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A antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico

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14/05/2007 às 00:00
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ANEXO B

PROJETO DE LEI No, DE 2006

(Do Sr. Marco Abramo )

Altera a Lei nº 9.434, de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e

partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamento, para permitir que

portadores de anencefalia sejam doadores de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1° O art. 3° Da Lei nº 9.434, de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação.

"Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica ou de anencefalia, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina."

(NR)

Art.2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

A proposição que ora apresentamos tem como objetivo primordial a defesa e a proteção do bem maior de toda a humanidade: a vida.

A sociedade brasileira tem vivenciado ao longo do tempo a grande luta travada por milhões de cidadãos pela preservação de suas vidas ou a de seus familiares, que dependem de um órgão ou tecido de outro cidadão.

Entre a identificação da necessidade de um novo órgão e a realização do transplante normalmente transcorre um período longo e traumático, em que sofrem o paciente, sua família e, muitas vezes, toda a sociedade.

Esse processo é complexo, extremamente difícil e nem sempre bem sucedido. São muitas as razões para tantas dificuldades. Uma delas é, ainda, a baixa capacidade operacional do sistema nacional de transplantes, que, embora tenha melhorado em vários aspectos nos últimos anos, ainda está muito aquém da necessidade de nossa sociedade.

Não se têm profissionais e equipes de transplantes suficientes e atuantes em todo o País. Os centros de captação, também, não são capazes de atender a demanda. Essa baixa eficiência na gestão do sistema agrava ainda mais o maior dos problemas na área: a carência de praticamente todos os tipos de órgãos e tecidos, em face da demanda sempre crescente.

Há que se admitir, todavia, que houve avanços na conscientização de nossa sociedade em relação à importância da doação, embora ainda não de maneira suficiente para suprir o déficit.

Assim, a falta de órgãos para milhares de brasileiros, que enfrentam a mais dramática das filas, é uma realidade insofismável e indiscutível.

Essa gravíssima situação faz com que cada órgão disponível, cada doador, cada possibilidade de se doar ganhe uma relevância transcendental. Trata-se da oportunidade mais nobre para o ser humano. Salvar uma vida.

Urge, nesse contexto, equacionar a grande polêmica surgida em torno da possibilidade jurídica da doação de órgãos de anencéfalos.

Protelar essa definição significa condenar à morte dezenas de recém-nascidos

que necessitem de alguma modalidade de transplante.

Demonstrando a sua preocupação com o problema, o Conselho Federal de Medicina realizou uma série de estudos, consultas e um grande fórum nacional para definir uma posição sobre a aplicabilidade da legislação vigente aos casos de anencéfalos. Com a Resolução nº 1.752, de setembro de 2004, o CFM definiu-se pela possibilidade de se realizar o transplante de órgãos ou tecidos do anencéfalo, desde que autorizado formalmente pelos pais, com antecedência de 15 dias do nascimento.

Alguns elementos da fundamentação daquela decisão do Conselho merecem ser destacados.

O CFM parte do entendimento de que os "anencéfalos são natimortos cerebrais, por não possuírem os hemisférios cerebrais." Entende que, diante de sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são a eles inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica.

Ademais, sustenta que a anencefalia é resultado de um processo irreversível e de causa conhecida, condição que corresponderia àquelas exigidas na Resolução CFM nº 1.480/97, que em seu artigo 3º, estabelece que "morte encefálica deve ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida".

O Conselho cumpriu seu papel de regulamentar a matéria, conforme disposição do art. 3º da Lei de Transplantes. Sua decisão mereceu, todavia, uma série de críticas, o que acabou por gerar um ambiente de grande insegurança entre os profissionais do setor.

Mesmo a coordenação nacional do sistema de transplantes não se mostrou suficientemente segura para aplicar a interpretação exarada pelo CFM. Muitos pais de crianças com diagnóstico de anencefalia, interessados em praticar o ato da doação de órgãos de seus filhos, não tiveram seu nobre desejo atendido, por excesso de precaução da Central de Transplantes.

Foi apenas após forte pressão da sociedade, nessa ordem de idéias, que o Ministério da Saúde decidiu autorizar um transplante de órgãos de anéncefalos, com base na Resolução do CFM, no conhecido caso do menino Artur.

Toda essa polêmica e insegurança indicam, de forma clara, a necessidade imperiosa de que se promova a adequada atualização das normas sobre transplantes de doação de órgãos.

A visão técnica e científica que balizou a interpretação da legislação em vigor, equiparando o diagnóstico de anencefalia ao diagnóstico de morte encefálica, parece-nos adequada e correta e deve servir de base para as mudanças que se pretende implementar.

Evidentemente, em tema tão complexo, que envolve questões de ordem cultural, ética, social, científica entre outras, sempre surgirão divergências. Temos, contudo, a convicção de que não se pode mais protelar uma definição legal sobre a matéria.

Nesse sentido que se apresenta o presente Projeto de Lei, que, com uma simples modificação do art. 3º da Lei de Transplantes, pretende encerrar a polêmica interpretativa sobre a possibilidade de os anéncefalos serem doadores.

