INTRODUÇÃO
Os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, em virtude de sentença judiciária, são feitos exclusivamente em ordem cronológica por precatório ou mediante depósito após requisição judicial nos casos definidos em lei como de pequeno valor - RPV (art. 100, caput, e § 3º, da CF).
Os pagamentos por meio de RPV não foram previstos originariamente na Constituição Federal, tendo sido criados pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998. O antigo Código de Processo Civil não regulamentava seu procedimento, o que se fazia por meio do art. 17 da Lei 10.259/2001 e art. 13 da Lei 12.153/2009, no âmbito dos Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pública, respectivamente, assim como por leis estaduais específicas.
Somente com a edição do novo Código de Processo Civil em 2015 se instituiu um procedimento claro quanto ao pagamento destes débitos, uma vez que as regras dos Juizados eram aplicáveis apenas a estes procedimentos.
Em setembro de 2004, sob a égide do antigo CPC, o STF realizou o julgamento do Recurso Extraordinário n. 420.816, no qual se discutiu a constitucionalidade da Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que incluiu o art. 1-D à Lei 9.494/1997.
Tal dispositivo previu a inexistência de condenação em honorários pela Fazenda Pública nas execuções não embargadas. O STF, neste julgado, declarou a constitucionalidade do dispositivo, mas apenas nos casos de execuções por quantia certa que ensejassem a expedição de precatórios, excluídos, portanto, os casos de obrigação de pequeno valor. O STF entendeu que o procedimento de execução seria inevitável no caso dos precatórios, não aplicando o mesmo raciocínio às requisições de pequeno valor.
Este artigo tem por objetivo revisitar o precedente do STF no RE 420.816, analisar seus fundamentos jurídicos e, confrontando-os com o Novo Código de Processo Civil, defender a superação do entendimento nele firmado à luz das novas regras processuais. Em nosso entender, a interpretação a ser feita do art. 85, §7, do CPC deve passar pelo princípio da causalidade, de forma que não haverá condenação de honorários em execução não embargada pela Fazenda Pública, seja com pagamento por meio de precatórios seja por RPV.
HONORÁRIOS EM EXECUÇÃO NÃO IMPUGNADA PELA FAZENDA PÚBLICA - O PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE NO PRECEDENTE DO RE. 420.816
Em setembro de 2004 o STF julgou o Recurso Extraordinário n. 420.816, no qual se discutiu a constitucionalidade da Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que incluiu o art. 1-D à Lei 9.494/1997, dando-lhe a seguinte disposição:
Art. 1o-D. Não serão devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções não embargadas. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001).
Argumentava-se a ausência dos requisitos autorizadores da Medida Provisória, como a urgência acerca da matéria. Compulsando o acórdão, o relator, Min. Carlos Velloso, decidiu que não existiam os requisitos de urgência e relevância, declarando, pois, a inconstitucionalidade da norma. Seu voto, porém, restou vencido após o Min. Gilmar Mendes chamar a atenção do plenário para o fato de que a norma visava a regulamentar milhões de processos contra a Fazenda Pública, cerca 2,5 milhões apenas contra o INSS (parte na referida ação de controle incidental). Assim, os ministros divergiram do relator e seguiram o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, que ponderou o fato de a Fazenda Pública não poder cumprir espontaneamente as sentenças de obrigação de pagar. Nas palavras do voto vencedor, nas condenações ao pagamento de quantia certa emitida contra o Poder Público, este não pode pagar de outra forma que não seja mediante o sistema de precatório, salvo a partir da Emenda Constitucional n. 20, na hipótese dos chamados créditos de pequeno valor.
Dessa forma, o STF declarou incidentalmente a constitucionalidade da Medida provisória n. 2.180-35/2001, com interpretação conforme de modo a reduzir-lhe a aplicação à hipótese de execução, por quantia certa, contra a Fazenda Pública, excluídos os casos de pagamentos de obrigações definidos em lei como de pequeno valor.
Em outras palavras, o STF entendeu que nos precatórios a Fazenda Pública não dá causa à execução, pois não tem outra de forma de realizar o pagamento senão por requisição judicial, de forma que nestes casos o art. 1-D da Lei 9.9494/97 seria constitucional. Quanto às requisições de pequeno valor RPV, porém, o entendimento foi outro.
