Resumo: O tema dos meios adequados de solução de conflitos e dos modelos multiportas no Direito é bastante presente em nossa sociedade, mas, por vezes, parece ser tratado à revelia da literatura jurídica. Este trabalho atribui especial aos chamados meios autocompositvos, a fim de oferecer-lhes conteúdo jurídico, com base, especialmente, nas lições do Professor Luis Alberto Warat.
Palavras-chave: Meios adequados de solução de conflitos. Direito e linguagem. Acordo.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho corresponde a uma tentativa de trazer à discussão dos chamados meios (ou métodos) adequados (ou alternativos) de solução de conflitos, mais precisamente aos métodos conhecidos como autocompositivos, uma visão jurídica, sobretudo, com base na fantástica obra de Luis Alberto Warat. Tal qual faz a tecnologia, a autocomposição não pediu licença para entrar; simplesmente chegou. Por mais de duas décadas a doutrina debruça-se sobre o que costumava chamar de meios alternativos de solução de conflitos, referindo-se àqueles como alternativas à lide judicial, porém parece ainda faltar uma conexão entre os diversos elementos que constituem uma autocomposição genuína e legítima ao olhar da sociedade. Afinal, o que conecta um meio autocompositivo, como a mediação e a conciliação, com a legitimidade social? A resposta trazida por Warat nos anos 90 do século passado parece estar na conexão entre o Direito e a linguagem, mas desta vez aplicada ao acordo realizado organicamente, no seio da sociedade, pelos próprios cidadãos, ainda que a própria noção de cidadania venha assumindo outros significados. Se diz a Constituição brasileira que todo o poder emana do povo, cabe a este definir o melhor meio ou processo desejado com o fim de resolver cada conflito, como forma de exercício de sua cidadania, e porque não dizer como forma de compartilhar as melhores qualidades de seus indivíduos, como a alteridade, a capacidade de colocar-se no lugar do outro em situações que considere incomuns, a aceitação, o consenso, o acordo. Não esqueçamos que a liberdade e a justiça, dentre outros, são valores supremos na busca de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, baseada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias. Liberdade e justiça são valores supremos e, portanto, não podem ser tolhidos por normas ou estruturas criadas exatamente com a justificativa de prover a liberdade e a justiça. Se essas estruturas demonstraram-se, ao longo do tempo, insuficientes à satisfação dos valores mais básicos da sociedade e, especialmente, à satisfação dos fundamentos de existência do governo prescrito pela Lei Maior, faz-se necessário dizermos que nasce um anseio: o desejo do acordo.
É a própria Constituição que demanda o direito ao acordo, e talvez pela primeira vez em nossa curta história dita democrática, temos a oportunidade de, organicamente, praticarmos uma tentativa de democracia não degenerada. Vejamos, assim, as bases do acordo dirigidas pelo Direito e pela linguagem. Apesar da abordagem por vezes genérica e abstrata, observaremos mais atentamente o direito básico ao acordo, com foco na mediação, considerando tratar-se da forma de acesso à justiça mais próxima da população. Aliás, o que temos por justiça? Fica clara a necessidade de inicialmente esclarecermos alguns termos e definições, como acordo e justiça. De posse dessas definições, poderemos trabalhar, ou melhor, tecer as primeiras linhas sobre o acordo e suas relações com o Direito e a linguagem. Em conclusão, apresentaremos uma conjunção das ideias para a efetiva e justa aplicação dos meios de solução de conflitos no Direito brasileiro, com o intento de alcançarmos os ideais de justiça e liberdade e o objetivo fundamental de promover o bem de todos, seja através da jurisdição estatal ou do acordo pacífico promovido pelos particulares.
