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Processo e responsabilidade ambiental

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Agenda 05/11/2021 às 14:55

2. A RESPONSABILIDADE DO MEIO AMBIENTE ENQUANTO PATRIMÔNIO

Com o objetivo de superar as dificuldades em implementar uma concepção mais elevada de responsabilidade civil ambiental, sustenta-se que é necessário analisar a proposta do instituto jurídico do patrimônio[7] apresentado por Ost (1995). O autor belga busca construir um estatuto jurídico que esteja à altura da complexidade do paradigma ecológico, em outras palavras, que concilie a luta dialética que acontece nas relações do homem com a natureza.

O patrimônio é, em vista disso, o estatuto que concilia a responsabilidade na produção, no consumo, perante as gerações futuras, respeitando os ciclos, processos e equilíbrios da capacidade de regeneração dos recursos pela própria natureza. Logo, só poderia o patrimônio ser um conceito transtemporal e translocal. Transtemporal pois é, simultaneamente, de hoje, de ontem e de amanhã, como uma herança do passado que, transita pelo presente e se destina a ao futuro. É a herança das gerações passadas, transmitido como recurso para as gerações presentes e, é também, a garantia das gerações futuras, em relação às quais se contrai a dívida de transmissão (na forma de responsabilidade). Translocal pois está presente em todos os locais, é ubíquo, uma vez que os recursos naturais transitam através da propriedade jurídica tradicional e transcendem-na, na medida em que um interesse mais geral as finaliza (OST, 1995).

Para Ost (1995, p. 338), conceber a responsabilidade em relação às gerações futuras sob a forma da transmissão de um patrimônio é estabelecer uma relação com a ideia kantiana de humanidade, o que segundo o autor reintroduz, na apresentação do mecanismo, uma certa dose de simetria e de equilíbrio próprio da justiça comutativa. Dito de outra forma, se a obrigação com o meio ambiente é incondicional, não é, contudo, necessariamente unilateral. Este modelo tem, segundo Ost, a vantagem de fornecer um quadro filosófico adequado para uma transcrição jurídica, sob a forma de “patrimônio comum da humanidade”, de trust, de “coisas comuns” e de responsabilidade objetiva. Então, o conceito de patrimônio, segundo o autor, se reveste “originalmente de uma incontestável conotação doméstica: trata-se, da parte do pai – dos bens, sem dúvida, mas também de um estatuto, um papel, uma simbólica, que se transmite de geração para geração” (OST, 1995, p. 338).

Fazer uso do estatuto jurídico do patrimônio, segundo Ost (1995), com o objetivo de pensar a responsabilidade ecológica apresenta assim inúmeras vantagens. O autor entende que os sujeitos que resistem à ideia de assumir uma responsabilidade em relação as gerações futuras, aceitam muito mais naturalmente o princípio de uma responsabilidade em relação aos seus antepassados, que transmitiram o patrimônio ecológico. Dessa forma, a ideia de responsabilidade se vira, de forma marcante, para o futuro, “em lugar de procurar os culpados das ações passadas, ela serviria para definir o círculo das pessoas solidariamente investida de novas missões” (OST, 1995, p. 309). Além disso, a extensão da responsabilidade para as gerações futuras deveria vir acompanhada de exigências maiores com a preservação no longo prazo, em vez de a geração atual se contentar com as facilidades do consumo no curto prazo.

Contudo, com fundamento em Honneth (2015), a instituição do agir na esfera jurídica se mostra insuficiente como local apropriado para a transmissão do patrimônio e o desenvolvimento da responsabilidade teorizada por Ost (1995). Uma vez que, o ordenamento jurídico só obtém a aprovação dos indivíduos quando está em condições de satisfazer às expectativas individuais de cada um deles. Em tal ordenamento jurídico, os sujeitos não possuem a oportunidade de, conjuntamente, verificar e renovar sua anuência às leis, ou seja, a esfera jurídica não permite que os cidadãos sejam os autores e os renovadores de seus próprios princípios jurídicos (HONNETH, 2015, p. 55-56). Diante disso, utilizando a teoria de Honneth não seria a responsabilidade civil, fundada na esfera do direito, o instrumento que salvaguardaria um meio ambiente concebido como patrimônio. Para tanto, seria necessário que os sujeitos, no seu relacionamento entre si e com o meio, façam uso de instituições que permitam uma relação de maior intersubjetividade e reconhecimento, onde o indivíduo necessite justificar suas ações perante um ponto de vista adicional e de grau mais elevado que o jurídico, o que, portanto, lhe atribuiria um interesse na cooperação com todos os demais (HONNETH, 2015, p. 55-56).

