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O subjetivismo hermenêutico na restrição do exercício da liberdade de expressão no Estado democrático de direito

Agenda 06/06/2022 às 16:10

É legítima a restrição do exercício da liberdade de expressão, pelo STF, quando um discurso não causa danos a direitos ou gera risco à ordem pública?

1. Da Liberdade de Expressão.

A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais mais essenciais em um Estado Democrático de Direito. A declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789[1], em seu artigo 11, representando um relevante marco histórico sobre direitos fundamentais, estipula que a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.

Outro fulcral diploma histórico para a positivação da liberdade de expressão é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Por meio desse diploma normativo internacional, em seu artigo 19, é garantido a todo ser humano o direito à liberdade de opinião e expressão. Esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Posteriormente, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 também se constitui em um essencial instrumento para a reafirmação do direito à liberdade de expressão. Em sua Parte II, o artigo 18 informa que toda a pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, sendo que ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir essa liberdade (§2º). Na mesma linha, o artigo 19, §1º, assegura que ninguém poderá ser molestado por suas opiniões, sendo que o §2º assegura que toda a pessoa terá o direito à liberdade de expressão, incluindo a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. O §3º, contudo, apresenta os limites da liberdade de expressão, dispondo que o seu exercício implicará deveres e responsabilidade especiais, podendo ser restringindo, em previsão expressa na lei, quando for necessário para assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas ou proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde e a moral públicas.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88), a liberdade de expressão está inserida no capítulo relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos, no título relacionado aos direitos e garantias fundamentais, sendo expresso, no artigo 5º, incisos IV e V, respectivamente, que a todos é livre a  manifestação do pensamento (sendo vedado o anonimato), bem como é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Em outros dispositivos normativos que tangenciam a liberdade de expressão, os incisos VIII e IX dispõem, respectivamente, que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei), bem como que é  livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Nesse conjunto de ideias, a doutrina define que a liberdade de expressão, em sentido amplo, se relaciona a um conjunto de direitos relacionados às liberdades de comunicação, que estão compreendidos a liberdade de expressão em sentido estrito (manifestação de pensamento ou de opinião), a liberdade de criação e de imprensa e o direito de informação[2].

Acerca da liberdade de comunicação, José Afonso da Silva doutrina que[3]:

A liberdade de comunicação consiste num conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII, e XIV do art. 5o combinados com os arts. 220 a 224 da Constituição. Compreende ela as formas de criação, expressão e manifestação do pensamento e de informação, e a organização dos meios de comunicação, esta sujeita a regime jurídico especial

A liberdade de expressão é a principal ferramenta para a elaboração do discurso. Nessa linha, urge salutar trazer a lição de Michel Foucault[4], por meio da qual leciona que o discurso está em todo conjunto de formas que comunica um conteúdo, qualquer que seja a linguagem à qual pertençam. O filósofo refere, ainda, que mais importante que o conteúdo dos discursos, é o papel que eles desempenham na ordenação do mundo. Um discurso dominante tem o poder de determinar o que é aceito ou não numa sociedade, independentemente da qualidade do que ele legitima, ou seja, embora tal discurso não esteja comprometido com uma verdade absoluta e universal.

Mesclando com os valores preceitos na ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, é possível extrair o conteúdo de um chamado discurso democrático, por meio do qual todos os cidadãos, no exercício de sua liberdade de expressão, formam os valores/opiniões, dos mais variados assuntos, que serão aceitos na visão majoritária da sociedade. É no discurso democrático que reside a legitimidade para a atuação parlamentar e dos Chefes do Executivo, na execução dos seus programas políticos.

Assim, não se pode olvidar acerca da importância da liberdade de expressão para a formação e continuidade do Estado Democrático de Direito, podendo ser considerada a força motriz para a difusão de pensamento e de informação, o qual fomenta e mantém em constante evolução o discurso democrático.