2 NOÇÕES SOBRE ACORDO E JUSTIÇA
Cabe, em primeira definição, observarmos que acordo não implica em desfiguração da verdade. A verdade, aqui tomada como a consciência da realidade observada dos fatos, é o único meio para que se solucione um conflito que exista no mundo real, no mundo sensorialmente perceptível. Afinal, se não existissem fatos verdadeiramente observáveis, tampouco existiriam divergências e conflitos, exceto imaginários, que, por sua vez, não poderiam ser resolvidos pelo Direito. É consequência disso que o acordo pode resolver mais que o Direito, pois também tem o poder de resolver os conflitos imaginários, especialmente aqueles tomados pela emoção. Em verdade, a conversa, a escuta, a empatia têm esse poder, sendo o acordo apenas o resultado de um procedimento que traga o conflito de volta à realidade, se em outro lugar estiver. O entendimento sobre os desacordos significativos, nos termos de Warat, tem fundamental relevância nesse procedimento (WARAT; ROCHA, 1995, p. 74):
Existem dois tipos de desacordos significativos: de fatos e de valores. Assim, pode-se discutir se ocorreu ou não um fato (desacordo de fatos); ou, ainda, discutir a valoração do sucedido (desacordo de valores). Por outro lado, também pode haver um desacordo total sobre o que sucedeu e sobre a valoração do sucedido. O desacordo sobre fatos tende a ser superado através de processos de verificação. O desacordo sobre valores exige processos de persuasão, tendemos à obtenção da mudança de ponto de vista do interlocutor. Para isso, recorre-se frequentemente a certos efeitos denotativos. Assim, certos dados fáticos são apresentados através de um conjunto selecionado de termos, mediante o qual as cargas emotivas deixam ao receptor aparência de uma inquestionabilidade da decisão valorativa. A disputa sobre valores apresenta-se fetichizada (os valores travestidos como disputas sobre dados fáticos, mas solucionáveis através de técnicas de verificação). Existe um efeito de referência obtido graças à postura, de longa tradição na filosofia, de que o significado de todos os termos sempre encontra-se determinado pela realidade. Desta forma, os valores podem ser apresentados como os dados essenciais das coisas do mundo e, portanto, inquestionáveis. As normas de justiça constituem um exemplo claro de juízos de valor substancializados, para a superação de conflitos decisórios ou de desacordos sobre os conteúdos das formas do direito positivo.
Na aplicação do acordo ao Direito ou do Direito ao acordo, mostra-se desafiante questionarmos se o processo judicial tem como objetivo a verdade inquestionável ou se apenas a melhor aplicação da justiça ao caso concreto, mediante princípios, normas e regras, que nada mais são que padronizações, simplificações da realidade na busca pelo justo. Não diferente é um meio, processo ou procedimento de acordo ou consensual (há dúvidas sobre o bom uso do termo consenso). O que se busca é a melhor aplicação da justiça ao caso concreto, mesmo que a verdade não possa ser alcançada ou pronunciada na sua integralidade. Sob a tutela jurisdicional estatal, o juiz é compelido a aplicar o Direito ao mesmo tempo em que é um ser humano com as suas falhas de percepção da realidade e das emoções e sentimentos que permeiam o conflito. O juiz ou os acordantes, mediados ou não, objetivam o equilíbrio entre os direitos de cada participante, mesmo que não se alcance a verdade dos fatos ou o acordo das valorações. Aqui firmamos posição de que não se chega à justiça, especialmente, de forma harmoniosa, se ignorarmos os preceitos morais que sempre permearam a sociedade, especialmente no mundo ocidental. A tentativa de relativização dos valores que formaram toda uma identidade civilizatória deve ser descartada na formação de um acordo. Não será o acordo o resultado da criação artificial de um ambiente propício à promiscuidade, mas pelo contrário, será o campo para a manifestação da bondade, da caridade e do amor ao próximo, tornando possível um acordo que implique em resultado de perda ou de sentimento de perda de algo inicialmente posto em conflito. O enclausuramento dos meios adequados de solução de conflitos pelo Estado, como temos visto, mitiga o verdadeiro acordo, e a sua imposição, fere-o irremediavelmente.