As instituições que servem como base para uma responsabilidade civil ambiental mais elevada são aquelas onde os indivíduos estão em tal reconhecimento recíproco que as finalidades dos seus atos podem ser compreendidas sempre como condição de satisfação dos objetivos de ação de sua contraparte. Afinal, os sujeitos podem vivenciar a realização de seus desejos como algo que é, também, desejado ou aspirado pelos outros na esfera da realidade social. As expectativas de comportamento dos indivíduos dentro dessas instituições relacionais são institucionalizadas sob a forma de papéis sociais que, normalmente, asseguram uma correta integração das atividades no cumprimento dos respectivos papéis. Desse modo, as ações, que em si são inconclusas, complementam-se na reciprocidade da ação conjunta prevista por todos os participantes (HONNETH, 2015).

Então, a proposta é de que a responsabilidade ambiental alcança uma realidade socialmente experimentável e socialmente vivida em complexos institucionais com obrigações de papéis complementares. Isto significa, em outras palavras, que é possível falar em responsabilidade civil ambiental somente no contexto de obrigações sociais que surgem quando o indivíduo desempenha certos papéis sociais. Afinal, um grau elevado de responsabilidade ecológica, tal qual Ost imagina, não pode ser pensado tendo como base o sujeito isolado do contexto social no qual ele está inserido, esta responsabilidade só pode ser vivida em tal contexto, isto é, na interação com outros indivíduos – e por intermédio das instituições garantidoras de tal reconhecimento intersubjetivo.


3. PENSAR O PROCESSO DEMOCRATICAMENTE

Na democracia constitucional brasileira, os problemas da sociedade precisam ser resolvidos mediante decisões democraticamente legitimadas. Ocorre que os direitos constitucionais, como é o caso do direito ao meio ambiente, são normas abertas, com conteúdo que precisam ser definidos pelo agir da sociedade, respeitado o contexto histórico. Posto isto, diante de embates no campo do direito constitucional ao meio ambiente, é o poder judiciário (e não a sociedade) que é chamado a tomar decisões e dar sentido concreto acerca de valores constitucionais que são tratados de forma genérica e abstrata na Constituição Federal. Desse modo, o que se apresenta é o fato de a esfera de agir jurídica ser uma instituição social que pode dificultar os processos políticos democráticos, preterindo uma decisão político-democrático, por uma decisão técnico-jurídica. Afinal, O modelo atual de processo tutela tão-somente o contencioso individualizado, vinculado a uma matriz contratualista, liberal e burguesa. (MARIN, 2012, p. 87).

A percepção das crises do Estado na pós-modernidade que deflagram a busca pela identidade perdida, decisivamente influenciada pelo modelo racionalista-liberal, põem-se como condição de enfrentamento da inefetividade do ato decisional. Nesse contexto, o paradigma liberal-individualista registra um conflito permanente com o modelo de Estado Social, que privilegia a tutela dos direitos difusos-coletivos. Assim, segundo Marin, o Welfare State produziu mutações no modelo liberal, inserindo a igualdade no rol de direitos a serem tutelados. Desse modo, a superação do paradigma privatista-formalista constitui-se no primeiro passo para o abandono do conformismo provocado pelo liberalismo, o qual recolhe a força de trabalho da sociedade e oferta migalhas, estimulando a satisfação artificial de uma realidade excludente (MARIN, 2009, p. 17-18). Além, segundo o autor, a prevalência do critério econômico nas decisões estratégicas do Executivo tem influenciado, também, o fundamento decisório dos tribunais, especialmente quanto ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que tem se colocado como corresponsável na asseguração da estabilidade econômica do país. (MARIN, 2015, p. 29).