2. O Estado Democrático de Direito, a Liberdade de Expressão e o Princípio Democrático.

Ao longo dos anos, o modelo institucional de Estado passou por diversas mudanças. Em ligeira análise, é possível afirmar que, inicialmente, os grupos sociais se reuniam em esferas familiares e religiosas. Após, foram surgindo os primeiros Estados, nos quais as pessoas se reuniam diante de um líder religioso ou militar (Estado chinês, fenício e outros). No Estado Helênico, por sua vez, houve o primeiro surgimento de civilizações semelhantes ao Estado moderno. No Estado romano, houve um incremento na organização estatal, com claras divisões legislativas e executivas, dividindo-se o poder público do privado. Na Idade Média, em bruta análise, a sociedade era instituída por feudos, regidas pelos senhores feudais. Nos Estados absolutistas, todo o poder era centralizado na figura do monarca[5].

Os valores que alicerçaram a formação de um Estado de Direito como concebemos hoje surgiram com a Revolução Francesa de 1789. Com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 1789, criou-se um dos primeiros documentos formal e constitucional (depois da Magna Carta de 1215[6]), no qual foram previstas limitações ao poder estatal, a positivação de direitos e garantias fundamentais e a necessidade de criação de processo legislativo para restrição desses direitos, conforme se depreende da leitura do seu artigo 5º[7].

A CRFB88, em seu artigo primeiro, prevê, expressamente, a constituição de um Estado Democrático de Direito. Nessa linha, faz-se necessário apresentar considerações sobre essa terminologia, ainda que de forma superficial, considerando que o tema possui relevância hermenêutica para a questão tratada neste artigo.

Conforme observado anteriormente, o Estado de Direito surgiu, como conceito e base para formação de um Estado-nação, a partir da Revolução Francesa. A inclusão do termo democrático merece ser analisada com maior robustez.

Ao citar Loewenstein[8], Enio Moraes da Silva no artigo intitulado O Estado Democrático de Direito, informa que[9]:

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No entendimento de Loewenstein (1976, p. 152), o aspecto principal do Estado Democrático Constitucional residiria na distribuição e nos mecanismos institucionais de controle do poder político, fazendo com que este seja efetivamente submetido aos seus destinatários, ou seja, ao povo. Mais à frente em sua primorosa obra, Teoria da Constituição, Loewenstein destaca a importância da Constituição na formulação e formalização da ordem fundamental da sociedade estatal, com um indispensável aspecto material em seu elemento fundamental para alcançar-se o controle do poder.

Complementando esse conceito, Alexandre de Moraes[10] arguiu que para a concepção de um Estado Democrático de Direito, faz-se necessária a existência de normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais.

Outro aspecto importante que merece ser tratado nesta análise é que a democracia não é apenas o governo da vontade política maioria sobre a minoria, e é nesse aspecto que a liberdade de expressão ganha maior relevância. Nesse sentido, ao dispor sobre a tirania da maioria, J.S. Mill[11], em brilhante análise, explica que:

(...)a tirania da maioria foi a princípio, e ainda é, vulgarmente, temida, principalmente por operar por meio dos atos de autoridades públicas. Mas as pessoas reflexivas perceberam que quando é a sociedade a própria tirana, a sociedade coletivamente, sobre os indivíduos separados que a compõem, seus meios de tirania não se restringem aos atos que ela pode realizar pelas mãos de seus funcionários políticos. A sociedade pode e executa seus próprios mandatos: e se emite mandatos errados em vez de certos, ou quaisquer mandatos em coisas com as quais não deve se intrometer, pratica uma tirania social mais formidável do que muitos tipos de opressão política, pois, embora geralmente não seja sustentado por penas tão extremas, deixa menos meios de fuga, penetrando muito mais profundamente nos detalhes da vida e escravizando a própria alma (tradução livre).

Conforme se pode depreender do entendimento acima, não há que se falar em democracia se o Estado não cria meios para garantir aos seus cidadãos o direito de expor e apresentar suas ideologias, ainda que contrárias ao entendimento majoritário, no afã de impedir a formação de uma arbitrária tirania da maioria. Tal requisito é crucial para que se possa cogitar a existência de uma democracia efetiva.

