4 A ANENCEFALIA E O DIREITO PENAL
Estabelecendo-se diferenças entre os conceitos de aborto dos pontos de vista médico e jurídico, podemos verificar que, sob o prisma jurídico, a lei não estabelece limite mínimo ou máximo para a idade gestacional. O aborto é entendido como a interrupção da gravidez com fim de morte fetal, não sendo feita assim nenhuma referência à idade gestacional.
Já sob o ponto de vista médico, entende-se por aborto a interrupção da gravidez, voluntária ou não, antes de se completarem vinte semanas de idade gestacional, quando o peso fetal for menor que 500 gramas ou ainda, para alguns autores, quando o feto medir até 16,5 cm. Compreende-se ainda que a interrupção da gravidez não constitui prática de aborto, pois não há vida a ser destruída nessas situações, configurando um desvio na formação e/ou evolução da concepção15.
Assim estabelece o professor Luiz Flávio Gomes, que incessantemente nos passa grandes lições sobre direito penal:
Nosso Código Penal (de 1940) permite aborto em duas situações: (a) risco concreto para a gestante; (b) gravidez resultante de estupro. O primeiro chama-se aborto necessário; o segundo humanitário. O aborto por anencefalia (feto sem ou com má formação do crânio) não está expressamente previsto na lei penal brasileira. Tampouco outras situações de má formação do feto (aborto eugênico ou eugenésico). Também não se permite no Brasil o chamado aborto a prazo (que ocorre quando a gestante pode abortar o feto até a décima segunda semana, conforme decisão sua) nem o aborto social ou econômico (feito por razões econômicas precárias)16.
No referido artigo, Luiz Flávio Gomes também diz que aqueles que sustentam o respeito à vida do feto devem observar com atenção que o que está em jogo é a vida ou a qualidade desta de todas as pessoas envolvidas com o feto mal formado. Ainda continua sua defesa quando diz que
Se até em caso de estupro, em que o feto está bem formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico. Lógico que a gestante, por suas convicções religiosas, pode não querer o aborto. Mas isso constitui uma decisão eminentemente pessoal (que deve ser respeitada). De qualquer maneira, não pode impedir o exercício do direito ao abortamento para aquelas que não querem padecer tanto sofrimento17.
Em notável obra com o título – ''''Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil'''' – Elaine Christine Dantas Moisés, do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, nos expõe que o modelo de análise bioética, entre os vários existentes, comumente utilizado na área da saúde e de grande aplicação na prática clínica é o ‘’Principalista’’, introduzido por Beauchamp e Childress, em 1989. Esses autores propõem quatro princípios bioéticos fundamentais: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça.
E, completa:
O princípio da autonomia requer que os indivíduos, capacitados de deliberarem sobre suas escolhas pessoais, devam ser tratados com respeito pela sua capacidade de decisão. As pessoas têm o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e a sua vida. Quaisquer atos médicos devem ser autorizados pelo paciente. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), por meio do seu Cômite para Assuntos Éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher, divulga, desde 1994, em um dos seus marcos de referência ética para os cuidados ginecológicos e obstétricos: O princípio da autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua escolha e respeitando suas opiniões18.
Em sede doutrinária, ressaltam-se ainda as preciosas colocações do Professor Rene Ariel Dotti comentando que durante a gestação podem surgir complicações mórbidas em face de doença da mulher ou de enfermidade intercorrente, pondo em risco a sua vida. Em tal situação, o médico é quem deve decidir sobre a continuidade ou não da gravidez. A ele incumbe averiguar se a incompatibilidade entre a moléstia e a gestação pode acarretar a morte. Em caso afirmativo, é lícita a intervenção com o sacrifício do feto. Essa é a opinião de cientistas como Nélson Hungria. (...) Com o acento indelével de uma jurisprudência humanitária surge a decisão do ministro Marco Aurélio (vide abaixo), do Supremo Tribunal Federal, autorizando a interrupção de gravidez num caso de anencefalia do feto. Trata-se de malformação congênita, caracterizada pela falta total ou parcial do encéfalo, isto é, do conjunto dos órgãos do sistema nervoso central contidos na cavidade craniana. A anomalia, que não tem cura, é incompatível com a vida extra-uterina19.
Em tais casos, é evidente a inviabilidade do feto, que só tem condições de manter algumas de suas funções, como batimentos cardíacos, enquanto ligado à mãe ou enquanto amparado por toda aparelhagem médica. Como mostra a lição de Luiz Regis Prado, a tutela penal recai essencialmente sobre "a vida do ser humano em formação". Ainda segundo o eminente jurista, neste sentido "protege-se a vida intra-uterina, para que possa o ser humano desenvolver-se e nascer"30. E, se a tutela penal, resguarda a vida intra-uterina, para que possa o ser humano desenvolver-se e nascer, não se pode considerar que também recaia sobre o feto que de antemão se sabe destituído das condições mínimas de sobrevivência, não se admitindo qualquer punição à gestante ou ao médico que com a autorização da mãe, interrompa a gravidez. É possível observar, considerando-se a legalidade restritiva que envolve o tipo penal, que o que se tem é uma conduta sugerida por atípica, uma vez que direcionada a objeto não protegido por normas criminais, sendo completamente destituída de potencial lesivo aos objetos materiais contidos nos tipos delimitados nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal Brasileiro.