A justiça é ainda mais crítica na medida em que não tem sido tomada como elemento central no Direito contemporâneo, ainda que muito presente em nossas vidas e em nosso imaginário. Como justiça é tema amplo, tratada por milênios por autores que mudaram a civilização humana através da filosofia, iniciamos pelas palavras de Aristóteles, possivelmente o maior pensador da história humana (ARISTÓTELES, 2014, p. 179-181):
Notamos que todos entendem por justiça aquele estado que torna os indivíduos predispostos a realizar atos justos e que os faz agir justamente e desejar aqueles atos; e, analogamente, por injustiça o que torna os indivíduos predispostos a agir injustamente e desejar os atos injustos. [...] se uma de duas palavras é utilizada em múltiplos sentidos, segue-se, em termos gerais, que a outra é utilizada também em múltiplos sentidos por exemplo, se justo tiver mais de um sentido, o mesmo ocorrerá com injusto e injustiça. Parece que os termos justiça e injustiça são empregados em múltiplos sentidos, mas como sua homonímia apresenta estreita conexão, o homônimo não é percebido; diferentemente, no caso se coisas largamente distintas, designadas por um nome idêntico, o homônimo relativamente se destaca, por exemplo (sendo a diferença considerável do ponto de vista da forma externa), o uso homônimo da palavra kleis para indicar tanto o osso da base do pescoço do animal quanto aquilo com o que trancamos as portas. Vamos apurar em quantos sentidos diz-se de um indivíduo ser ele injusto. Ora, o termo injusto é tido como indicativo tanto do transgressor da lei quanto do indivíduo que quer mais do que aquilo que lhe é devido e o indivíduo não equitativo. Diante disso, é evidente que o indivíduo que obedece à lei e o indivíduo equitativo serão ambos justos. O justo, portanto, significa o legal e o igual ou equitativo, e o injusto significa o ilegal e o desigual ou não equitativo. [...] O indivíduo injusto, porém, nem sempre escolhe a maior porção; pelo contrário, das coisas que, exprimindo-nos em termos absolutos, são más, escolhe a menor porção; mas, não obstante isso, sua ação é tida como cúpida, porque o menor entre dois males parece, em certo sentido, ser um bem e agir com cupidez (tomar mais do que lhe é devido) significa tomar mais do que é devido do bem. Adicione-se ser ele não equitativo, termo que é tanto inclusivo quanto comum a ambas essas coisas. Por outro lado, a julgarmos que o transgressor da lei é injusto e aquele que obedece, justo, evidencia-se que todas as coisas lícitas são coisas justas, pois aquilo que é legal é decidido pela legislação e consideramos justas as decisões desta. Ora, todas as promulgações da lei objetivam [...] o interesse comum de todos, [...] de sorte que, em um de seus sentidos, justo significa aquilo que produz e preserva a felicidade e as partes componentes desta da comunidade [...].
Temos que o acordo deve chegar à justiça, assim entendida como a comunhão entre o justo e o legal. Os atos justos e equitativos são, ainda hoje, os conceitos formadores do ideal de justiça almejado pela sociedade, mesmo sob uma forma de governo que tende a degenerar-se, como a democracia. A lei deve refletir o justo ao mesmo tempo em que a justiça deve ser encontrada na lei e somente dessa forma poderemos alcançar o interesse de todos. Só se chega ao acordo através da noção de justiça, insculpida em nossas almas desde a mais tenra idade, antes mesmo de sabermos o que significa. O acordo válido pressupõe a justiça, o cumprimento da lei por acordantes equitativos.