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O principal motivador da crise jurisdicional, para Marin (2015), é a ausência de um perfil democrático na atividade judicante, o que retira a legitimidade social e ética do procedimento. Esse caráter individual do direito é fruto de um Estado ocidental e acarreta no fenômeno da funcionalização do direito[8], onde o direito perde autonomia e se torna mero serviçal da economia, da política e do Executivo. Dentro da crise jurisdicional, é preciso, também, reconhecer que o sujeito contemporâneo não se afastou do homo economicus do século XVIII, ou seja, ainda é um sujeito de opções individuais irredutíveis, conduzido pela “mão invisível” de que falava Adam Smith. Segundo Saldanha, essa foi a marca definitiva do chamado “processo civilizador” que inaugura a modernidade e teve como foco os indivíduos, quando os controles comunais foram substituídos pela capacidade de autocontrole daqueles sob o comando do pensamento racional, única manifestação de civilização. Atualmente, insiste-se em manter os instrumentos processuais a serviço desse individualismo, embora a realidade dos conflitos sociais aponte na direção inversa, isso é, na necessidade de que o processo saiba tratar coletiva e democraticamente as demandas da cidadania (SALDANHA, 2009).

Somado a isso, o Código de Processo Civil, norma basilar da disciplina processual, não fornece uma resposta jurídico-científica a altura do grau de complexidade e especialização que é exigida na tutela dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos. Como afirmam Marin e Lunelli, o Código de Processo Civil está bem adequado às demandas individuais de proteção possessória, desse modo, por exemplo quando ocorre uma situação de esbulho em uma propriedade, o processo é célere e eficaz. Por outro lado, o mesmo não ocorre quando o esbulho é praticado por uma coletividade. Nesses conflitos de direito material, o processo não está adequado e é comum que se busquem soluções em áreas diversas, inclusive na esfera política, afinal existe uma percepção que a solução alcançada pelo processo está muito distante da natureza do conflito que se apresenta. (MARIN; LUNELLI, 2008, p. 23-24).

Esse desenho processual é, segundo Saldanha (2009, p. 52), inspirado do individualismo liberal que é avesso às tutelas coletivas – e a toda forma de coletivismo. Ainda segundo a autora, esta ineficácia da tutela individualizada pode em parte ser associada a um modelo de processo pensado para atender litígios individuais e de natureza privada no século XIX. Pois, o processo foi criado para resolver litígios entre devedores e credores, cujo resultado final não poderia deixar de ser apenas uma condenação, ainda que, em certa medida, esse modelo processual continue compatível com as demandas individualistas atuais. Porém, sensíveis são as diferenças relativamente às demandas condenatórias da época romana ou da sociedade industrial do século XIX. O século XX soube produzir relações jurídicas massificadas de toda ordem, sobretudo aquelas produzidas pelas relações de consumo, em que a figura do devedor-consumidor pode muito bem ser associada ao de um escravo dos tempos hipermodernos (SALDANHA, 2009).

A crítica ao individualismo também está presente em Honneth (2015), para o autor alemão é possível reconstruir normativamente a esfera jurídica a partir de duas perspectivas. A primeira delas se refere ao sistema do direito que garante aos indivíduos um espaço de autonomia privada, onde os sujeitos possam se resguardar de todos os deveres e vinculações para com os outros. O problema identificado é de que o emprego de um direito subjetivo cria uma forma de estado de exceção temporário, no qual aquilo que é tratado efetivamente na conformação de uma vida autônoma é de certo modo suspenso. Nesse estado, o sujeito jurídico não reflete sobre os objetivos individuais, nem os realiza de maneira ética, porque trata seus parceiros de interação apenas como atores com interesses estratégicos. Portanto, os direitos são usados como uma barreira às exigências de justificação que provêm dos outros indivíduos e, a partir disso, os indivíduos tendem a planejar e agir a partir de uma perspectiva de êxito diante de um tribunal. Diante do exposto, percebe-se como Honneth compreende a necessidade de não se confundir a liberdade individual com a liberdade jurídica.

Honneth (2015) denomina como primeira geração de direitos subjetivos, ou, os direitos liberais de liberdade, significa normativamente permitir ao indivíduo adotar uma posição de autocomunicação puramente privada, protegida pelo Estado. Desse modo, os direitos liberais de liberdade remetem conceitualmente a uma complementaridade dos direitos sociais – segunda geração –, que garantem aos indivíduos a medida de segurança econômica e bem-estar material necessários para explorar seus próprios objetivos de vida de maneira privada e afastando-se das conexões de cooperação social. É possível transpor a teoria do autor ao âmbito processual, entendendo como a defesa tradicional dos direitos de primeira e segunda geração como a defesa de direitos individuais por meio de um processo de matriz individual.

