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Lei n. 13.869/19 — Nova Lei de Abuso de Autoridade: os desdobramentos práticos na atuação dos delegados de polícia

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Reflexões sobre a Lei 13.869/2019, sua aprovação emergencial e os obstáculos que trouxe às investigações e condenações pela prática dos delitos de corrupção.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade. Apresenta-se, em perspectiva, o impacto que a nova lei traz na atividade policial, principalmente no quesito investigativo realizado pelo delegado de polícia, no combate à corrupção, bem como suas consequências nas operações policiais. Utilizam-se exemplos de casos de abuso de autoridade e também se apontam autores que detêm um vasto conhecimento do assunto, além de comparar a antiga Lei de Abuso de Autoridade com a nova lei. Verificam-se, ainda, as condutas que foram acrescentadas pela nova Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) como crime de abuso de autoridade, por exemplo, a divulgação de imagens de presos. Palavras-chave: Abuso de autoridade. Delegado de polícia. Reflexos da Lei nº 13.869/2019. Novos crimes de abuso de autoridade.


1. INTRODUÇÃO

A Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) surgiu com o escopo de modernizar e tipificar novas condutas que configuram o crime de abuso de autoridade. Esse foi o objetivo do legislador ao redigir a nova Lei de Abuso de Autoridade, a qual tem como intento corrigir erros e omissões das legislações anteriores.

Tal legislação dispõe sobre crimes de abuso de autoridade, definidos como aqueles cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. Com a sua entrada em vigor, surgiram vários questionamentos da comunidade jurídica como um todo, um misto de preocupação e insegurança, considerando algumas das escolhas do legislador, que ensejaram na problematização da nova Lei de Abuso de Autoridade.

Ela é vista por muitos intérpretes, doutrinadores, agentes públicos e pessoas da sociedade civil como um meio de intimidar a atuação dos agentes responsáveis, em especial, pelo combate à corrupção, já que passou a criminalizar algumas condutas relacionadas à Operação Lava Jato, afetando diretamente investigações e julgamentos (BRASILEIRO, 2020).

Nesse sentido, o presente trabalho aborda as novas condutas que configuram crime de abuso de autoridade inseridas pela Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2021), além de compará-la com a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021), antiga Lei de Abuso de Autoridade, recentemente revogada.

Para tanto, faz-se necessário abordar o contexto histórico que engloba o surgimento e a vigência de tal lei, além de os acontecimentos marcantes que a desencadearam, como a Lava Jato e o Mensalão. Em seguida, é examinada a constitucionalidade da lei. Por fim, é realizada uma análise comparativa entre a antiga Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/1965) e a nova Lei nº 13.869/2019, associadas aos desdobramentos práticos na atuação do delegado de polícia.


2. HISTÓRICO DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

2.1. SURGIMENTO E VIGÊNCIA DA LEI

O ano de 1964 foi marcado pelo início da Ditadura Militar no Brasil. Entre 31 de março e 9 de abril desse ano, houve a tomada de poder, subvertendo a ordem 3 existente no país e dando início ao regime ditatorial que se estendeu no Brasil de 1964 até 1985, caracterizando um momento conturbado na nossa História. Diante desse cenário, em 1964, o presidente então empossado, João Goulart, foi destituído de seu cargo (HISTÓRIA DO MUNDO, s.n.).

Nesse contexto, surge a primeira Lei de Abuso de Autoridade. Em 09 de novembro de 1965, foi sancionada, pelo então Presidente da República Humberto de Alencar Castello Branco, a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2020), tendo como finalidade prevenir os abusos de autoridade, principalmente por policiais no exercício de sua função, na qual os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos eram cerceados constantemente. É unânime a importância da existência, no ordenamento jurídico, de uma lei para punir o abuso de autoridade. Afinal, todo aquele que tem poder tende a abusar dele, por isso a necessidade desse mecanismo de controle.

A legislação deve conferir não apenas poderes, mas também deveres àqueles que agem em nome do Estado, criando instrumentos de punição para as hipóteses em que o agente não paute sua atuação em nome do interesse público (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). Todavia, a Lei nº 4.869/1965 (BRASIL, 2020), editada durante o regime militar, continha vários tipos penais abertos, além de cominar penas irrisórias. Todas as 19 infrações penais eram de menor potencial ofensivo, ou seja, não acarretavam prisão em flagrante, nem instauração de inquérito policial apenas Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e ensejavam prescrições de apenas 3 anos.