Nessa seara, podemos arrolar elementos mínimos para a efetivação de um chamado princípio democrático em um Estado Democrático de Direito: a) existência de eleições livres e periódicas realizadas pelo povo; b) distribuição do poder político; c) mecanismos de controle do poder político; d) delimitação do poder estatal; e) positivação de direitos e garantia fundamentais; e f) liberdade de expressão, ainda que contrária ao entendimento majoritário. O último elemento foi destacado, tendo em vista que se trata de requisito nuclear para a formação do discurso democrático.

3. O Subjetivismo Hermenêutico na Restrição do Exercício da Liberdade de Expressão no Estado Democrático de Direito. As posições recentes do Supremo Tribunal Federal.

O Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, em diversas oportunidades, apresentou decisões referentes ao conflito entre a plena liberdade de expressão e a garantia de outros direitos fundamentais.

No julgamento do Habeas Corpus nº 82424, o STF decidiu que escrever, editar, divulgar e comerciar livros, "fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). Assim, no que respeita ao mérito dessa decisão, o STF entendeu que[12]:

() O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (...) No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável.

Diante da análise desse famigerado leading case, podemos extrair a ilação de que o STF limitou o exercício ao direito à liberdade de expressão, quando o seu conteúdo visa a ofender princípios relativos à dignidade da pessoa humana e à igualdade jurídica (o Excelso Pretório brasileiro decidiu pela impossibilidade de ser realizado, no país, o discurso de ódio, hate speech[13]).

Posteriormente, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 806339, em 13/12/2018, pelo Ministro Relator Marco Aurelio, em sede de repercussão geral, o STF entendeu que:

() no momento do balanceamento do peso atribuído a cada direito, deve-se ter em conta ser o direito à liberdade de expressão um dos primeiros e mais importantes fundamentos de toda a estrutura democrática. A liberdade de expressão não apenas merece ser tomada em conta, como qualquer outro direito afetado, mas requer atenção privilegiada, pois o socavar da liberdade de expressão afeta diretamente o nervo principal do sistema democrático.

Por meio do julgamento suprarreferido, é importante ressaltar as acertadas palavras do Ministro Relator, conferindo à liberdade de expressão uma atenção privilegiada, considerando que a sua limitação arbitrária e desmedida afeta diretamente o nervo principal do sistema democrático. Resta claro que há uma correlação natural e indissociável entre a liberdade de expressão e o sistema democrático.

Por outro lado, no julgamento da Ação Penal originária nº 1044/DF, pelo Ministro Relator Alexandre de Morais, o STF assim se posicionou:

A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, jocosas, satíricas e até mesmo errôneas, mas não para opiniões criminosas, discurso de ódio ou atentados contra o Estado Democrático de Direito e a democracia.

A Constituição garante a liberdade de expressão, com responsabilidade. A liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou para a prática de discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições.

Nesse sentido, são inadmissíveis manifestações proferidas em redes sociais que objetivem a abolição do Estado de Direito e o impedimento, com graves ameaças, do livre exercício de seus poderes constituídos e de suas instituições.

O entendimento realizado pelo STF, na AP nº 1044/DF, acima transcrito, arguiu, de maneira acertada, que a liberdade de expressão pode ser exercida para a emissão de opiniões contrárias, jocosas, satíricas e até mesmo errôneas, mas com responsabilidade. Ocorre que, nos argumentos decisórios, foi sustentado que a liberdade de expressão não poderia ser utilizada contra a democracia, contra as instituições ou contra o Estado de Direito. Como podemos falar em democracia se a liberdade de expressão não puder ser exercida para criticar a atuação das instituições do Estado?