Por outro lado, se as duas primeiras classes de direitos erguem uma barreira de proteção, por trás do qual o indivíduo pode se retirar, a terceira classe (direitos políticos) é construída para superar esse isolamento produzido. Assim, o conceito de direitos políticos remete a uma atividade que deve ser exercida em cooperação com todos os demais partícipes do direito. Portanto, as duas primeiras gerações de direitos só se realizam quando as pretensões por elas garantidas são aproveitadas para a construção de um eu privado, enquanto a terceira geração deve ser interpretada como um estímulo à cooperação e formação de uma vontade comum. E aqui, se insere o direito ao meio ambiente, como um direito que requer um processo voltado à cooperação e participação democrática.

Dessa forma, se faz necessária um grande movimento pela publicização da jurisdição, com o intuito de se romper com o individualismo, que, fruto do caráter liberal do direito, deita suas garras na modernidade, constituindo-se numa de suas principais características. (MARIN, 2009, p. 23). Afinal, “é preciso manter acesa a chama de sobrevivência dos espaços sociais, dando-se possibilidades de desenvolvimento dos ideais comunitários” (MARIN; LUNELLI, 2008, p. 25).

Inevitável observar atentamente os dizeres de Saldanha, afinal antes de investigar sobre que tipo de jurisdição ou de processo judicial se pretende para uma determinada sociedade, é inevitável observar qual o perfil de Estado que se deseja. Isso implica dizer que o direito, para além do simples texto de lei, tem sua substância moldada na Constituição e que o juiz, além de um funcionário público e de agente solucionador de um conflito intersubjetivo, é um sujeito de poder que, através da interpretação e da hermenêutica da norma, pode fazer valer os princípios constitucionais que fundamento todo o ordenamento pátrio. Assim, toda e qualquer decisão deve se guiar pelos princípios constitucionais e buscar a efetivação dos direitos fundamentais, deste modo, o poder judiciário estaria exercendo sua função primordial, qual seja a consolidação dos valores esculpidos na Constituição. Resta, portanto, para a autora, a conclusão de que a função jurisdicional (por excelência) não se contenta com o modelo de mera solução de controvérsias (de aspecto individualista) mas vai além desse paradigma, para alcançar a plena realização dos valores constitucionais (SALDANHA; ESPINDOLA, 2008, p. 54-55).

Contundo, a opção feita, no curto prazo foi pela reforma legislativa e não pela refundação do processo (ou do Estado), o que tem corroborado com a manutenção daquela matriz clássica do processo. Para as autoras, o Estado brasileiro, é um Estado que se diz “democrático de direito”, que se comporta, porém como um “liberal de direito”. E, ainda mais, esse Estado que se diz democrático, mas comporta-se como liberal, padece das crises de um Estado social, sem nunca ter alcançado o conteúdo deste. (SALDANHA; ESPINDOLA, 2008, p. 54-55).

De fato, este Estado constitucional que se imagina não deve ser teorizado apenas como um Estado de direito. Como entende Canotilho, se o princípio do Estado de direito é utilizado como separação entre Estados que têm aqueles que não têm uma constituição, isso não significa que o Estado Constitucional moderno possa se limitar a ser apenas um Estado de direito. Ele tem de se constituir como um Estado de direito democrático, ou seja, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do “direito” e do “poder” no Estado constitucional deve ser organizada e exercida em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, portanto, uma das bases do Estado constitucional, pois, o poder político é aquele que deriva do poder dos cidadãos. Logo, o princípio democrático aponta no sentido constitucional, para um processo de democratização extensivo aos diferentes aspectos da vida econômica, social, cultural e se acrescenta aqui, ao que diz o autor português, processual. Afinal, a democracia é, no sentido constitucional, democratização da democracia (CANOTILHO, 2000).

Uma radical democratização da esfera jurisdicional se coloca como uma resposta possível à despolitização do mesmo, tendo em vista o pouco valor que se agrega socialmente à perspectiva coletiva de processo, o que somente poderá resultar da superação do individualismo para que se reconheça o valor comunitário na modernidade. Contudo, para que tal fenômeno ocorra, todas as instituições do Estado deverão se transformar paradigmaticamente, pois estão acostumadas à necessidade de pensar segundo o modelo econômico, reforçando o individualismo. A superação do individualismo que pauta os mecanismos de atuação da jurisdição depende, portanto, de uma reforma social mais profunda. É que se o individualismo está enraizado na própria vida em sociedade, são os valores dessa (sociedade) que é necessário superar. Pensar as relações sociais em termos de atendimento dos interesses e necessidades da comunidade pode ser o primeiro passo para a revolução democrática da jurisdição. (SALDANHA, 2009).