Em 05 de setembro de 2019, com vacatio legis de 120 dias, entrando em vigor em 03 de janeiro de 2020, passa a ser cumprida a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2020), que revoga a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2020) e estabelece a nova Lei de Abuso de Autoridade. Com essa nova orientação jurídica, o abuso de autoridade continua a prever tríplice responsabilidade: administrativa, civil e penal. No âmbito penal, com a entrada da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2020), houve a tipificação de crimes funcionais cometidos pelo agente público, quando esse se utiliza de suas funções para cometer o ilícito.

A nova lei, a seu turno, exige que as condutas criminalizadas sejam praticadas com as finalidades específicas de (i) prejudicar a outrem; (ii) beneficiar a si mesmo; (iii) beneficiar a terceiros; e/ou (iv) atender um mero capricho ou ter satisfação pessoal (art.1º, §1º da Lei nº 13.869/2019). 4

2.2. LAVA JATO E MENSALÃO

A edição da Lei nº 13.869/2019 trouxe muita polêmica em razão do contexto de seu surgimento. A norma adveio de uma reação do meio político às investigações que vinham sendo realizadas em face a políticos no combate a corrupção no Brasil.

Com os últimos fatos trazidos à luz pela Operação Juízo Final, sétima fase da célebre Lava Jato, a sociedade brasileira assistiu, ainda que sem entender suas dimensões, ao surgimento de mais um flagelo endêmico no país (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). Uma série de grandes operações policiais, a exemplo do Mensalão e da Lava Jato, atingiram de forma única a cúpula do poder político e econômico do país, em fenômeno criminológico inédito no Brasil. Tal acontecimento, que adquiriu contornos marcantes, que o diferenciam conceitualmente do crime organizado convencional, merece urgente atenção não apenas das autoridades policiais, do Ministério Público e do Judiciário, mas, sobretudo, da imprensa e da sociedade como um todo, pois sua sedimentação tem a capacidade de minar as possibilidades de desenvolvimento nacional (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Finalmente foi possível chegar à criminalidade institucionalizada, terminologia utilizada por Cezar Roberto Bitencourt (2018), definida como o conjunto de delitos perpetrados por políticos e empresários que conquistam o poder político e econômico pelo sufrágio (voto) e pelo sucesso econômico (lucro), por meio de ação de autoridades através da caneta. Basicamente, há a formação de um ciclo vicioso entre políticos e empresas privadas: são criados diversos privilégios que facilitam a inserção dessas instituições para prestação de serviços públicos e, em contrapartida, elas financiam as campanhas políticas desses facilitadores para que esse ciclo continue.

Trata-se, assim, de uma atividade lucrativa e segura. O crime institucionalizado, com seus exércitos de nomeados em cargos e funções estratégicas, tem o poder de elaborar e promulgar normas administrativas, e até leis, que facilitem sua própria consecução. Enquanto organizações criminosas convencionais se servem de ameaças e violência explícita contra aqueles que se põem em seu caminho. Elas se consumam com a elaboração de projetos de lei que buscam inibir ou dificultar o trabalho dos investigadores. (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

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Nessa esteira, o incremento da ação persecutória do Estado gerou reação 5 dos parlamentares, muitos dos quais investigados, réus ou condenados por corrupção, por meio de projetos de leis. Alguns ainda não foram aprovados, como a proibição de colaboração premiada para o preso. Porém, outros já se tornaram leis, como a atual Lei de Abuso de Autoridade. Algo semelhante aconteceu após a operação Mãos Limpas, movimento contra a corrupção que abalou a Itália no começo da década de 90 e que, no Brasil, inspirou a Lava Jato. O país hoje ostenta um dos piores níveis de combate à corrupção do continente europeu (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