Em nova oportunidade, o STF foi instado a se manifestar sobre esse tema, em decisão realizada pela Segunda Turma, conforme consta no Informativo STF nº 1053/2022, ao decidir sobre suposto cometimento de crime contra a honra, diante de discurso realizado por parlamentar do Congresso Nacional. Em síntese, a Segunda Turma proferiu o seguinte entendimento:

A liberdade de expressão não alcança a prática de discursos dolosos, com intuito manifestamente difamatório, de juízos depreciativos de mero valor, de injúrias em razão da forma ou de críticas aviltantes.

A garantia da imunidade parlamentar não alcança os atos praticados sem claro nexo de vinculação recíproca entre o discurso e o desempenho das funções parlamentares.

Como é de conhecimento notório, o exercício da liberdade de expressão ganha um reforço protetivo constitucional com relação aos parlamentares. O artigo 53 da CRFB88 é claro ao afirmar que os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Não restam dúvidas que parlamentares (senadores, deputados e vereadores), os quais possuem o crivo popular para defender suas ideologias políticas, devem ser guarnecidos com esta imunidade material, a fim de, justamente, manter o discurso democrático vigente e efetivo no Estado.

A responsabilização deve, sim, existir, especialmente quando se é possível imputar um dano (físico ou psíquico) a alguma pessoa, ou grupo de pessoas, diante do exercício (ilegal) da liberdade de expressão. Os documentos internacionais, especialmente o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 (art. 18, §3º), expressamente preveem a responsabilização e até a restrição do exercício desse direito. Contudo, a opinião exercida por qualquer pessoa, ainda mais um parlamentar, em relação a instituições públicas, ou à ordem política atual, ainda que contrárias, jocosas, satíricas e até mesmo errôneas, não deveriam ser cerceadas, nem ser estipulada alguma forma de responsabilização (não se poderia imputar um dano a instituições desprovidas de personalidade jurídica). É possível desassociar o discurso de um parlamentar, ao realizar críticas em desfavor de instituições de Estado, do desempenho de suas funções parlamentares?

A partir dessa indagação, há o surgimento de outra: há respeito ao discurso democrático se o órgão máximo do Poder Judiciário, na decisão de hard cases que versam sobre a colisão da liberdade de expressão com outros direitos, detém a competência exclusiva e irrecorrível para decidir qual o discurso é democraticamente legítimo?

A fim de robustecer a questão, vale destacar que, em outro recente julgamento, o Plenário do STF, em julgamento virtual da ADPF 722/DF, finalizado em 13/05/2022, pela Ministra Relatora Carmem Lúcia, decidiu por conferir o princípio da máxima efetividade à livre manifestação do pensamento, sendo que, nas próprias palavras da Corte Constitucional, seriam essenciais ao regime democrático. O caso tratava da impossibilidade da máquina estatal, pelos órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência, proceder à colheita de informação de servidores com postura política contrária ao governo. Vale transcrever trechos extraídos do Informativo STF 1054/2022[14]:

Os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência, conquanto necessários para a segurança pública, segurança nacional e garantia de cumprimento eficiente dos deveres do Estado, devem operar com estrita vinculação ao interesse público, observância aos valores democráticos e respeito aos direitos e garantias fundamentais.

Nesse contexto, caracterizam desvio de finalidade e abuso de poder a colheita, a produção e o compartilhamento de dados, informações e conhecimentos específicos para satisfazer interesse privado de órgão ou de agente público (1).

Na hipótese, a utilização da máquina estatal para a colheita de informações de servidores com postura política contrária ao governo caracteriza desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamentais da livre manifestação do pensamento, da privacidade, reunião e associação, aos quais deve ser conferida máxima efetividade, pois essenciais ao regime democrático.

É nítido que o STF poderia utilizar de sua própria jurisprudência e reiterar o seu entendimento, no sentido de que a liberdade de manifestação poderia sofrer restrição, para assegurar o respeito às instituições. A hermenêutica jurídica para justificar se o exercício de uma liberdade de expressão é contrário, ou não, ao princípio democrático do Estado Democrático de Direito demanda um elevado grau de subjetivismo. Nos últimos julgados analisados neste artigo, é possível inferir que o STF poderia ter se utilizado de uma ou outra argumentação jurídica, no afã de legitimar, ou não, o exercício da liberdade de expressão.

