidos com detenção, como, v.g., a lesão corporal leve perpetrada em situação de violência doméstica – hipótese estatisticamente mais relevante – a sistemática infraconstitucional foi adaptada às pertinentes críticas da doutrina quanto à impropriedade das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 no caso [19], e que o rito ainda teria aplicação, haja vista a celeridade que propicia, sem prejuízo da correção da prestação jurisdicional e da garantia constitucional ampla defesa.

Apesar de aviltante e comprometedora da integridade deste caro ser que é a mulher (mãe, esposa, irmã etc.), a realidade da violência doméstica, apesar dos diversos Tratados e Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, somente em tempos recentes tem merecido atenção.


(D) A evolução legal do tema revela, com o devido respeito, certo descompromisso e assistematicidade legislativa: (i) primeiramente a pena mínima cominada foi aumentada, o que foi desinfluente, pois continuava a incidir a Lei 9.099/95 e a malsinada pena de pagamento de cesta-básica que, além de não servir como prevenção, seja geral ou especial, incentivava o desrespeito, haja vista a impunidade decorrente do tratamento da questão como infração de menor potencial ofensivo [20]; (ii) a Lei 11.340/06 afasta, de modo ambíguo e questionável em certos aspectos a aplicação da Lei 9.099/95 [21].

Pesquisa realizada pelo Senado Federal [22] transparece a violência doméstica como agir tradicional que tem como âmbito comum a família, e que não é incomum a reiterada prática dessa modalidade de desrespeito – a pesquisa revelou que 50% das mulheres inquiridas já tinham sido violentadas por 04 ou mais vezes.

Há mais.

Outra pesquisa, dessa vez realizada pelo IBOPE neste ano de 2006, estarrece ao constatar que "Em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas aplicadas nos casos de violência contra a mulher são irrelevantes e que a justiça trata este drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante" [23].

A interpretação sistemático-teleológica do marco legal da prisão cautelar não deixa dúvidas sobre o cabimento, em tese e conforme as vicissitudes do caso concreto, da prisão em testilha:

Da interpretação sistemática do dispositivo acima transcrito, podem-se extrair as seguintes conclusões: 1 – a prisão preventiva cogitada na Lei "Maria da Penha" continua cabendo apenas diante de crimes dolosos, a uma porque o novel inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal se subordina ao seu caput, onde, na parte final, se estabelece que a medida excepcional só cabe em crimes dolosos, estando, por conseguinte, excluídas de sua incidência as contravenções e os crimes culposos. A duas porque em sede de crime culposo não se cogita de "violência" doméstica e familiar contra a mulher; 2 – o inciso IV pode abranger qualquer crime doloso, independente da pena ou das condições pessoais do criminoso, desde que praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, com a identificação conceitual estabelecida nos arts. 5º e 7º da Lei em exame; 3 – neste caso específico de prisão preventiva do inciso IV, a medida será ainda mais excepcional e, necessariamente, subsidiária às outras medidas cautelares, definidas como protetivas de urgência, estabelecidas nos arts. 22, 23 e 24 da Lei "Maria da Penha". Só caberá a prisão preventiva, nas hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher aventadas exclusivamente no inciso IV do art. 313 para assegurar a eficácia daquelas medidas protetivas de urgência, se as mesmas, por si só, se revelarem ineficazes para a tutela da mulher; 4 – tal restrição, no entanto, se torna desimportante na hipótese do caso se enquadrar nas demais situações estabelecidas nos arts. 313, I, II e III do Código de Processo Penal, os pressupostos clássicos da prisão preventiva, ou seja, crime doloso punido com reclusão, punido com detenção quando o réu é vadio ou há dúvidas sobre sua identificação, ou, independente da pena cominada, se o réu já foi condenado por outro crime doloso. Presentes algum dos outros três pressupostos da prisão preventiva, ainda que o crime seja resultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, não se precisará recorrer ao inciso IV, cabendo a prisão preventiva, independente da eficácia ou não das outras medidas protetivas de urgência, pelas simples hipóteses estabelecidas nos incisos I, II e III.

O inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal, como visto, alarga sobremaneira as hipóteses de cabimento de prisão preventiva, passando a comportá-la, em tese, qualquer crime doloso, independente da pena cominada (injúria, ameaça, lesão corporal etc.), desde que resultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, em sua concepção conceitual, e que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei "Maria da Penha" não sejam suficientes para a tutela da vítima. É preciso, portanto, principalmente nos crimes ditos de menor potencial ofensivo, como os acima mencionados, em virtude da pequena quantidade de pena privativa de liberdade cominada, que o Juiz aja com bastante prudência na hora de decidir pela prisão do agressor, medida que só pode ser reservada a ultima ratio e, em nenhuma hipótese, pode exceder, em tempo de duração, à projeção de aplicação da pena privativa de liberdade cominada, em caso de condenação, o que faria com que perdesse o contorno de cautelaridade que se deve exigir da prisão preventiva [24].

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(E) Esta ultima observação é extremamente importante, pois a Constituição reprova, no inciso XLVII do art. 5º, as penas de caráter perpétuo.


