Resumo:
A nova hipótese de prisão preventiva estabelecida pela Lei 11.340/06 não encontra reprovação no arcabouço legal capitaneado pelo artigo 312 do Código de Processo Penal, nem na Constituição Federal.
Houve adequação sistemática da prisão ante tempus.
O estágio técnico-jurídico e social atuais indicam a adequação da prisão – condicionada temporalmente ao tempo mínimo de prisão cominada à conduta optada – como medida idônea a garantir efetividade às medidas de proteção instituídas pela Lei Maria da Penha.
Ademais, não há em nosso ordenamento outro meio idôneo a garantir a dignidade da mulher em situação de violência doméstica, de modo que se deve atribuir maior peso a seu direito à integridade, à vida mesmo, em detrimento da episódica restrição da liberdade do agressor.
Palavras-chave: violência doméstica. Prisão preventiva. Possibilidade jurídica. Princípio constitucional da proporcionalidade: adequação dos meios aos fins e menor restrição possível.
Sumário:1. Introdução; 2.Colocação e debate; 3.Bibliografia.
1. Introdução
A Lei 11.340/06 introduziu nova possibilidade de prisão preventiva – para assegurar a efetividade das medidas de proteção nela previstas –, oportunidade em que acrescentou o inciso IV ao art. 313 do Código de Processo Penal. Compatibilização relevante porque a lesão corporal leve é, estatisticamente, a violência doméstica mais significativa contra a mulher.
Entretanto, permanece a controvérsia acerca da constitucionalidade desta prisão cautelar, pois o princípio da proporcionalidade indica a que a prisão ante tempus não poderia ser mais severa que a pena ao final aplicada ao acusado.
2. Colocação e debate.
Antes de nos posicionarmos propriamente a respeito da possibilidade constitucional e legal, em tese e conforme art. 20 da Lei 11.340/06 [01], da prisão preventiva nos casos de violência doméstica, faz-se pertinente considerar a sede adequada para a discussão da questão, o resultado admissível da ponderação entre os valores e princípios envolvidos, (sem vírgula) e a inexistência de incompatibilidade dessa nova possibilidade com as disposições legais pertinentes à prisão ante tempus.
(A) O Direito tem pretensões sistemáticas, pois impõe ao Legislador e ao intérprete, por lógica, ainda que não a formal – própria das ciências naturais -, mas a do razoável [02], calcada nos valores eleitos e na adesão do auditório [03], o princípio da não-contradição, ou melhor, um dever de coerência.
Esse sistema pode ser lido, como fez KELSEN, de um ponto de vista estático, dando ênfase à Constituição, fundamento de validade das normas, ou de um ponto de vista dinâmico, assim entendido como aquele que, por indução, procura fazer prevalecer o valor eleito como parâmetro deôntico, do dever-ser. Essa é a lição de NORBERTO BOBBIO [04].
O Mestre, após assentar que o sistema jurídico seria um tertius genus resultante dessas duas modalidades de sistema, aduz que:
"... confrontando com um sistema dedutivo, o sistema jurídico é alguma coisa menos; confrontando com o sistema dinâmico do qual falamos no parágrafo anterior, é algo de mais: de fato, se se admitir o princípio de compatibilidade, para se considerar o enquadramento de uma norma no sistema não bastará mostrar a sua derivação de uma das fontes autorizadas, mas será necessário também mostrar que ela não é incompatível com outras normas. Nesse sentido, nem todas as normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas, mas somente aquelas compatíveis com as outras".
Mais adiante, após apresentar com clareza impar as antinomias jurídicas, salienta a insuficiência dos critérios tradicionais de interpretação: verificação da contemporaneidade das normas, bem como de sua hierarquia e de se tratar de normas gerais ou especiais, pois são possíveis, sem prejuízo de qualquer natureza, contradições valorativas intestinas.
Acrescenta, em lição pertinente, que o dever de coerência, portanto, não é condição de validade, mas de justiça do ordenamento [05].
Justiça é daquelas definições altamente controvertidas em Direito. Entretanto, sem maiores digressões, por exemplo, a respeito de sua coincidência com a moral, como quis KELSEN [06], é possível entendê-la, ao menos de um ponto de vista prático, como atenção aos princípios gerais do Direito. Essa é a lição de OTFRIED HÖFFE, professor honoris causa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul:
Em estilo claro e sintetizado de modo aforístico, como que talhado em pedra, eles declaram: ‘As prescrições do direito são estas: viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é seu’.
(...)