Diante dos argumentos acima colacionados, especialmente diante da mutação argumentativa do STF, quando, por vezes, garante máxima efetividade à liberdade de expressão, ou em outras e recentes ocasiões decide por restringir o exercício da liberdade de expressão, tem-se que não pode ser afastada a ilação de que o núcleo central da democracia é o convívio de opiniões políticas diversas. Em um Estado Democrático de Direito, onde há a prevalência da coexistência harmônica entre os Poderes, temos que um Poder não deve sobrepor o seu entendimento político sobre o outro. As instituições de Estado, ou o próprio Estado Democrático de Direito, não podem ser considerada tão frágeis a ponto de não ser possível aceitar opiniões contrárias a elas. O ordenamento jurídico internacional prevê como legítima a responsabilização pelo mau uso do exercício da liberdade de expressão. Contudo, a restrição do exercício desse direito tão caro à democracia somente deve ocorrer em situação de extrema excepcionalidade.

Quando John Rawls, em sua célebre obra, lecionou que a liberdade de consciência só deve ser limitada quando há uma expectativa razoável de que não fazê-lo prejudicará a ordem pública que o Estado deve manter.[15], certamente que não imaginou que poderia criar a tirania de um Poder de Estado sobre os demais. O termo prejudicar a ordem pública se constitui de uma cláusula aberta a qual permite, diante da interpretação subjetiva do julgador, decidir de acordo sua própria opinião política. A limitação do exercício da liberdade de expressão encontra legitimidade quando houver ofensa manifesta à dignidade da pessoa humana, sendo possível imputar, concreta e objetivamente, um dano (físico ou psíquico) a uma pessoa ou grupo de pessoas, ou restar comprovada ação ou omissão capaz de gerar um risco concreto, ou ao menos provável, à ordem jurídica e democrática (podemos criar um exemplo do que poderia ser considerada uma legítima supressão ao exercício do direito à liberdade de expressão quando um cidadão, por qualquer meio de comunicação, convoca os seus pares a incendiar a sede do Governo Federal, ou do Congresso Nacional, cometer algum ato terrorista e etc.).

O discurso democrático não deve ser submetido ao crivo exclusivo de um Poder sobre as demais instituições do Estado. Ainda que correto, esse crivo seria, invariavelmente, arbitrário e ofensivo ao princípio democrático. Não se quer excluir a competência constitucional do Poder Judiciário de apreciação de lesão ou ameaça a direito, mas alertar que todas as competências constitucionais devem ser exercidas em respeito aos elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito.

4. Considerações finais

O exercício do direito à liberdade de expressão não está imune à responsabilidade. O próprio exercício do direito à liberdade de ir e vir pode ser cerceado, quando, por exemplo, a pessoa é processada pela consumação de um crime tipificado na lei penal. Os diversos diplomas internacionais que asseguram a liberdade de expressão preveem responsabilização e até restrição excepcional ao exercício desse direito.

Todo indivíduo tem o direito de se expressar. Apresentar a sua ideologia. Realizar o proselitismo. Não há que se falar em democracia se o cidadão não pode apresentar e defender suas ideias, ainda que contrárias ao senso majoritário. Aos parlamentares, salienta-se, há um incremento protetivo constitucional referente ao exercício da liberdade de expressão nas questões relacionadas ao mandato e à sua atuação legiferante.

Recentes decisões do STF começam a permear uma tênue e nebulosa linha, surgindo a indagação: é legítima a restrição do exercício da liberdade de expressão, pelo STF, de discurso praticado por cidadãos (especialmente membros do Poder Legislativo) que não possuem a capacidade de causar uma ofensa à dignidade de pessoa humana, por meio de um dano físico ou psíquico a uma pessoa ou grupo de pessoas ou gerar um risco concreto à ordem jurídica e democrática?