Quando a mãe requer a retirada desse feto e o médico pratica o ato, isto não representa propriamente um aborto, com base no art. 126 do Código Penal, pois o feto, conceitualmente, não tem vida.
Por muito mais razão, manter um ser morto na barriga da mãe não encontra apoio no princípio da beneficência, pois prolonga inutilmente o sofrimento materno, sem nenhum benefício à vida.
Não há sequer motivos para adicionar outra excludente ao art. 128 do Código Penal, pois pelas razões expostas o ordenamento jurídico já existente autoriza o médico a retirar o feto de anencéfalo da gestante, a seu pedido, sem que com isso incorra em infração penal ou ética, pois, repetimos: se não há vida, não há que se falar em aborto.
5 NÚMEROS DA MATÉRIA
O tema da a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico tem despertado grande interesse e muita polêmica atualmente, sendo citados conjuntamente os termos "anencefalia" e "aborto", em cerca de 80.400 sites da Rede Mundial.20
Segundo pesquisa encomendada ao IBOPE21, 71% da população brasileira é favorável ao aborto no caso de problemas congênitos incompatíveis com a vida, como é o caso da anencefalia. Por outro lado, relativamente às hipóteses legalmente permitidas, 79% da população é favorável ao aborto no caso de risco de morte para a mulher, enquanto que 62% apóiam o aborto em caso de gravidez resultante de estupro.
De acordo com matéria publicada pela revista Super Interessante22nos casos de bebês anencéfalos que vêm ao mundo com vida, 98% morrem na primeira semana. Os outros morrem nas semanas ou meses seguintes.
Em julho de 2004, o Supremo Tribunal Federal (STF), através do Ministro Marco Aurélio de Mello, em ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, concedeu liminar liberando a interrupção de fetos anencéfalos no país23.
Foi ainda determinado pela liminar que fossem suspensos todos os processos em andamento ou os efeitos das decisões judiciais sobre casos de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia.
Porém em 20 de outubro do corrente ano, o STF, por maioria de votos, cassou essa liminar.
Assim, fácil perceber que a grande maioria da população, bem como dos profissionais da área jurídica, são favoráveis à interrupção da gravidez no caso de anomalias absolutamente incompatíveis com a vida, como é o caso da anencefalia. Entretanto, ainda existe certa dúvida quanto à fundamentação jurídica adequada para sustentar as decisões judiciais neste sentido.
6 DIREITO COMPARADO
O Brasil não está sozinho na resistência ao aborto legal em caso de anencefalia. Segundo o jornal "O ESTADÃO" de São Paulo, nações islâmicas, africanas e grande parte da América Latina dividem com o país a proibição e, por isso, lideram o ranking dos nascimentos com a má-formação. O Brasil ocupa a quarta posição. 24
Na esteira oposta estão países como Itália, Espanha, Portugal, Estados Unidos e Canadá que, apesar de tradicionalmente católicos, autorizam a interrupção da gravidez nesses casos. Assim, a partir da constatação de que os fetos, por não possuírem cérebro, não têm qualquer chance de viver, cabe à mulher, em tais nações, com o conhecimento do diagnóstico, decidir se quer prosseguir com a gestação ou antecipar o parto.
O mapa da anencefalia foi traçado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e publicado no World Atlas of Birth Defects (Atlas Mundial de Nascimentos Imperfeitos). O levantamento foi feito com 52 registros de 41 países, em 5 continentes. Os dados estudados se referem ao número de nascidos vivos ou mortos, entre 1993 e 1998.
Nele, o Brasil ocupa o quarto lugar em nascidos com anencefalia, registrando 8,62 casos por 10 mil nascimentos. Está atrás apenas do México, Chile e Paraguai. Na outra ponta, estão países como Croácia, França, Itália, Hungria, Cuba, Suíça e Bélgica, que permitem a interrupção e têm como conseqüência números muito baixos desses nascimentos, cerca de 0,1 por 10 mil.25
A interrupção da gestação resultante de estupro e da gestação com risco de morte da mãe não é criminalizada no Brasil desde o ano de 1940.
Segundo Fátima Oliveira, em artigo ao Jornal O TEMPO de Belo Horizonte, mesmo com as permissões legais de interrupção da gestação, previstas no Código Penal, o Brasil está entre os países que possuem as leis mais restritivas sobre o tema. Ainda de acordo com o artigo, as gestantes, no caso de gravidez de fetos anencéfalos, há mais de uma década, vêm recorrendo a juízes e ao Ministério Público que, geralmente autorizavam a interrupção da gravidez.31
De uma análise do direito comparado, depreendem-se as mais variadas formas de tutela jurídica do nascituro, nos tempos antigos e modernos. Exemplo disso é a opção feita pela Espanha que, em seu Código, face ao art. 30, afirma que a personalidade só tem início se o recém-nascido tiver forma humana e viver por 24 horas. Em certos casos não há que se falar em nascituro ou pessoa, mas em um ser aberrante e defeituoso. Esta exigência de "normalidade" vem sendo combatida veementemente por criar situações absurdas e não aceitar os avanços da medicina no tratamento de malformações congênitas.
