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O advogado e a eloquência fora dos tribunais

Agenda 01/03/2022 às 14:15

Comento episódio em que, durante reunião gastronômica promovida por grupo de advogados notáveis, um deles, erguendo sua taça num brinde ao mais famigerado dos convivas, teria dito que adiantava pouco punir o infrator, se cometido já o crime. Ainda: que o castigo era ineficaz contra a corrupção.

Sumário. Nobre veículo do pensamento, pode a palavra, em certas circunstâncias — sobretudo quando em rixa aberta com o senso comum —, meter na berlinda ao próprio orador e turvar-lhe a boa reputação. Tomar tento, pois!


I. Com grande assombro das pessoas circunspectas, órgãos de comunicação têm, ultimamente, realejado notícia que, por seu teor insólito, despertou rudes críticas e veementes protestos em todas as esferas sociais.

Foi o caso que, durante reunião gastronômica promovida por seleto grupo de advogados notáveis, um deles, erguendo sua taça num brinde ao mais famigerado dos convivas, teria dito que, segundo o espírito do tempo, adiantava pouco punir o infrator, se cometido já o crime. Ainda: que o castigo era ineficaz contra a corrupção.

(Não recolhi ao orador suas palavras textuais; sou-lhes, porém, fiel ao sentido, a saber: seria em pura perda infligir pena ao criminoso, porque irreparáveis as consequências do ato que praticou; ao demais, era a corrupção mal invencível).

Tal afirmação — a pôr-se fé inteira nos meios eletrônicos que a transmitiram — fizera-a um dos mais renomados, competentes e argutos advogados criminalistas do País: o Dr. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira.

Não fosse o fato público e notório (que, em bom direito, dispensa prova), ninguém o tomaria ao sério. É que todos os que o conhecem — e sou desse número, que forma legião — juram-no incapaz de dar curso a semelhante enormidade (resisto ao impulso de chamar-lhe “parvoíce chapada”).

As razões que militam em prol desta persuasão têm grande peso e força. Laureado pela Faculdade Paulista de Direito (PUC), frequentou Antônio Cláudio a lição de mestres os mais consumados na Ciência do Direito, como José Frederico Marques, Washington de Barros Monteiro, Agostinho Neves de Arruda Alvim e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, este seu ilustre pai (e meu saudoso e querido professor de Direito Processual Civil). Com eles aprendemos que a toda violação corresponde uma sanção, ou “pena cominável aos violadores da ordem instituída” [1].

Não pode cair em dúvida, com efeito, que todo infrator, sendo imputável, está sujeito ao rigor da lei. Donde a advertência de Nélson Hungria, com justiça proclamado “o maior penalista brasileiro de todos os tempos” [2]: “A pena traduz, primacialmente, um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” [3].

II. A proposição — “não ser de bom aviso punir o delinquente, porque perpetrado já o crime” — havia, sem falta, de incorrer na reprovação das pessoas de reto juízo e critério sólido.

Passa o mesmo quanto à corrupção, cancro social a que, por extirpá-lo, os países de organização democrática declaram guerra sem tréguas nem quartel.

Tais conceitos, que tanta indignação despertaram nos espíritos esclarecidos, teria de fato emitido o nobre advogado?!

Admito-o, a benefício de inventário, pois que — segundo consta — ele próprio não se empenhou em lavrar desmentido; tampouco se retratou.

Mas — e aqui bate o ponto! —, o provecto causídico estava, ao tempo, em seu acordo e razão?!

Eis por que, não me sofrendo o ânimo ver arrastado ao pelourinho da execração pública distinto e prestigioso paladino do Direito, lembrou-me, sob a invocação das leis da amizade, acudir por sua honra. Tenho-o na conta de amigo e, conforme aquilo de um autor engenhoso, “um bom amigo vale mais do que uma carabina” [4], que substituo aqui pela arma do advogado: a palavra.

Tomo sobre mim, em suma, o encargo de seu defensor ad hoc, a despeito de alguma voz que porventura se levante para entoar o refrão do costume: “Para ruim defesa, melhor é nenhuma”!

III. Aquele chorrilho de expressões o garboso Dr. Mariz proferiu (ia quase a escrever expectorou), ao termo de um banquete, perante colegas do ofício e algumas pessoas, estas a mais de um respeito bem conhecidas.

Entre iguarias, que decerto causariam inveja à glutonaria de Vitélio e à magnificência das mesas de Lúculo, é de presumir não faltassem também — visto que hoje muito poucos se constrangem diante de uma garrafa — os melhores vinhos (capitosos, naturalmente!).

Nosso orador (diga-se a verdade lisa e francamente) é possível não se tivesse limitado a sorver a água do copo, que a praxe manda conservar à esquerda da tribuna, para alguma emergência gutural. Lançando mais longe a barra: embora seja a água “o vinho de Deus”, na original definição de um homem de letras e espírito[5], não está afastada a hipótese de que entrasse galhardamente pelas bebidas. Palpito mais que, ao discursar (ou soltar-se em palavras), já estava aquecido pelos vapores do álcool...

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Ora, é de elementar intuição que as bebidas alcoólicas, tanto que absorvidas pelo sangue, entram a operar efeitos nos centros superiores do sistema nervoso do indivíduo, desintegrando-lhe o psiquismo.