2.3. CONSTITUCIONALIDADE

A nova legislação é motivo de preocupação para os membros do Poder Judiciário, seus auxiliares e demais usuários do Direito, uma vez que a utilização da nova Lei de Abuso de Autoridade gera controvérsias. Embora a necessidade de punir os excessos seja indiscutível, alguns pontos geram polêmica: o modo de produção da lei, a forma de criminalizar o abuso de poder e a destinação dos delitos (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Em matéria penal, há que se ponderar com as expressões indeterminadas, que carecem de interpretação valorativa por parte dos julgadores e intérpretes, além de afrontarem os princípios constitucionais, em especial os da legalidade, da taxatividade e o da reserva legal. Criam-se as chamadas zonas cinzentas sobre a adequação das condutas e a aplicação da lei, pois, ao se utilizar de conceitos genéricos, vagos e ambíguos, o Legislador contradisse o seu próprio objetivo, já que a indeterminação gera grave insegurança jurídica na atuação dos profissionais da justiça (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Por conseguinte, os tipos penais devem ser certos, taxativos, não sendo lícito ao legislador conceber o crime com redação vaga cujo conteúdo seja definido por outrem. Assim sendo, o problema da utilização de conceitos vagos ou ambíguos para a descrição de tipos penais reside na abertura interpretativa do texto legal (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021). No caso da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), cria-se um verdadeiro paradoxo jurídico, em que o mesmo agente responsável por interpretar e valorar a lei, pode, em contrapartida, tornar-se sujeito ativo perante ela. Sendo assim, há que se observar o princípio da legalidade, em que uma parte 6 mínima do texto penal deve ser vinculada e expressamente determinada, não sendo passível de valoração por parte do agente público.

No caso do julgador, cabe a realização da análise do caso concreto frente ao extraído do texto legal, realizando a subsunção do fato à norma, com certo grau de subjetividade, mas não além do que já prevê expressamente a norma, uma vez que essas considerações determinarão o trâmite da demanda (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Além disso, a circunstância de a lei anterior conceber tipos mais abertos do que a lei atual não muda o fato de persistir a violação à taxatividade, ainda que de forma menos escancarada. Segundo Nucci (2020), os tipos penais não devem deixar margens a dúvidas, nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.

Nesse sentido, a única forma de aplicar esses delitos de constitucionalidade duvidosa é observando a limitação interpretativa de tais termos vagos. A nova lei colocou o princípio da intervenção mínima sobre risco, no momento em que transformou certas infrações disciplinares dos agentes públicos em crimes. O Direito Penal só deve ser utilizado quando as demais formas de controle, de natureza não penal, tenham sido gastos, o que não é o caso em questão.

Um ponto que precisa ficar acentuado é que o legislador selecionou alvos preferenciais para sofrer a aplicação dos tipos penais abertos, como policiais, delegados, juízes e membros do Ministério Público, ao criminalizar condutas como: decretar condução coercitiva manifestamente descabida; requisitar instauração de procedimento investigatório à falta de qualquer indício da prática de crime e decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Enfim, parte-se da premissa de que a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) não criminaliza nenhuma conduta legítima por parte de um agente público, mas tão somente aquelas que excedem os limites de sua competência ou que são praticadas com finalidade diversa daquela que decorre explícita ou implicitamente da lei. Assim, não agindo com o fito específico de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, não há por que se temer a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), muito menos permitir que sua entrada em vigor sirva como obstáculo ao escorreito exercício de toda e qualquer função pública.


3. LEIS DE ABUSO DE AUTORIDADE: ANTIGA vs NOVA

3.1. A ANTIGA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

LEI nº 4.898, DE 9 DE DEZEMBRO DE 1965 Segundo Zaffaroni (2004), os delitos de abuso de autoridade constituem expressão do Direito Penal Subterrâneo, terminologia usada para se referir aos crimes decorrentes do exercício arbitrário do direito de punir por determinados agentes públicos, a exemplo de torturas e homicídios cometidos pelas agências executivas de controle. Esse fenômeno surge e ganha corpo notadamente em face da ineficácia dos órgãos estatais (Polícias, Ministério Público, Poder Judiciário, etc.).

No que tange à Lei de nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a), antiga e primeira lei a tratar da prática dos crimes de abuso de autoridade cometidos no Brasil, é indispensável mencionar que essa foi editada durante o regime militar com a finalidade de conter excessos que viessem a cometer os membros das Polícias. Logo, ela surgiu em momento no qual o Brasil apontava rumos promissores no prisma democrático, a população não mais aceitava qualquer tipo de repressão originária do governo ou de suas autoridades competentes.