Já o Código Civil argentino, de forma extremamente progressista, afirma em seu artigo 70 que:
Desde la concepción en el seno materno comienza la existencia de las personas; y antes de su nacimiento pueden adquirir algunos derechos, como si ya hubiesen nacido. Esos derechos quedan irrevocablemente adquiridos si los concebidos en el seno materno nacieren con vida, aunque fuera por instantes después de estar separados de su madre (Artigo 70 do Código Civil Argentino)32.
Ou seja, que a personalidade jurídica da pessoa humana se inicia com a concepção. No entanto, em outros dispositivos deste Código, percebe-se que o legislador não concedeu plenitude à "pessoa por nascer", vinculando sua existência ao nascimento com vida. Há, portanto, a aquisição condicional de direitos, sob a dependência do nascimento.
O Brasil, moralmente, não pode seguir cultuando uma cultura de crueldade para com as mulheres que precisam abortar e que, à falta da legalidade, recorrem a práticas inseguras e, quando chegam às maternidades, são olhadas como criminosas e punidas com curetagens sem anestesia, queixa na polícia e até prisão. É dever do Estado brasileiro apoiar as mulheres em suas decisões reprodutivas e cabe às entidades de classe da categoria médica desenvolver esforços para ampliar a consciência e o respeito pelos direitos das mulheres e exigir conduta ética e consideração à alteridade na atenção de tal dilema.
7 DANOS PSICOLÓGICOS CAUSADOS À GESTANTE
Inicialmente, vale acentuar que a saúde é um direito fundamental, expresso no artigo 196 da Constituição Federal, que dispõe:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação33.
Não se limitando assim somente. A Organização Mundial da Saúde define a saúde como "o estado de completo bem estar físico, mental e social e não simplesmente como a ausência de enfermidade"34. Ora, é inquestionável, na hipótese da anencefalia, que a saúde psíquica da mulher passa por graves transtornos. O diagnóstico da anencefalia já se mostra suficiente para criar, na mulher, uma grave perturbação emocional, idônea a contagiar a si própria e a seu núcleo familiar. São evidentes as seqüelas de depressão, de frustração, de tristeza e de angústia suportadas pela mulher gestante que se vê obrigada à torturante espera do parto de um feto absolutamente inviável35. Esta morte certa, que não se permite abreviar no tempo, constitui a condenação imerecida da mulher grávida e a abolição do exercício de sua autonomia de vontade. Obrigá-la a carregar, em seu ventre, um ser morto, porque deixará de existir se dela desconectado, constitui ainda uma ofensa à sua dignidade de mulher, de mãe, enfim, de pessoa humana36.
Neste contexto e considerando-se que o aborto anencefálico envolve o direito a vida e dignidade do feto, bem como os direitos a saúde, dignidade, autonomia da vontade, liberdade e vida da mãe, questiona-se a obrigatoriedade de a mulher ter o dever de carregar por nove meses um feto que, com plenitude de certeza, não sobreviverá. A potencial ameaça a sua integridade física bem como os danos a sua integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta de um feto que nunca poderá se tornar um ser vivo, dentro de si, podem ser comparadas à tortura psicológica. Nesses termos, a dor, angústia e frustração causadas importam, sobretudo, violação da dignidade humana.
É possível observar também a questão da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia podendo ser defendida por sua natureza axiológica, partindo justamente do pressuposto dos danos psicológicos causados na gestante e pela natureza teleológica, sob o ponto de vista de que a interrupção da gravidez trará não só o fim do massacre psicológico aos entes envolvidos, como também evitará o iminente risco de morte que sofre a mãe ao dar desenvolvimento à gestação.
Como mostra Miguel Reale no prefácio da sua 1ª edição na Teoria Tridimensional do Direito:
Nenhuma teoria jurídica é válida se não apresenta pelo menos dois requisitos essenciais, entre si intimamente relacionados: o primeiro consiste em atender às exigências da sociedade atual, fornecendo-lhe categorias lógicas adequadas à concreta solução de seus problemas; o segundo refere-se à sua inserção no desenvolvimento geral das idéias, ainda que os conceitos formulados possam constituir profunda inovação em confronto com as convicções dominantes. 37
Portanto, quando falamos em interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalo, podemos concluir que é um fato social que a cada dia está se valorando perante a sociedade, que se encontra na ânsia da regulamentação de uma norma, de um entendimento unânime, que ampare juridicamente o abortamento. Tal normatização irá beneficiar muitos brasileiros ao se depararem diante de quadro tão polêmico e angustiante.