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A antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico

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14/05/2007 às 00:00
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8 DOAÇÃO DE ÓRGÃOS DO ANENCÉFALO

Conforme exposto, os anencéfalos não possuem os hemisférios cerebrais constituídos, em parte, pela estrutura funcional mais importante: o córtex cerebral. Conseqüentemente, têm apenas o tronco cerebral, motivo pelo qual não mantêm relação com o mundo exterior e não conseguem conscientizar a dor. Essa malformação advém do não-desenvolvimento da porção anterior do tubo neural, tendo origem multifatorial, destacando-se a deficiência do ácido fólico como uma de suas causas.

O diagnóstico que constata que a mulher tem em seu ventre feto anencefálico é feito de forma segura pela dosagem de alfafetoproteínas ou por exames de ultra-sonografia de alta resolução, aptos a detectar a anencefalia logo pela 10ª semana.

Como visto, as características ora expostas não parecem atender aos conceitos de vida impostos pelos avanços científicos, já que, hoje, a atividade cerebral é fundamental para que se faça distinção entre vida e morte.

Os critérios fixados pela Resolução nº 1.480/97do Conselho Federal de Medicina, aplicados em indivíduos com encéfalo, consideram, para que se tenha a efetiva certeza da irreversibilidade, que todo o encéfalo esteja sem vida. Como o anencéfalo não possui cérebro, não há que se falar, então, em possibilidade de vida – a natureza, previamente, abortou qualquer potencialidade.

Contudo, a ausência de atividade cerebral não significa que os demais tecidos e órgãos estejam mortos. Nesses termos, a recém aprovada Lei dos Transplantes dispõe em seu artigo 3º:

A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina [38].

Tal lei adotou pois a morte encefálica como indicador de fim da vida.

Contudo, atualmente, a Lei de Transplantes só permite que seja doador quem tiver morte encefálica comprovada. Como não possuem cérebro, os anencéfalos não são incluídos entre os doadores.

A Câmara analisa o Projeto de Lei 6599/06, do Deputado Federal Marcos Abramo (ANEXO B), que modifica o artigo 3º da Lei de Transplantes autorizando a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo de bebês sem cérebro.

O Deputado lembra que o Conselho Federal de Medicina (CFM), em 2004, declarou-se a favor do transplante de órgãos ou tecidos do anencéfalo, desde que autorizado pelos pais até 15 dias antes do nascimento. "O CFM parte do entendimento de que os ''anencéfalos são natimortos cerebrais, por não possuírem os hemisférios cerebrais''", argumenta o parlamentar. "Protelar ainda mais uma definição sobre o assunto significa condenar à morte dezenas de recém-nascidos que necessitem de algum transplante", continua39.

O texto não modifica outras exigências da lei. Além da autorização dos familiares para o transplante, Marcos Abramo mantém a exigência de regulamentação técnica pelo CFM para garantir a segurança no processo de doação. A anencefalia, assim como a morte cerebral, deverá ser constatada e registrada por dois médicos que não participem das equipes de remoção e transplante.

Afastados os debates religiosos, há de se observar que vivemos num Estado em que vigem os princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o da solidariedade, cuja interpretação conjunta não permite vislumbrar-se entendimento diverso. Como visto, as condições do anencéfalo são comparáveis às do indivíduo a que sobreveio falência encefálica, podendo, logo, ser considerado juridicamente morto.


CONCLUSÃO

Como visto, a anencefalia é uma espécie de anomalia diagnosticável que importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central que é responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Não existe um tratamento pelo qual o feto anencefálico possa passar e sobreviver. Ela é fatal em 100% dos casos.

Entretanto, a questão da antecipação do parto em tais casos não é simples. Pelo contrário, envolve uma série de aspectos religiosos, filosóficos e científicos, e, acima de tudo, políticos. Entretanto, se impõem uma mínima noção de eqüidade, solidariedade e, acima de tudo, argúcia para que se chegue a uma solução razoável.

A Constituição Federal, bem como grande parte dos diplomas infraconstitucionais, está carregada de proposições que elevam a dignidade da pessoa humana à condição de princípio fundamental de nosso ordenamento jurídico. Assim, a proteção à vida que está presente na Constituição e no Código Civil não pode ser confundida com a proteção a uma concepção sobre o que é vida. Vida é a ausência da morte. E, nestes casos, tanto a morte cerebral quanto a morte da anencefálica são dados evidentes.

A própria personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida, já que o conceito de morte adotado por nosso ordenamento jurídico é o de morte encefálica.

Nesses termos, é impositivo que a interrupção de uma gestação de feto humano anencefálico, propriamente diagnosticado, sequer deve ser considerada aborto. Pois se não há vida potencial no resultado da concepção e no estágio específico em que a gestação é interrompida, não há aborto, pois nenhuma vida potencial ou efetiva está sendo interrompida.

Assim, salienta-se que, apesar das complexas e sensíveis abordagens religiosas, o Estado brasileiro é laico, sendo importante ressaltar que uma possível decisão no Plenário do STF não será uma imposição da prática de interrupção da gestação dos fetos anencefálicos, mas sim uma autorização para que o procedimento médico, desde que autorizado pela mãe ou pela família, seja realizado sem a criminalização do ato. As pessoas que por motivos de fé religiosa não quiserem realizar a interrupção dessa gestação têm toda a liberdade garantida pela Constituição Brasileira.