Nessa atmosfera de mudanças, foi firmada, de forma enfática, a legislação reprimindo os abusos de poder e autoridade. Contudo, dotada de dispositivos vagos e abertos, a revogada Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a) dispensava aos crimes de abuso de autoridade uma sanção penal absolutamente incompatível com o desvalor do injusto, deixando-a, assim, desprovida de qualquer poder dissuasório sobre os agentes públicos. Com efeito, a pena privativa de liberdade cominada aos crimes de abuso de autoridade pelo antigo diploma normativo já não guardava mais compatibilidade com a gravidade de tais condutas, pois tratava a integralidade desses crimes como infrações de menor potencial ofensivo, logo, da competência dos Juizados Especiais Criminais, sujeitos, portanto, aos institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/1995 (BRASIL, 2021a). Contribuía, ademais, para o advento da prescrição da pretensão punitiva, que ocorria em apenas 3 (três) anos (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Destaca-se que, embora a mencionada lei padecesse com dificuldades de aplicabilidade em seu real escopo, ela não deixa de estampar relevância histórica, 8 especialmente após a paulatina abertura governamental aos movimentos populares, com o reparo de direitos individuais, os quais vieram a conceber uma base para as conquistas mais recentes. Em assuntos processuais, a otimização dos fatos apontados como criminosos já se dava mediante ação pública incondicionada, em que há acusação produzida pelo Ministério Público, sendo desnecessário a queixa por parte da vítima ou de qualquer outra pessoa. Demonstra-se, assim, uma das características da sua utilidade na salvaguarda da sociedade como um todo.

Nessa linha de pensamento, como já mencionado anteriormente, no período em que vigorou essa primeira legislação sobre o abuso de autoridade, contava-se com penas de no máximo seis meses de detenção e multa, além da provável perda do cargo público e da inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos. Portanto, conclui-se que esse tipo de ilícito fora tratado então como de menor potencial ofensivo (BRASILEIRO, 2020).

Desse modo, levando em consideração a sanção é que se pode entender a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a) como de limitada utilidade. Pois o seu cumprimento ocorria sobretudo nos casos de exercício de atividades abusivas de servidores, padecendo do rigor inibitório a práticas lesivas por parte das autoridades, de forma que, inclusive, gerou uma sensação de impunidade em relação às autoridades com maior poder de decisão (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

É importante frisar que, na Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a), de forma diversa ao previsto no art. 1º da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2021a), a referência era apenas aos agentes públicos no exercício das suas funções, não trazendo a condição daquele agente público que pratica ato de abuso de autoridade a pretexto de exercê-las. Ou seja, na primeira situação, o agente público está realmente no exercício da função, por exemplo, o policial que está num plantão numa delegacia. Já na segunda, esse mesmo policial coagiria alguém a pretexto de ser policial e abusaria dessa autoridade (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021)

A lei anterior, que fora editada em plena ditadura militar, tinha necessidade de ser atualizada já que não atendia mais às demandas vigentes. Deste modo, é relevante destacar que os tipos penais da antiga lei eram abertos, e não taxativos, e, para se certificar disso, basta a leitura do Art.3º da lei anterior que diz: constitui abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade de locomoção. Seria amoldável a esse tipo todo e qualquer prisão preventiva decretada sem justa causa ou uma condução coercitiva fora das hipóteses legais. (NUCCI, 2019). Assim, com a nova lei, o ordenamento torna-se mais claro e taxativo.

Toda lei penal pode apresentar defeitos em sua redação. Todavia, as falhas na antiga lei eram mais claras do que as da atual. Em virtude dos fatos mencionados, esclareceu-se que só ocorreria o abuso de autoridade quando a atitude do agente público for manifestamente excessiva. Portanto, esses pontos não eram abrangidos pela antiga Lei de Abuso de Autoridade (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