A solução, portanto, passa por uma forma de repensar o Estado e aqui, este estudo se afasta completamente de uma solução contratualista para a jurisdição ambiental. Afinal, esta solução carrega a priori críticas, a primeiro se dá pela observância de uma certa contradição, onde se busca resolver a matriz racionalista/individualista do Estado (e do processo, consequentemente) com uma matriz teórica igualmente racionalista/individualista, ora, se para fundar o contrato social, os sujeitos (atômicos e racionais) deliberam e elegem as normas que guiarão a construção de uma forma desejada de Estado, não é possível esperar que no passo seguinte o Estado (e o processo) se guiam por um paradigma que não seja o mesmo de sua concepção, racionalista e individualista.

Uma outra constatação parte de Honneth (2015), para quem quase todas as teorias que tentam chegar a uma ideia de ordenamento justo do Estado, optando pela utilização de uma concepção contratualista, partem de um instrumento ficcional de estado de natureza. O entendimento do autor é de que ficticiamente é possível compreender os indivíduos nesse estado de natureza como atores que desejam agir com o mínimo de restrições, fazendo tudo ao seu parecer. Como resultado dessa perspectiva, o homem é entendido como um ser atômico, que não possui interesse além de agir sem restrições segundo suas próprias preferências circunstanciais. Dessa forma, a concepção de um Estado justo parte de um questionamento experimental intelectual dos sujeitos em estado de natureza, em outras palavras, só pode ter validade o ordenamento jurídico que demonstre hipoteticamente que no estado pré-contratual todos os sujeitos poderiam aceitá-lo.

O modelo contratual de concepção do Estado, então, afeta a concepção de justiça desenvolvida a partir dele. Nesse entendimento, os sujeitos recorrem a cálculos de utilidade puramente individuais no seu agir, pois estes só têm interesse somente na proteção e garantia de sua própria margem de liberdade. Assim, o ordenamento justo é aquele que esteja em condições de satisfazer as expectativas individuais de cada um dos indivíduos sob ele. Deve-se entender que neste ordenamento os sujeitos não têm a possibilidade de conjuntamente verificar e renovar sua concordância com as ações do Estado, pois, como dito anteriormente, os sujeitos concordaram no processo de criação dos princípios jurídicos.

A posição de Honneth contra-se nas teorias que tem seu ponto de partida em normas, princípios ou procedimentos ideais – por exemplo, Rawls – e não observação e descrição dos fatos nas sociedades concretas (PINZANI, 2012). Cinco requisitos elencadas por Honneth (2015, p. 555-560), para a construção de uma democracia justa podem também ser observados e tomados como bases para a construção de processos democráticos. Não se defende, por óbvio, a mera adoção crua destas observações do autor alemão, mas sim a sua contribuição como base de um novo processo. A primeira condição seriam as garantias jurídicas. Como segunda condição, a existência de um espaço de comunicação geral que supere as divisões de classe e permita um intercâmbio de opiniões entre os diversos grupos. Em terceiro lugar, é necessário um sistema altamente diferenciado de meios de comunicação de massa que leve ao público a capacidade de formar a opinião e a vontade pela via da informação. Uma quarta condição é a disposição dos cidadãos em realizar prestação de serviços não remunerados para preparar e realizar apresentações de opinião diante do público. E, por fim, a quinta condição é a existência de uma cultura política que a todo tempo alimente e alente tais sentimentos de solidariedade, ou seja, o compromisso entre os cidadãos de que são conscientes do que possuem politicamente em comum, sendo este o requisito elementar para a ação do sujeito na vida pública.

Assim, torna-se necessário falar de jurisdição constitucional, em sua perspectiva coletiva, o que é o mesmo que falar de um outro modelo de jurisdição, seja quanto à sua estrutura de atuação, seja quanto à competência de seus juízes, seja quanto ao seu sentido (SALDANHA; ESPINDOLA, 2008, p. 58). Segundo Canotilho (2000, p. 1336), “a constituição processual responderia às exigências de uma “moral racional flexível” ou “moral racional comunicativa”’. Ainda segundo o jurista português, a processualização tem como objetivo não apenas garantir posições jurídicas subjetivas ou prestações sociais, mas sim assegurar ou estabelecer as condições de possibilidade dessas prestações e garantias. Portanto, a processualização da constituição estabeleceria na transformação do contexto social de liberdade legal em um sistema de justificação do novo contexto social de ideias e interesses.