Como se sabe, requisição de pequeno valor é o procedimento mais célere de pagamento de débito pela Fazenda Pública, nos casos em que o montante é considerado, por lei, como de pequena monta (art. 100, §3, da CF e 535, II, do CPC).
Voltando ao precedente do RE 420.816, como o Supremo afastou a constitucionalidade do art. 1-D da Lei 9.494/97 quanto aos pagamentos por RPV, o INSS opôs embargos de declaração para aclarar suposta contradição do acórdão. A autarquia alegou que, apesar de reconhecer que o processo de execução contra a Fazenda Pública é uma exigência necessária à satisfação do débito, o acórdão teria concluído que a satisfação de créditos de pequeno valor não dependeria de processo de execução. Aduziu o INSS que não haveria diferenças quanto à necessidade de requisição judicial tanto para a RPV quanto para os precatórios, que se diferenciariam tão somente pelo valor e prazo de pagamento.
Este é o ponto chave deste artigo, na medida em que, a nosso ver, assistia razão ao INSS em seus embargos de declaração, de forma que o STF haveria de rever seu posicionamento naquela ocasião. Mas não foi o que aconteceu.
Nestes embargos, julgados em 2007, o Supremo Tribunal Federal manteve a decisão anterior, em decisão relatada pelo Min. Sepúlveda cuja fundamentação merece destaque.
Argumentou o STF que o art. 100 da CF condiciona o pagamento à apresentação dos precatórios, de forma que a Fazenda deve ser desonerada dos honorários nestas execuções não embargadas, porque são inevitáveis ao adimplemento do crédito. É dizer, segundo o Pretório Excelso, o fundamento para a condenação aos honorários em execução não impugnada é o fato de o cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública ser condição necessária ou não para o pagamento.
No caso dos precatórios, segundo o STF, a execução forçada seria essencial, o que não ocorreria nas requisições de pequeno valor. Confira-se nas palavras do voto vencedor (grifei):
Na medida em que o caput do art. 100 condiciona o pagamento dos débitos da Fazenda Pública à apresentação dos precatórios e sendo estes provenientes de uma provocação do Poder Judiciário é razoável que aquela seja desonerada do pagamento de honorários nas execuções não embargadas, às quais inevitavelmente se deve se submeter para adimplir o crédito.
O mesmo, no entanto, não ocorre relativamente à execução de quantias definidas em lei como de pequeno valor, uma vez o §3º expressamente afasta a disciplina do caput.
Note que o voto dos embargos se fundou no princípio da causalidade, embora não o tenha citado expressamente. Aqui abro um parêntese para tratar deste princípio.
Em regra, a condenação em honorários decorre da sucumbência (paga aquele que for sucumbente, ou seja, perder a ação/incidente processual), mas excepcionalmente o critério adotado pode ser a causalidade, caso em que o critério será condenar aquele que deu causa à propositura da demanda ou pelo menos deixar de condenar aquele que não deu.
Conforme Beatriz Pereira da Silva e Gislene Machado explicam, citando Chiovenda, a condenação ao pagamento das despesas processuais decorre em regra da sucumbência pura e simples, não se mostrando relevante o comportamento da parte sucumbente quanto à má-fé ou culpa. Todavia, o próprio Chiovenda verificou, em certas situações, sérias dificuldades para aplicação deste critério, de forma que a saída encontrada foi a observância do critério da evitabilidade da lide, colocando em evidência aquele que deu causa à demanda, em detrimento da solução desta[1]. Para exemplificar, imagine o ajuizamento de embargos de terceiro por quem tem bem penhorado em execução proposta contra outra pessoa. Neste caso, o STJ entendeu que, mesmo em se acolhendo o pedido para desconstituir a constrição judicial, os honorários advocatícios serão arbitrados contra o atual proprietário (embargante, vencedor dos embargos), se este não atualizou os dados cadastrais, aplicando o princípio da causalidade[2].
Portanto, nas hipóteses em que a parte não deu causa à lide ou esta lhe era inevitável, não é cabível a condenação em honorários de sucumbência, com base no critério da causalidade.