3.2. AS DISCUSSÕES QUE PRECEDERAM A PUBLICAÇÃO DA LEI nº 13.869/2019

Assim como a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2021a) surgiu em um momento conturbado na história do Brasil a Ditadura Militar, a nova Lei de Abuso de Autoridade também surge em momento histórico agitado, logo após as centenas de casos de escândalos de corrupção no país. Importante ressaltar que certas questões da nova lei se mantiveram quase semelhantes à antiga, modificando disposições no que tange à organização da nova legislação. Entretanto, já em relação a outras questões, a nova lei trouxe mudanças significativas no que diz respeito aos núcleos verbais das tipificações penais, além de elevar as penas de forma considerável (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Ante o exposto, diferentemente do antigo regulamento, a nova Lei de Abuso de Autoridade pode ser concebida como mais abrangente no sentido de tutelar o cidadão contra as medidas abusivas praticadas pelas autoridades públicas. Apontam-se situações mais objetivas, como as relacionadas a prisão temporária, interceptações telefônicas, prerrogativas de advogados, entre outros pontos relevantes e indispensáveis para o resguardo do Estado Democrático de Direito (BRASILEIRO, 2020).

A legislação anterior, existente desde 1965, visava a, exclusivamente, o poder Executivo. Agora, membros do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, de tribunais ou ou conselhos de contas também podem ser alvos de penalidades. Além disso, a lei prevê medidas administrativas (perda ou afastamento do cargo), cíveis (indenização) e penais (detenção, prestação de serviços ou penas restritivas de direitos). As penas podem chegar até quatro anos de reclusão (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Com essa medida, algumas práticas que se tornaram comuns passam a ser 10 passíveis de punição. Entre elas, estão: (i) decretar condução coercitiva de testemunhas ou investigados antes de intimação judicial; (ii) realizar interceptação de comunicações telefônicas, informáticas e telemáticas ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial. Parte de tais ações já era considerada proibida, mas de modo genérico e com punição branda (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Entretanto, segundo o professor Renato Brasileiro (2020), não foram esses os motivos que levaram deputados e senadores a aprovarem a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b). A referida lei foi aprovada com vício de finalidade, visto que busca impedir o exercício das funções dos órgãos de soberania, bem como legitimar uma verdadeira vingança privada contra aqueles que, de alguma forma, sentirem-se incomodados pela atuação dos órgãos de persecução penal, fiscal e administrativa.

Ainda de acordo com Brasileiro (2020), eivado por diversos casos de corrupção e sob constante alvo da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário na operação Lava Jato, o Congresso Nacional deliberou pela aprovação do novo diploma normativo a toque de caixa, de maneira rápida, com uma nítida intenção de buscar uma forma de retaliação desses agentes públicos, objetivando frear as instituições do Estado responsáveis pelo combate à corrupção. [...] Prova disso, aliás, e não parece ser mera coincidência, é que a sessão conjunta do Congresso na qual foram derrubados 18 itens dos 33 vetados pelo Presidente da República ocorreu menos de uma semana depois que o Min. Luís Roberto Barroso determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão no Congresso Nacional contra o então líder do governo, Senador F. B. C.

É dentro desse contexto, então, que surge a nova Lei de Abuso de Autoridade, contaminada por diversos tipos penais abertos e indeterminados, de duvidosa constitucionalidade, praticamente transformando o exercício de qualquer função pública, ainda que de maneira legítima, em uma verdadeira atividade de risco. (BRASILEIRO, 2020). Portanto, a referida lei, em alguns pontos, atinge e inibe o poder-dever de investigar, processar e julgar autores de infrações penais.

Não há dúvidas da importância de uma nova Lei de Abuso de Autoridade para coibir tais atos, no entanto, não da forma executada e com a finalidade buscada por quem a elaborou.

3.3. A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

Publicada em 05 de setembro de 2019 e em vigência desde 03 de janeiro de 2020, a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019) surge em momento turbulento na 11 história do Brasil. Logo após vários casos de corrupção envolvendo autoridades políticas do país, assim como procedimentos policiais, a exemplo da Lava Jato, que atingiram a arcada política e econômica brasileira, o Congresso Nacional deliberou pela aprovação da referida lei. Cabe destacar que, ao comparar a nova Lei de Abuso de Autoridade com a Lei nº 4.898/1965 (BRASIL, 2019), houve situações importantes referentes à aplicação da lei penal no tempo, ou seja, algumas condutas continuaram criminosas (princípio da continuidade normativa-típica), com ou sem modificação da redação que prejudique ou beneficie o agente.