Os que não admitem discutir a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, mesmo havendo argumentos razoáveis para o debate, por temerem que isso abra portas para outras modalidades de aborto, cometem um erro. De fato, a sociedade se torna cada vez mais liberal e disposta a aceitar o que antes era tabu e tende a considerar o progresso da Medicina nas decisões telúricas, mesmo e principalmente quando a colocam frente a questões novas, para as quais as nossas antigas respostas mostram-se incompletas. Interditar o debate com estratégias do tipo "daqui a pouco estará implantada a eugenia", não contribui para o avanço moral do País. As questões difíceis devem ser tratadas, mesmo que haja riscos de equívocos. Evitá-las, não os afasta e, com certeza, só amplia a exclusão dos cidadãos de questões que estão no seu cotidiano e sobre as quais podem dar sua contribuição real.

Como disse PESSINI e BARCHIFONTAINE, "não existe uma solução fácil para esse assunto. Ninguém é dono da verdade. Juntos, procuremos compreender com amor e não julgar. Tentemos ir além de uma visão puramente biológica, focalizando todas as necessidades do ser humano: físicas, psíquicas, sociais e espirituais"40.


REFERÊNCIAS

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BRUM, Eliane. Mulheres Pobres são impedidas de interromper gestações inviáveis por cruzada religiosa, Revista época: São Paulo, Edição 304.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. II. São Paulo: Editora Saraiva. 2006. 628 p.

Código Civil Argentino Disponível em: <http://www.justiniano.com/ codigos_juridicos/codigos_argentina.htm> Acesso em: 26 set. 2006

COSTA, Sérgio. DINIZ, Débora. Bioética: Ensaios. 1.ed. Brasília: Letras Livres, 2001. 208 p.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. 840 p.

DOTTI, René Ariel. O aborto de uma tragédia. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5452>. Acesso em: 26 set. 2006.

ESCOSTEGUY, Diego. O aborto em pauta. Revista Época. São Paulo. Ed. 343, página 65, Dezembro de 2004.

FARIAS, Sávio Torres de. O Código da Vida: Um Modelo Baseado num Mundo Ribonucleoprotéico. 2003. 67f. Tese de Mestrado em Genética. Universidade Federal da Paraíba. Paraíba.

FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aborto e Infanticídio. 3. ed. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições Ltda,1996.223 p.

FERNÁNDEZ, Ricardo Ramires et al. World Atlas of Birth Defects. WHO – World Health Organization. Disponível em <http://www.who.int/genomics/about/en/ anencephaly.pdf>. Acesso em: 11 de agosto de 2006.

FRANCO, Alberto da Silva. Anencefalia: Breves considerações médicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. Revista dos Tribunais V. 833. Março de 2005.111 p.

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. Vol. II. 23 ed. São Paulo: Editora Atlas S.A.. 2005. 510 p.

MOISÉS, Elaine Christine Dantas et al. Aspectos Éticos e Legais do Aborto no Brasil. 1. ed. Ribeirão Preto: FUNPEC, 2005. v. 1. 67 p.

NARLOCH, Eliza Muto. Quando a vida começa? Revista Super Interessante, São Paulo: Edição 219, página 62, Novembro de 2005.

PESSINI, Léo, BERCHIFONTAINE, Chistian de Paul. Problemas Atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 2000, 584 p.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 2. 4.ed: São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2000. 629 p.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 161 p.

REZENDE, Jorge de. Obstetrícia. Distocias do cordão. Macrossomia do feto. Anencefalia. 7 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995. 1360 p.


ANEXOS

ANEXO A

MED. CAUT. EM ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54-8 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO ARGUENTE(S) : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE CNTS ADVOGADO (A/S): LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(A/S)

DECISÃO-LIMINAR

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR - ATUAÇÃO INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E 5º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/99. LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE - GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO - FETO ANENCEFÁLICO.

1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras decorrentes do enquadramento no Código Penal.

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Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que, principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública.

Sobre a inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica do parto, sem incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento retratado no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete minutos após. Diz da admissibilidade da ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero como amicus curiae, por aplicação analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99.

Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia.

O pedido final visa à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Sucessivamente, pleiteia a argüente, uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição inicial recebida como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob esse prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos citados artigos do Código Penal, sem redução de texto, aduzindo não serem adequados à espécie precedentes segundo os quais não cabe o controle concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente.

A argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres técnicos e, se conveniente, pela tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo advogado Luís Roberto Barroso, credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de folha 26, anexaram-se os documentos de folha 27 a 148.

O processo veio-me concluso para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto, declarando-me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em 21 de junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato.

No mesmo dia, prolatei a seguinte decisão:

AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE TERCEIRO - REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE.

1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a intervenção no processo em referência, como amicus curiae, conforme preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada de procuração. Pede vista pelo prazo de cinco dias.

2. O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal.

3. Indefiro o pedido.

4. Publique-se.

A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, diante do perigo de grave lesão.

2. Tenho a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS como parte legítima para a formalização do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do artigo 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da categoria profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal.

Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou:

A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.

O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica, assentando:

HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.

1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.

2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.

3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.

4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.

5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.

Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período de sete minutos.

Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional. Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo.

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos.

Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior, considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco.

Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.

3. Ao Plenário para o crivo pertinente.

4. Publique-se.

Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.

Ministro MARCO AURÉLIO Relator

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Sobre a autora
Letícia Gomes Cordeiro

bacharel em Direito em Vitória (ES)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDEIRO, Letícia Gomes. A antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1412, 14 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9875. Acesso em: 7 nov. 2024.

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