Assim, até mesmo quando consiga manter-se em pé, ensinam os tratadistas da matéria que o atleta de Baco, eclipsado o entendimento pelo torpor alcoólico e rotos seus freios inibitórios, desata a palavrear e a despejar frases sem nexo [6].

Em prova desta alegação, tenho por autor não menos que ao polido Pe. Antônio Vieira, que falava como o oráculo de seu tempo: “(...) porque eles (os vinhos) perturbam e tiram os homens de seu juízo, e fazem que fiquem fora de si como doudos” [7].

Numa palavra: a bebida alcoólica tem arte de enfatuar o ânimo daqueles que a ela se entregam e, o que é mais, nos casos de libação excessiva, faz sucumbir muitos ao estado de embriaguez [8].

É certo que — noção que ensinam os rudimentos do Direito Penal — a embriaguez voluntária não elide a responsabilidade criminal do agente, porque lhe não exclui a imputabilidade [9].

Pelo que, isto de ter-se alguém enfrascado em vinho, antes de enunciar despautérios ou obrar contra o direito expresso, não lhe serve de razão escusativa de responsabilidade.

Haverá, entretanto — o que não é licença desprezível —, de aproveitar-lhe como argumento pietatis causa: que, se estivesse, como de ordinário, sóbrio e lúcido, não lhe cairiam dos lábios palavras e frases que repugnam ao juízo das pessoas de médio entendimento e, por mais forte razão, ao daquele que se conhece por timbre e espelho de sua instituição, a gloriosa Ordem dos Advogados do Brasil.

Enfim, se por mero gracejo, ou jocosa expansão de jovialidade, foi que o orador proferiu as palavras que tanto estranharam às pessoas de maduro juízo, não havia senão recebê-las com um grão de sal; mas, se outra a hipótese, passava por medida salutar, oportuna e talvez meritória que lhe viessem os amigos limpar a testada.

Nisto pus a mira, em obséquio à grande estima que tenho ao Dr. Mariz, a quem faço um discreto brinde como pedem os estilos da urbanidade [10].


Notas

  1. Goffredo Telles Junior, Iniciação na Ciência do Direito, 2a. ed., p. 76; Editora Saraiva.
  2. Evandro Lins e Silva, Arca de Guardados, 1995, p. 96; Editora Civilização Brasileira; Rio de Janeiro.
  3. Novas Questões Jurídico-Penais, 1945, p. 131; Rio de Janeiro.
  4. João Guimarães Rosa, Noites do Sertão, 7a. ed., p. 34; Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro.
  5. Escreveu algures Agrippino Grieco.
  6. Em contradição com o retrilhado anexim “Quem não bebe, não fuma e não mente não é filho de boa gente”, formulou Baudelaire a advertência: O homem que só bebe água tem alguma coisa a esconder (apud Almeida Jr., Lições de Medicina Legal, 7a. ed., p. 489: Companhia Editora Nacional).
  7. Sermões, 1959, t. XIII, p. 320; Lello & Irmão — Editores; Porto.
  8. Nunca faltou, entretanto, quem no vinho achasse até virtudes dignas da voz latina: In vino veritas. (O vinho seria uma como pedra de toque da verdade). Para outros, faria as vezes de estímulo. Os advogados veteranos (ou da velha escola) estarão lembrados daquela celebridade da oratória forense que, antes de assomar à tribuna, costumava, como dizia, “molhar a palavra”. No Restaurante Corso, junto das Arcadas (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco), após sorver um trago de conhaque, filosofava: “Tira o juízo, mas dá coragem!”. E — circunstância notável —, no maior número das causas que patrocinava, saía do plenário do júri coberto de louros!
  9. Em seu espírito e forma, dispõe o art. 28 do Código Penal que não exclui a imputabilidade penal: “II a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”. Cifra-se esta norma à teoria da “actio libera in causa”; quem quer a causa quer o efeito.
  10. Desde tempos imemoriais, foi uso em todas as sociedades esse de brindar ou beber à saúde de alguém, com votos pela felicidade pessoal e em atenção a seu merecimento. Como quer que o episódio oratório, que faz objeto deste arrazoado, ocorreu num brinde a certo vulto da classe política, leve-me em paciência o benévolo e instruído leitor evoque das páginas de nossa História dois outros, frisantes por suas circunstâncias e pela dignidade dos sujeitos a que se referiam:
    I– Brinde de Rui Barbosa ao Senador Pinheiro Machado. No banquete político de 7 de maio de 1907: (...) os que se habituaram a ver nele (Senador Pinheiro Machado) não só um guia de raro tino entre as incertezas políticas, mas ainda uma dessas úteis reservas de energia moral, concentradas numa individualidade robusta e poderosa, para as quais as nações democráticas dirigem a vista confiadamente, quando consideram no seu porvir” (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXXI, t. I, pp. 91-92).
    II– Recepção na Bahia. Discurso do Dr. Virgílio de Lemos (...): Não posso, pois, deixar de, em nome do presente, levantar a minha taça em honra desta individualidade verdadeiramente excepcional, considerada como a culminância intelectual do país. Assim, pois, em nome do presente e em nome do passado brilhante da Bahia, brindo ao Conselheiro Rui Barbosa, que, melhor do que qualquer outro baiano, concretiza e representa o brilho de suas tradições e o fulgor de suas glórias (Ibidem, p. 103).
    “Quantum mutatus ab illo!”.
Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. O advogado e a eloquência fora dos tribunais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6817, 1 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96474. Acesso em: 24 nov. 2024.

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