De acordo com entendimento convencional, os três princípios afirmam essencialmente a mesma coisa. O primeiro, ‘vive honestamente’ (honeste vive), ordena uma probidade que consiste, em sua determinação negativa, na proibição ‘não leses ninguém" (neminem laede) e, positivamente, no imperativo ‘dá a cada um o que é seu’ (suum cuique tribue)" [07].
Sabe-se que a Constituição é o primeiro fato jurídico do fenômeno político – evidência próxima disso é nossa Carta Constitucional e os embates que se deram na Assembléia Constituinte.
Logo, podemos dizer que:
... o legislador [inclusive o infraconstitucional] se põe em conflito com as suas próprias valorações, e que, portanto, a contradição valorativa é uma contradição imanente. (...) Diferentemente das contradições normativas, que de forma alguma podemos deixar subsistir, as contradições valorativas têm em geral que ser aceitas [08].
Tal confronto, que se dúvida também se dá em sede infraconstitucional, é solvido pelo princípio da proporcionalidade, com sede no princípio do devido processo legal substantivo, e seus conhecidos subprincípios da adequação do meio-fim, da necessidade e da menor restrição possível. Adensa o princípio da razoabilidade, pelo qual "...o intérprete/aplicador avalia a lógica do razoável (...) tenta compatibilizar interesses com razões e não a causa com o efeito. (...) Enquanto a lógica formal busca referenciar causa e efeito, a lógica do razoável define a decisão que melhor compatibiliza interesses e razões que são apenas experimentalmente referenciáveis, sujeitos a valorações subjetivas. (...) Essa lógica do razoável se caracteriza, resumidamente, por estar: a) condicionada à realidade concreta do mundo histórico-social para o qual estão voltadas as normas jurídicas; b) repleta de postulados axiológicos, valores que devem se relacionar com as possibilidades e limitações do mundo real e que constituem o objetivo que define as escolhas dos fins almejados pelo intérprete. (...) CHAIM PERELMAN... leciona que os direitos concedidos a um indivíduo não podem ser exercidos de forma desarrazoada, ou seja, de forma abusiva, inaceitável pela comunidade num dado momento. Assim, o desarrazoado ocorreria quando, da aplicação concreta de determinada lei, decorressem conseqüências injustas, ridículas ou opostas ao normal funcionamento do Estado" [09].
A razoabilidade diz respeito, portanto, aos anseios da sociedade.
Oportuno é o esclarecimento de FÁBIO ULHOA COELHO:
O aplicador do direito, para fazer uso da lógica do razoável, deve investigar algumas relações de congruência. Especificamente, ele deve se indagar: quais são os valores apropriados à disciplina de determinada realidade (congruência entre realidade social e os valores)? Quais são os propósitos concretamente factíveis com os valores prestigiados (congruência entre os fins e a realidade social)? Quais são os meios convenientes, eticamente admissíveis e eficazes, para a realização dos fins (congruência entre meios e fins)? [10]
Pois bem, exemplo legislado no Código Penal da convivência de proteções conflitantes dispensadas a valores significativos e da aplicação da lógica do razoável é, para mencionar apenas um, o seguinte: estatui o art. 128, inc. II, dessa codificação que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
É o que se convencionou chamar de aborto sentimental.
Não vemos como deixar de perceber aí uma ponderação do legislador – em norma cuja constitucionalidade jamais foi questionada – entre o direito à vida daquele ser em formação – cujos interesses são resguardados na esfera cível (Código Civil, art. 2º, in fine) – e o direito da gestante a uma sobrevida digna, sem os percalços psicológicos que aquela vida, produto de conjunção carnal não consentida, obviamente, lhe traria.
Tema atual, aliás, haja vista a ainda não pacificada possibilidade ou não de aborto de anencéfalo, tendo havido inclusive medida liminar no Supremo Tribunal Federal admitindo essa possibilidade, apesar de digladiarem diversos setores sociais, cada um buscando ver preponderar seu ponto de vista.
O Ministro Marco Aurélio afirmou, quando da análise da questão, que "A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero" [11].
Avulta, nessa quadra, a significação que se deve dar ao interesse preponderante, ou de maior peso, no confronto do direito à liberdade do agressor em face do direito, em última análise, à vida da mulher vitimada; o que se deve fazer pela lente da insuficiência dos meios e métodos postos pelo ramo meta-penal do Direito para a solução da violência doméstica.
Seguindo esta linha de raciocínio, a família é a menor unidade social – célula mater –, hoje funcionalizada, ou melhor, concebida não mais como um fim em si mesma [12], mas reconhecida como locus privilegiado para o mais amplo e completo possível desenvolvimento da personalidade, núcleo [13] do princípio da dignidade da pessoa humana [14].