Ninguém está ileso a ser responsabilizado pelos seus atos comissivos ou omissivos. A responsabilidade é um dos instrumentos que torna a vida, em sociedades complexas como as atuais, possível. Ocorre que, na colisão entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, percebemos que há a concentração na apreciação da legitimidade, ou não, do exercício desse direito na esfera de um único Poder. Nesse viés, o órgão máximo do Poder Judiciário, mediante a sua competência constitucional exclusiva e irrecorrível, quando instado a se manifestar sobre a colisão desses direitos, emite decisões as quais, em razão da própria natureza dessas questões, apresentam um elevado grau de subjetivismo, sendo possível a elaboração de argumentos hermenêuticos ora para dar primazia à liberdade de expressão e ora para suprimi-la (ou responsabilizá-la). Com isso, institucionaliza-se, fática e contrariamente ao ordenamento jurídico democrático, a criação de um Poder Moderador do discurso democrático, o qual pode desequilibrar a harmonia na coexistência dos Poderes e violar os elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito.

A restrição do exercício da liberdade de expressão, ou a responsabilização por atos a ele decorrentes, pelo Poder Judiciário, deveria ocorrer apenas em situações extremas, nas seguintes hipóteses: a) quando houver ofensa concreta à dignidade da pessoa humana, sendo possível imputar, objetivamente, um dano físico ou psíquico a uma pessoa ou grupo de pessoas; b) ou restar comprovada ação ou omissão capaz de gerar um risco concreto, ou ao menos provável, à ordem jurídica e democrática.

A liberdade de expressão constitui um dos elementos nucleares para a formação discurso democrático. A restrição ao exercício desse direito deve ser vigiada por toda a sociedade. Ainda que o Poder Judiciário, com boas intenções, vise, em suas decisões, a preservar os valores da maioria da sociedade na resolução do conflito da liberdade de expressão com outros direitos, impondo qual discurso seria, ou não, legítimo, rememora-se que a tirania social da maioria é mais formidável do que outros tipos de opressão política e deve ser constantemente submetida a análises críticas, especialmente por nós, operadores jurídicos e pessoas reflexivas.


  1. https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/1789.pdf
  2. TORRES, Fernanda Carolina. O direito fundamental à liberdade de expressão e sua extensão. Publicado em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/50/200/ril_v50_n200_p61.pdf. Acesso em 13/05/2022.
  3. SILVA, José Afonso. Aplicabilidade da norma constitucional. 4ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, pag. 247.
  4. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24 ed, São Paulo: Edições Loyola, 2014.
  5. BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. 6 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007
  6. https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/182020/000113791.pdf. Acesso em 23/05/2022.
  7. Artigo 5º- A Lei não proíbe senão as acções prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
  8. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Editorial Ariel, 1976. (Coleccion Demos).
  9. https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/167/ril_v42_n167_p213.pdf
  10. MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais. São Paulo: Atlas, 2000 (pág. 43).
  11. MILL, J. S. On Liberty in Utilitarianism, On Liberty, Considerations on Representative Government. London: Everyman Ed., 1993
  12. STF.  Habeas corpus nº 82.424/RS. Siegfried Elwanger e Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Moreira Alves. DJ 19.mar.2004.
  13. NAPOLITANO, Carlos José e STROPPA, Tatiana. O Supremo Tribunal Federal e o discurso de ódio nas redes sociais: exercício de direito versus limites à liberdade de expressão. Acesso em 27/05/2020 em https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/54685
  14. https://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo1054.htm. Acesso em 23/05/2022.
  15. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 262
Sobre o autor
Régis Schneider da Silva

Atualmente, Auditor de Controle Externo do TCE/RS. Antigo Assessor Jurídico - Especialista em Saúde - da Secretaria Estadual de Saúde do RS, Analista Processual da DPE/RS e Analista de Previdência e Saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Especialista em Direito Penal e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Régis Schneider. O subjetivismo hermenêutico na restrição do exercício da liberdade de expressão no Estado democrático de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6914, 6 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98357. Acesso em: 23 dez. 2024.

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