Ainda que abordando o procedimento, vale a pena ressaltar que Canotilho (2000) afirma que o direito a um procedimento justo implica a existência de procedimentos coletivos, possibilitadores da intervenção coletiva dos cidadãos na defesa de direitos econômicos, sociais e culturais de grande relevância para a existência coletiva, como, por exemplo, o direito ao meio ambiente. Dessa forma, um instrumento adequado para a conversão da constituição em ordem dinâmica em uma comunidade é o procedimento. A democratização do exercício do poder através da participação pressupõe que esta participação se traduza por intermédio de procedimentos justos, que influenciem qualitativamente as decisões. A participação através do procedimento, além de ser um meio de comunicação ascendente e descendente entre governantes e cidadãos, é, igualmente, uma compensação e uma garantia dos sujeitos e das comunidades perante uma burocracia estatal sem qualquer transparência democrática.

Igualmente, é preciso reconhecer que somente através de uma jurisdição aberta à sociedade é que o processo se tornará apto de corresponder às exigências republicanas de seu exercício democrático. Afinal, é o judiciário o poder estatal que possui como fim a concretização dos valores constitucionais. Logo, a abertura do processo à participação de outros atores sociais, para além das partes litigantes ou no máximo, para as figuras interventivas clássicas, inaugura uma nova fase, ao permitir o diálogo da esfera jurídica com a sociedade, por meio (e dentro do) do processo. Esta concepção se traduz em verdadeiro exercício de democracia direta (SALDANHA; ESPINDOLA, 2008, p. 59-60).

Um exemplo de tal agir democrático no processo seria a possibilidade de participação de certos segmentos da sociedade que a audiência pública oportuniza no âmbito das ações de controle direito e concentrado de constitucionalidade. Tal concepção de agir no processo se mostra diverso das formas e atos tradicionais individualizantes que burocratizam a relação processual. Também, a audiência pública possibilita trazer ao processo outros sujeitos que não reúnem em si a condição de litigantes, tampouco de terceiros intervenientes, mas que se encontram em uma posição fático-jurídica que lhes permite participar (sem litigar) pelas condições que reúnem de influenciar na formação do convencimento do juiz. (SALDANHA; ESPINDOLA, 2008).

Além da audiência pública, é também com a adoção do amicus curiae nas instâncias inferiores de jurisdição, que se pode vislumbrar a quebra dessa estrutura vertical da jurisdição. Estas práticas se colocam a par de uma maior reivindicação de que a função jurisdicional seja praticada horizontalmente, uma vez que a participação de diferentes grupos ou categorias atende o anseio de integração tão necessária para a evolução do direito, enquanto uma ciência social e não como uma ciência de razão matemática. Como bem sustenta Saldanha, estes procedimentos no âmbito do processo judicial significam exercício político da solidariedade, que expressaria no direito uma visão mais comunitária, o que acabaria por reforçar a teoria que “se sustenta no mundo prático e que tem na consciência histórica a razão para aferir seus prejuízos autênticos ou não como condição de possibilidade da própria transformação/evolução do direito” (SALDANHA, 2009, p. 72).

Desse modo, faz-se necessária a construção de uma jurisdição democrática que supere as características formalistas, visto que o Estado “ainda não implementou um modelo democrático que assegure a inclusão, seja no que toca à razão de fundamento, seja em relação à adequada gestão do tempo, fundamental para a materialização de uma jurisdição digna” (MARIN, 2009, p. 23). Afinal, segundo Marin, o rompimento do paradigma privatista-liberal, através da construção de um novo paradigma, de jurisdição democrática, que tenha legitimidade social, e que contemple a diversidade social, redundaria em uma efetiva inclusão. Esse novo modelo contemplaria, inclusive, os elementos marginalizados, que através de um exercício de interpretação adequado, podem alcançar a condição de sujeitos de direitos, em conformidade com a teoria constitucional (MARIN, 2009).

Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CICHELERO, César Augusto. Processo e responsabilidade ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6701, 5 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93805. Acesso em: 22 nov. 2024.

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Publicado originalmente em: https://www.editorafi.org/232direito

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