Além disso, houve novatio legis incriminadora, o que significa que condutas que não eram consideradas criminosas pela antiga lei passaram a ser com a nova. Por fim, também houve a incidência da abolitio criminis, a qual tornou algumas condutas criminosas atípicas. Diferentemente da antiga legislação, a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b), demonstra que os crimes de abuso de autoridade possuem múltipla objetividade jurídica, assim dizendo, há pelo menos 2 bens jurídicos tutelados, tratando-se então de crime pluriofensivo.

De forma imediata ou principal, busca-se proteger os direitos e garantias fundamentais das pessoas físicas e jurídicas, quais sejam: liberdade de locomoção (arts. 9º, 10 e 12); liberdade individual (arts. 13, 15 e 18); direito à informação (art. 16); direito de petição (art. 19); direito à assistência de advogado (arts. 20 e 32); administração do Estado e da justiça (art. 23); e o direito à intimidade e à vida privada (arts. 13, 22, 28 e 38). Já em relação ao bem jurídico tutelado de maneira mediata ou secundária, essa é a normalidade e a regularidade dos serviços públicos, ou seja, o bom funcionamento do Estado.

Insta destacar, em relação ao âmbito de incidência da nova lei, que o abuso de poder ocorre quando o agente público excede os limites de sua competência (excesso de poder) ou quando pratica um ato com finalidade diversa daquela que decorre explícita ou implicitamente da lei (desvio de poder). Em ambas as hipóteses, a tipificação do delito está condicionada, como deixa entrever o caput do art. 1º, ao fato de o agente público praticar a conduta em questão no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. § 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por 12 mero capricho ou satisfação pessoal. (BRASIL,2019).

Ante o exposto, com base no art. 1º ,§2 da Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019), o elemento subjetivo geral do abuso de autoridade é o dolo. Não há previsão legal de abuso de autoridade culposo. Entretanto, logo em seu artigo inaugural, a lei evidencia que o dolo, por si só, não é suficiente para que o crime se perfaça. Além da consciência e da vontade que compõem o dolo, é preciso algo a mais, uma finalidade específica que deve animar a conduta do agente, tais como: prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, por mero capricho ou por satisfação pessoal (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

É mister ressaltar que todos os delitos previstos na Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) são de ação pública incondicionada. Além disso, a própria lei aponta, em norma penal explicativa, as autoridades e agentes públicos que podem ser considerados sujeitos ativos dos crimes de abuso de autoridade. Em seu art. 2º (BRASIL, op. Cit.), está definido quem poderá figurar no polo ativo da ação penal de abuso de autoridade, sendo sujeito ativo do crime qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a: servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; membros do Poder Legislativo, do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Ministério Público, e dos tribunais ou conselhos de contas.

Dado o exposto, em que pese a referida lei ter inserido como sujeito ativo qualquer agente público de todos os poderes e ter sido criada com o objeto de punir todo e qualquer abuso de autoridade, uma simples análise dos tipos penais evidencia que o maior alvo é o servidor do Judiciário, mais especificamente o policial e o delegado, visto que criminaliza condutas como decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, decretar a condução coercitivamente descabida e requisitar instauração de procedimento investigatório a falta de qualquer indício da prática de crime (COSTA; FONTES; HOFFMANN, 2021).

Por questões como essa, a Lei nº 13.869/2019 (BRASIL, 2019b) vem sofrendo críticas e tendo o seu real motivo questionado por ter sido destinada a somente uma parcela dos agentes públicos. Juízes, membros do MP e agentes penitenciários vêm em segundo lugar. Parlamentares poderiam ser atingidos apenas pelo crime de condução coercitiva ilegal, se decretada no bojo de CPI. Já o chefe do 13 executivo, ministros e secretários não possuem um crime sequer que possaatingilos, não aparecendo como possíveis sujeitos ativos.

Sobre os autores
João Victor da Silva Monteiro

Acadêmico de Direito, 10 período. Estagiário do TRE - PI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, João Victor Silva; ARAÚJO JUNIOR, Francisco Paiva et al. Lei n. 13.869/19 — Nova Lei de Abuso de Autoridade: os desdobramentos práticos na atuação dos delegados de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6747, 21 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95511. Acesso em: 25 nov. 2024.

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