Assim, a condição necessária para que se possa promover a retirada de órgãos, tecidos ou parte do corpo humano para fins de transplante passa a ser o diagnóstico ou de morte encefálica ou de anencefalia.

Entendemos ser desnecessária qualquer outra alteração na lei em vigor, porque as exigências já previstas, como as de autorização de familiares ou de regulamentação técnica pelo CFM, entre outras, mostram-se suficientes para garantir a necessária segurança no processo de doação de órgãos de anencéfalos.

Por tudo que se expôs, entendemos que a proposição que ora se submete a esta Casa cultiva os mais elevados valores de nossa sociedade. Será, sem qualquer dúvida, um grande momento de celebração da vida, da solidariedade e do amor ao próximo, razões que nos parecem fortes e suficientes para conclamar aos nobres Colegas a apoiarem a presente iniciativa.

Deputado MARCOS ABRAMO


Notas

1 Richard E. Behrman, Robert M. Kliegman e Hal B. Jenson, Nelson/Tratado de Pediatria, Ed. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.

2 Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 101.

3 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 281.

4 Doenças do recém-nascido, obra coletiva, Interamericana, 4ª ed., 1979, p.627.

5 BRUM, Eliane. Mulheres Pobres são impedidas de interromper gestações inviáveis por cruzada religiosa, Revista época, Edição 304.

6 Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 44.

7 CRITÉRIOS de vida e de morte. Boa Saúde. Disponível em: http://boasaude.uol.com.br/lib/ShowDoc.cfm?LibDocID=3172&ReturnCatID=1770. Acesso em: 19 set. 2006.

8 CRITÉRIOS de vida e de morte. Boa Saúde. Disponível em: http://boasaude.uol.com.br/lib/ShowDoc.cfm?LibDocID=3847&ReturnCatID=1511. Acesso em: 19 set. 2006

9 Tal nomenclatura induz a erro, já que encéfalo e cérebro representam estruturas corporais diversas, (fazendo a diferenciação destas estruturas ver FRANÇA, Genival Veloso de. Um conceito ético de morte. Disponível em: < http://www.geocities.com/CollegePark/Union/6478/conceitomorte.html>. Acesso em: 19 set. 2006.). Assim, usaremos somente a expressão morte encefálica.

10 O outro componente do sistema nervoso central é a medula espinhal. Formando o Sistema Nervoso periférico estão, citando de forma bastante simplificada, os nervos e os músculos. In: CHUDLER, Eric. Aventuras em neuroanatomia: as divisões do Sistema Nervoso. Disponível em: http://geocities.yahoo.com.br/neurokidsbr/Divisoes_do_SN.html. Acesso em: 29 set. 2006.

11 CHUDLER, Eric. Aventuras em neuroanatomia: as divisões do Sistema Nervoso. Disponível em: http://br.geocities.com/neurokidsbr/Divisoes_do_SN.html. Acesso em: 29 set. 2006.

12 A Resolução expressamente exclui a hipotermia e o uso de drogas depressoras do Sistema Nervoso Central como causas para a morte encefálica, conforme se verifica no Termo de Declaração de Morte Encefálica, a ser preenchido pelos médicos responsáveis pela declaração da morte e que consta como anexo à Resolução.

13 Mesmo não havendo qualquer tipo de definição jurídica do que possa ser entendido como vida o ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, positivou o conceito de morte, o que implica em grande avanço para o Direito, em especial o Biodireito.

14 Em verdade, há uma situação contraditória em nosso ordenamento jurídico: enquanto o conceito de morte encefálica é utilizado apenas para a permissão para a retirada de órgãos para transplante, o conceito de morte clínica é utilizado para a tipificação dos delitos contra a vida. Esta é uma contradição que precisa, urgentemente, ser sanada, já que o bem jurídico defendido em ambos os casos é o mesmo: a vida.

15 NARLOCH, Eliza Muto e Leandro. Quando a vida começa? Revista Super Interessante, Edição 219, página 62, Novembro de 2005.

16 Costa, S.; Diniz, D. Bioética: Ensaios. Letras Livres. Brasília. 2001.

17 Capez, F. Curso de Direito Penal. Vol. II. Editora Saraiva. São Paulo. 2003. pp. 107 e

Mirabete, J. F. Manual de Direito Penal. Vol. II. 23 ed. Editora Atlas S.A. São Paulo. 2005. pp. 93.

18 Junior, N. N.; Nery, R. M. A. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. Editora Revista dos Tribunais. 2 ed. São Paulo. 2003. pp. 8-9.

19 DANTAS, MOISÉS, CRISTINE ELAINE. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. São Paulo:Funpec Ed. Universidade de São Paulo – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Departamento de Ginicologia e Obstetrícia, 2005, p.14.

20 GOMES, Luiz Flávio. Nem todo aborto é criminoso. Disponível em: www.mundolegal.com.br/?FuseAction=Doutrina_Detalhar&did=1531, Acesso em:02 Novembro 2006.