(F) Noutro giro, não há lesão ao princípio da proporcionalidade, apesar de ser inegável a mora legislativa em dar correto tratamento ao tema, tanto em seus aspectos meta-penais – talvez os mais pertinentes – quanto em relação às penas cominadas. E isso mesmo em face do princípio da intervenção mínima.

Este princípio – valor condensado, se preferirmos uma imagem – determina, nas palavras de LUIZ RÉGIS PRADO que o Direito Penal "só deve atuar na esfera dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa" [25].

Pois bem, é induvidoso que nosso ordenamento está equipado com outros meios tendentes a dar cobro à violência doméstica.

Todos ineficazes, entretanto.

Há a medida cautelar de separação de corpos; de afastamento do cônjuge do lar conjugal; de alimentos provisionais; a punibilidade da ameaça; já havia a lesão corporal, independentemente de quem seja a vítima e de seu relacionamento com o agressor; etc.

Mas a realidade nos informa que nenhuma dessas medidas foi ou têm sido eficazes para evitar ou fazer cessar a violência doméstica e familiar baseada no gênero – incluindo-se mesmo a violência contra a criança ou contra o idoso. Lembremos que, nos termos do art. 5º da Lei 11.340/06, os bens jurídicos tutelados são: a integridade física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. É materialmente típico até mesmo o sofrimento relevante decorrente da mácula a tais bens.

Talvez a seara penal não seja a mais adequada ao tratamento do tema [26].

Mas é urgente a adoção de alguma postura idônea, tal como a fuga da presa que sente seu predador a rondá-la. Ou, em outra imagem, da mulher que, dadas as circunstâncias, se vê dormindo com o inimigo.


(G) O direito comparado nos apresenta significativos exemplos no sentido de que a via extrema deva ser empregada na falência dos demais mecanismos à disposição do julgador.

MARIA ELISABETE FERREIRA [27], dissertando sobre o ordenamento jurídico português, informa que apesar de a solução penal não ser suficiente para erradicar o problema da violência conjugal, tem sido adotada diante da insuficiência dos outros instrumentos disponibilizados por aquele ordenamento jurídico – situação em tudo semelhante ao que ocorre entre nós.

O fato concreto, que sangra aos olhos, é vivermos em um Estado de Direito democrático que tem na legislação – assim entendida como fruto do processo legislativo constitucional e, portanto, veiculadora do interesse público [28] – o limite da atividade do aplicador do Direito [29] cotejado com a urgência de livrarmos nossas mulheres desta odiosa faceta da violência: a perpetrada em casa e pelo ente amado – o que foi amado em outros tempos.

A realidade demonstra não haver meio menos gravoso de limitar a ação do agressor em favor da integridade – do direito à vida mesmo [30] – da mulher vítima, forçoso convir que a prisão preventiva, revelada no caso concreto como necessária, meio idôneo à garantia de não reiteração da violência e da efetividade das medidas integradas de prevenção e proteção é a medida cautelar que se impõe.


(H) Oportuna é a lição de DANIEL SARMENTO, indicativa da relevância do problema e das soluções possíveis para o caso concreto:

A partir do caso concreto, o operador do direito deve buscar a solução mais justa, através de um procedimento circular, por intermédio do qual são testados os diversos topoi (pontos de vista), para verificar qual deles acena com a melhor resposta para o problema enfrentado [31].

Nesta esteira, também não há incompatibilidade com a nova previsão de prisão preventiva com os expressos termos do art. 312 do CPP que em seu primeiro inciso permite a prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Este conceito – ordem pública – é dos mais controvertidos em Direito, mas não há dúvidas em definir a prisão preventiva para garantia da ordem pública como aquela "decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinqüir", como sintetiza FERNANDO CAPEZ, haja vista o "evidente perigo social decorrente na demora em se aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgado da decisão condenatória o sujeito terá cometido inúmeros delitos. Os maus antecedentes ou a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável prática de novos delitos e, portanto, autorizam a decretação da prisão preventiva com base nesta hipótese" [32].

O mesmo entendimento, acolhido sem divergência significativa pela Jurisprudência, é exarado pelo garantista PAULO RANGEL, ao lecionar que "Por ordem pública, deve-se entender a paz e tranqüilidade social, que deve existir no seio da comunidade, com todas as pessoas vivendo em perfeita harmonia, sem que haja qualquer comportamento divorciado do modus vivendi em sociedade" [33].

Mesmo o advogado FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO atesta idêntico entendimento em sua doutrina:

A lei fala em ‘garantia da ordem pública’. Segundo De Plácido e Silva, entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto (Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro, Forense, v. 3, p. 1101). Ordem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social [34].

Logo, a prática de crimes contra a mulher em situação de violência doméstica é suporte fático suficiente à incidência do inc. I do art. 312 do CPP [35].

Sobre o autor
Rodrigo da Silva Perez Araujo

Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, atualmente auxiliando na 2ª Vara Criminal da Comarca de Palmas-TO e respondendo pela Comarca de Novo Acordo (TO). Especializando em Direito Civil e Processo Civil pela UNIASSELVI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Rodrigo Silva Perez. Violência doméstica:: possibilidade jurídica da nova hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1268, 21 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9304. Acesso em: 24 nov. 2024.

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