É por esta razão que o STF entendeu ser constitucional a previsão legal de que, em execução não embargada, a Fazenda Pública não pode ser condenada ao pagamento de honorários, uma vez que não dá causa ao incidente de execução, por depender de requisição judicial. Todavia, como veremos aqui, não foi correta a diferenciação feita pelo STF em relação a precatórios e requisição de pequeno, uma vez que em ambas a Fazenda Pública não quita espontaneamente o débito, estando subordinada e dependente de requisição judicial.
A INEVITABILIDADE DA EXECUÇÃO TANTO NO PAGAMENTO DE PRECATÓRIOS QUANTO NA RPV A EXEGESE DO ART. 85, §7, DO CPC
Seguindo o raciocínio adotado pela Suprema Corte, os honorários seriam legítimos na requisição de pequeno valor porque nesta a Fazenda Pública não é dependente de uma provocação do Judiciário, de forma que poderia, concordando com o valor apresentado, simplesmente depositar em juízo a quantia demandada.
Todavia, o novo Código de Processo Civil, na linha do que já previa o art. 17 Lei no 10.259/2001, traz previsão contrária à conclusão da Suprema Corte, na medida em que condiciona o pagamento, também nos casos de RPV, a um procedimento prévio de liquidação e requisição judicial. Neste caso, adstrito ao princípio da legalidade, o Poder Público sujeita-se a este procedimento e não pode efetuar o cumprimento da obrigação de outra forma. São estes os termos do art. 535, §3, I e II, do CPC, in verbis:
§ 3º Não impugnada a execução ou rejeitadas as arguições da executada:
I - expedir-se-á, por intermédio do presidente do tribunal competente, precatório em favor do exequente, observando-se o disposto na Constituição Federal ;
II - por ordem do juiz, dirigida à autoridade na pessoa de quem o ente público foi citado para o processo, o pagamento de obrigação de pequeno valor será realizado no prazo de 2 (dois) meses contado da entrega da requisição, mediante depósito na agência de banco oficial mais próxima da residência do exequente. (grifei)
A previsão decorre do princípio da indisponibilidade do interesse público, uma vez que o pagamento deve ser feito nos limites do quanto requisitado (com as devidas atualizações). Ou seja, ao se ver diante de um cumprimento de sentença cujo montante seja requisitado por RPV, a Fazenda Pública não tem alternativa senão aguardar requisição judicial com os dados necessários ao desembolso financeiro: valor, data-base do cálculo, beneficiário, conta-bancária favorecida.
É possível afirmar, pois, que tanto no pagamento por precatório quanto na requisição de pequeno valor o procedimento de execução é inevitável à Fazenda Pública e em ambos o pagamento é feito após requisição judicial. Em outras palavras, fundamentalmente, precatório e RPV se diferenciam pelo valor e prazo de pagamento.
Não havendo resistência pelo Poder Público executado, não há causalidade, de modo que também não deve haver condenação em honorários. Nesse contexto, como explica Thiago Simões Pessoa, a condenação em honorários na execução não impugnada pela Fazenda Pública implica, em última análise, violação ao princípio da isonomia, na medida em que, aos particulares, não há falar em tal condenação na hipótese de cumprimento de sentença ao qual não se oferece resistência. Segundo ele,
No procedimento entre particulares, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios somente passa a existir em sede de cumprimento de sentença caso haja resistência por parte do executado, que não paga o valor devido no prazo a ele conferido, qual seja de 15 (quinze) dias, conforme se infere do art. 523, §1º, do CPC.
Assim, encontra-se em total descompasso com as demais normas processuais, ferindo frontalmente o princípio da isonomia, o entendimento de que são devidos honorários advocatícios em sede de cumprimento de sentença para pagamento de obrigação de pequeno valor somente em razão de sua instauração em face da Fazenda Pública[3].
Apesar dessa previsão específica no CPC, no sentido de que a requisição de pequeno valor se processa por ordem do juiz, o mesmo Código previu em seu §7 do art. 85 que
Não serão devidos honorários no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que enseje expedição de precatório, desde que não tenha sido impugnada.