Ao resguardar expressamente a dignidade humana no contexto da proteção dispensada à família, a Constituição Federal está a impor o respeito a "todos os valores e direitos que podem ser reconhecidos à pessoa humana, englobando a afirmação de sua integridade física, psíquica e intelectual, além de garantia a sua autonomia e livre desenvolvimento da personalidade [veja a semelhança entre estes aspectos e as formas de violência contra a mulher, tipificadas no capítulo II do título II, art. 7º da Lei Maria da Penha].
"A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola propulsora da intangibilidade da vida humana, dela defluindo como consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; ii) a admissão da existência de pressupostos materiais (patrimoniais inclusive) mínimos para que se possa viver; e iii) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.
"A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais" [15].
Essas considerações são lugares comuns, mas nem por isso desinfluentes, na interpretação e cotidiana aplicação do direito. É o que nos revela a consulta à jurisprudência deste E. TJDFT.
(B) Nesta senda, ambos os atores do tristemente afamado episódio de violência doméstica e familiar são dotados dessa intrínseca qualidade de ser, de modo que aqui se revela (i) a insuficiência dos métodos ortodoxos de compreensão e aplicação do Direito legislado e (ii) campo fértil para a ponderação dos confrontantes valores: (ii.i) necessidade contrafática de afastar o agressor da mulher – hipossuficiente no aspecto físico, no mais das vezes [16] –, assim compreendido nos termos da Lei 11.340/06, respeitando, portanto, a dignidade da mulher e, em conseqüência, de seus filhos, cujos modelos (a serem seguidos ou jamais o ser) para toda a vida são ambos os pais – merecedores de proteção integral (Constituição Federal, art. 227); (ii.ii) necessidade de resguardar a dignidade do agressor, que não pode ter sua liberdade cerceada senão nas excepcionais hipóteses legais, haja vista o direito/garantia constitucional da presunção de não-culpabilidade (Constituição Federal, art. 5º, inc. LVII) a impor, por critério de justiça procedimental, que a ele não seja dispensado tratamento de culpado, senão após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
A questão, portanto, que subjaz à possibilidade jurídica de decretação da prisão preventiva para os casos de violência doméstica (Lei 11.340/06, art. 20), se apresenta mais em termos principiológicos do que de conformidade infraconstitucional ou coerência legal. Não é decorrência de eventual conflituosidade entre a nova possibilidade de prisão ante tempus, com o arcabouço normativo capitaneado pelo art. 312 do Código de Processo Penal.
Trata-se de antinomia apenas aparente, pois a novatio legis é lei especial posterior e da mesma hierarquia do Código de Processo Penal (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º), reformando-o, inclusive, ao acrescentar mais um inciso ao art. 313 dessa codificação.
Assim é que, apesar do respeito que temos às opiniões em contrário e das limitações intrínsecas a uma primeira aproximação do tema, não há incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisão preventiva e os artigos do Código de Processo Penal sobre o tema.
Pertinente é considerar que há Súmula do Superior Tribunal de Justiça compatibilizando, em tese, entre (tirar) o teor do inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal e a prisão cautelar. Calha, assim, tendo em vista a relevância e repercussão do tema, a leitura do precendente mais moderno desse consagrado Enunciado [17], desde já pedindo vênia pela extensão do excerto:
Com o devido respeito ao Professor Frederico Marques, entendo que seu parecer está equivocado. Isto porque, quando a Constituição Federal estabelece que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ nada mais está fazendo do que elevar, a nível constitucional, velho e conhecido princípio geral de direito penal. Neste sentido foi o julgamento do HC...
Em verdade, como tem sido reiteradamente decidido pelo Tribunal recorrido [TJSP], o dispositivo constitucional deve ser interpretado em consonância com os demais textos que disciplinam a prisão, não sendo correto sustentar somente ser possível, depois da vigência da nova Constituição da República, a prisão de quem já tenha sido definitivamente condenado.
Com efeito, como salientou o Desembargador Canguçu de Almeida, acolhendo parecer deste Procurador de Justiça, ‘o preceito constitucional obsta a conceituação como culpado, mas não veda a imposição provisória da prisão, quando decorra esta de determinação legal (como no caso do art. 35 da Lei 6.368/76) ou o prudente arbítrio do juiz (como em casos de prisão preventiva); proíbe, como ressaltado no parecer de fls. 47/49, a reprovação social, mas não impede que, em nome da garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, se imponha a prisão cautelar do agente’...
Assim é que ‘não há novidade neste preceito e nem possui qualquer influência sobre as formas de prisão preventiva, que continuam existentes... " [18] (destaques nossos).
Tais ponderações são atuais, pois é recorrente o brado pela presunção de inocência.