21 GOMES, Luiz Flávio. Nem todo aborto é criminoso. Disponível em: www.mundolegal.com.br/?FuseAction=Doutrina_Detalhar&did=1531, Acesso em:02 Novembro 2006.

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22 MOISÉS DANTAS, Cristine Elaine et alli. Aspectos éticos e legais do aborto no Brasil. São Paulo: Funpec Ed. Universidade de São Paulo – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Departamento de Ginicologia e Obstetrícia, 2005, p. 20.

23 DOTTI, René Ariel. O aborto de uma tragédia. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5452>. Acesso em: 26 set. 2006.

24 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 2: parte especial: arts. 121 a 183. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2000. 629 p. p. 88

25 Número de ocorrências em busca realizada no www.google.com.br, em 14/08/2006, dos termos "anencefalia" e "aborto".

26 ESCOSTEGUY, Diego. O aborto em pauta. Revista Época, Edição 343, página 65, Dezembro de 2004.

27 NARLOCH, Eliza Muto e Leandro. Quando a vida começa? Revista Super Interessante, Edição 219, página 62, Novembro de 2005.

28 ANEXO A

29 FONTES, Leandro. O aborto terapêutico. JORNAL O ESTADÃO - Publicação de 14 novembro de 2002. p.8.

30 WHO – World Health Organization. World Atlas of Birth Defects. Disponível em <http://www.who.int/genomics/about/en/anencephaly.pdf>. Arquivo capturado em 11 de agosto de 2006.

31 Oliveira, Fátima."Interrupção de gestação: um direito". O Tempo, Belo Horizonte, 28/07/04

32 Código Civil Argentino, Artigo 70. Disponível em: <http://www.justiniano.com/codigos_juridicos/codigos_argentina.htm> Acesso em: 26 set. 2006

33 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasilia, DF: Senado Federal, 1988.

34 LILIE, Hans, Aborto eugenésico. em Biotecnologia y Derecho. Perspectivas en Derecho Comparado, Bilbao-Granada: Publicaciones de la Cátedra de Derecho y Genoma Humano, Editorial Comares, l996, p.175.

35 Alberto da Silva Franco. Anencefalia. Breves considerações medicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. Revista dos Tribunais n. 833. Março de 2005

36 O relato feito por uma juíza de direito brasileira sobre os agravos psíquicos sofridos por gestante portadora de feto anencéfalo e, publicado no editorial do Boletim do IBCCRIM( n. 145, Dez.2004) é extremamente expressivo e merece parcial transcrição: "Sou mãe (ou fui) de um bebê com esta deformidade. Soube disso no terceiro mês de gravidez (vinte anos atrás) e meu primeiro pensamento foi a interrupção. Consultei sobre o assunto o médico que acompanhava a gestação e ele deu uma resposta desconcertante: ‘Se você quiser abortar, indico-lhe um aborteiro porque sou um parteiro’. Isso me deu uma enorme sensação de culpa; me senti uma assassina e levei a gravidez a termo. Foram os piores anos de minha vida, pois uma das coisas mais importantes deste período é o vínculo de amor e carinho que nós estabelecemos com o ser que está ali dentro de nós. Só a mãe sabe como é esse sentimento. Durante os sete meses restantes, vivi brigando com tal sentimento que teimava em não ser indiferente, pois imaginava que, se conseguisse não estabelecer o vínculo, sofreria menos. Foi uma experiência que nenhuma mãe deseja viver". (...) " Minha filha tinha um rosto lindo, mas faltava o osso que reveste o cérebro, a anencefalia. Os pediatras aconselharam não alimentá-la para que o tempo de vida não se prolongasse" (...) "Não tive condições psicológicas de cuidar de minha filha; ela viveu cinco dias porque minha sogra desobedeceu à recomendação médica e a alimentava. Entretanto, segundo me informou, era visível o desconforto da criança que não tinha ânimo nem para chorar; esboçava uma gesticulação intermitente e desconexa. Aí se foram as duas primeiras oportunidades de ter um filho. Insisti numa terceira gravidez" (...) " e nesta não conseguia acreditar que tudo estava bem e, novamente, me esforcei

para não amar tanto o meu filho. Não comprei uma fralda; não fiz o enxoval e nunca me dirigi ao feto com medo de mais uma perda. Eu sabia que não suportaria. Graças a Deus, tudo deu certo".(...) " Por tudo isso que acabo de testemunhar – e é a primeira vez que tenho coragem de fazer isso – peço que ajudem muitas mulheres a se darem a si próprias a oportunidade de ter um filho saudável – com vida–.pois não se pode falar em vida do anencéfalo. Que vida? Somente intra-uterina".

37 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito, 5ª edição, Saraiva: São Paulo - SP 2003

38 Artigo 3º da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. 

39 Abramo, Marco Projeto de Lei No 6599/06, de 2006

40 PESSINI, Léo, BARCHIFONTAINE, Chistian de Paul. Problemas Atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 2000, p. 213.

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Sobre a autora
Letícia Gomes Cordeiro

bacharel em Direito em Vitória (ES)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDEIRO, Letícia Gomes. A antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1412, 14 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9875. Acesso em: 26 abr. 2024.

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