O texto parece acompanhar o precedente do STF no RE 420.816 ao mencionar apenas as execuções de precatório, ignorando a própria razão de decidir da Suprema Corte, qual seja, o princípio da causalidade. Por tais razões, a interpretação do art. 85, §7, do CPC deve ser sistemática, e não meramente literal, para abrigar, além de execução por precatório, as obrigações de pequeno valor. Apesar das críticas de quem entende que o dispositivo não deixa margem para outra exegese, é preciso considerar, para além das considerações acerca do princípio da causalidade, que a condenação em honorários admite interpretações outras que não apenas a literal.
Como exemplo, cite-se a Súmula 345 do STJ, segundo a qual é devida a condenação da Fazenda Pública em honorários nos procedimentos individuais de cumprimento de sentença decorrente de ação coletiva, ainda que não impugnados. Tal Súmula se opõe à literalidade do estudado art. 85, §7º, do CPC, mas continua válida mesmo após a vigência do novo código, uma vez que sua razão é o fato de nas execuções de sentença coletiva haver complexidade diferenciada no processo executório, possibilitando assim a condenação em honorários[4].
Ademais, corrobora o entendimento aqui formulado o fato de o art. 534 do CPC ter determinado ao exequente a obrigação de apresentar, contra a Fazenda Pública, procedimento prévio de liquidação de sentença, com apresentação de memória discriminada do débito. Não foi prevista a chamada execução invertida, ou seja, a obrigação de que o Ente Público seja intimado para apresentar, pelo exequente, a conta de liquidação.
O que se infere da análise do precedente do RE n. 420.816, portanto, é que, para fins de condenação em honorários no cumprimento de sentença, deve ser considerada a inevitabilidade deste procedimento contra a Fazenda Pública. Nesse sentido, conforme previsão do novo CPC, tal incidente é inevitável, essencial e imprescindível tanto para as obrigações pagas por precatório quanto às quitadas por requisição de pequeno valor, motivo pelo qual não devem ser arbitrados honorários nas execuções não embargadas pela Fazenda Pública em quaisquer destas hipóteses.
CONCLUSÃO
Diante deste cenário, conclui-se que o precedente do STF no RE 420.816 foi superado e a interpretação a ser dada ao art. 85, §7º, do CPC deve abranger também as execuções de RPV, pelas seguintes razões:
i) o precedente firmado no RE n. 420.816 assentou que a Fazenda Pública não deve pagar honorários em execução não embargada de precatórios, pois está sujeita a este regime de pagamento, dependendo de uma provocação judicial para quitar o débito;
ii) da leitura do acórdão, bem assim do julgamento dos embargos de declaração, extrai-se que o fundamento adotado pelo STF no julgamento da constitucionalidade do art. 1-D da Lei 9.494/97 foi o princípio da causalidade;
iii) de acordo com art. 535 do CPC, os cumprimentos de sentença contra a Fazenda Pública de obrigação de pagar dependem de prévia liquidação e requisição judicial (provocação judicial), procedimento este obrigatório tanto na execução de precatório quanto na de requisição de pequeno valor;
iv) sendo inevitável à Fazenda Pública o procedimento de execução, a não apresentação de impugnação implica impossibilidade de condenação em honorários, em razão do princípio da causalidade, tanto no incidente de RPV quanto no de precatório, sendo esta a interpretação a ser dada ao art. 85, §7, do CPC.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Corte Especial. REsp nº 1648238. Rel. Ministro Gurgel de Faria, Brasília, jun. 2018.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 1ª Seção. REsp 1.452.840-SP, recurso repetitivo. Rel. Min. Herman Benjamin. Brasília, 14/9/2016.
BRASIL, Supremo Tribunal, Plenário. RE 420816. Rel. Min Carlos Velloso. Brasília, 29/04/2004.
BRASIL, Supremo Tribunal, Plenário. Embargos de declaração no RE 420816. Rel. Min Sepúlveda Pertence. Brasília, 21/03/2007.
MORAES, Alexandre de (Org). Constituição Federal Comentada. 1 ed. Forense: Rio de Janeiro, 2018.
SILVA, Beatriz Pereira da; MACHADO, Gislene. Observância do princípio da causalidade na condenação da Fazenda Pública em honorários advocatícios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2203, 13 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13139. Acesso em: 16 nov. 2021.
PESSOA, Thiago Simões. Honorários advocatícios em fase de execução para pagamento de obrigação de pequeno valor. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, v. 1, n. 9, p. 83-103, dez. 2018.
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