3 O DIREITO AO ACORDO
O acordo tende a ser libertador, o que traz questionamentos quanto à conexão efetivamente desejada. Temos que o acordo não pode transgredir o Direito posto. Assim fosse, seria retroagir, seria ignorar a tradição de esforço pela civilidade, pois, afinal, as leis nada mais são que elementos pacificadores, ou pelo menos, que intentam uma pacificação, ainda que sua eficiência não seja a esperada pela sociedade em que se inserem. Não obstante, a inexistência das leis teria o poder de trazer a desordem ao mundo moderno, já tão abalado por consciências vazias. Os conflitos sempre existirão, estão na essência de cada ser humano, e a inexistência de um parâmetro comum amplificá-los-ia, traria o caos a uma tentação de caos já existente. Esse parâmetro, no caso do acordo, é a lei, a lei aplicada com prudência. A dificuldade é chegar a um acordo que respeite o parâmetro legal e atenda as vontades dos acordantes, diante dos desacordos manifestados e não manifestados, como trata Warat sobre a mediação (WARAT, 2018, p. 24):
Nos litígios, os juízes decidem atendendo às formas do enunciado pelas partes [...] e não às intenções [...] dos enunciantes. Nem sempre o que eu digo revela o que eu quero. Muitas vezes o que eu digo esconde o que eu quero. [...] Nas mediações, tenta-se ajudar as partes a descobrirem suas intenções (ou as intenções da outra parte) além das formas do enunciado [...] no conflito. As partes, mais do que frequentemente se imagina, não conhecem suas próprias intenções, perdem-se nas formas dos seus próprios enunciados; são as armadilhas do inconsciente que o mediador deve ajudá-las a trabalharem. Em todo sentido enunciado existe um dito e um não dito (a negatividade do enunciados); conheceremos pouco de sentido se permanecemos simplesmente no nível do sentido manifestado. Na mediação é fundamental trabalhar os não ditos do sentido; estes expressam o conflito com maior grau de riqueza. Os detalhes de um conflito detalham revelam-se muito mais pelo não-dito do que pelo expressado. Não podemos esquecer que a mediação se realiza sempre pela percepção e pelo trabalho que se pode realizar em relação a infinitos detalhes.
O acordo legalmente autorizado será assim a própria manifestação da vontade popular inscrita constitucionalmente. O Princípio da legalidade, insculpido no inciso II do artigo 5º da Carta Magna, traz a autorização para a equalização entre o acordo e o Direito, como explica Carlos Henrique Machado no estudo aplicado ao Direito Tributário (MACHADO, 2021, p. 153):
[...] existe uma perfeita compatibilidade entre os métodos adequados (ou não convencionais) de resolução das controvérsias tributárias e o primado da legalidade, na medida em que é o próprio comando normativo, fruto do desígnio parlamentar, que está a autorizar a adoção de diferentes caminhos resolutivos. [...] o princípio da legalidade não mais repele, modernamente, a existência de espaços normativos delimitados e dentro dos quais reside uma margem para a atuação colaborativa dos sujeitos envolvidos na tributação. Trata-se de uma performance administrativa concertada e tendente a definir precisamente os elementos ambíguos e valorativos da norma jurídico-tributária, além das estimativas imprecisas da relação jurídico-obrigacional tributária, afastando as imposições unilaterais e autoritárias por parte da administração pública [...] Os métodos adequados de resolução de conflitos em matéria tributária propõem visibilizar a participação cidadã na pacificação social, notadamente no campo da fiscalidade, com a observância dos marcos legislativos, de modo que somente reforçam o princípio da legalidade, e não ofendem. Significa dizer que a legalidade, em viés amplo, impõe que a administração atue em conformidade com os critérios autorizados pela legislação tributária, ainda que permitida alguma intervenção mais efetiva por parte dos sujeitos passivos; e, num sentido estrito, implica tipificar os elementos normativos da exação tributária com maior ou menor dose de discricionariedade, indeterminação, ambiguidade ou vagueza, legitimadora da atuação concertada no processo de aplicação da lei de incidência. A lei tributária, quando concretizada de forma unilateral e impositiva, não permite o desejável e necessário diálogo entre os sujeitos envolvidos na relação jurídica, a fim de fazer prevalecer o almejado conteúdo substancial do enunciado normativo, notadamente se existe alguma margem para a interpretação.
Sem adentrarmos cada dispositivo constitucional aplicável à temática do acordo, não vislumbramos na Lei Maior norma impeditiva à validação dos meios autocompositivos de solução de conflitos. Assim, pode-se alcançar a validade desses meios, exemplificativamente, no Princípio do acesso à justiça ou Princípio da inafastabilidade da jurisdição, trazido pelo inciso XXXV do artigo 5º da Constituição de 1988: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Ora, o indivíduo está diante de um direito fundamental e não de uma obrigação fundamental. Cabe a cada cidadão, dentro do Estado Democrático de Direito enunciado pelo artigo 1º da Constituição, exercer a sua liberdade e a sua cidadania de forma democrática, pacífica e organizada, como na opção pelo acordo em detrimento da tutela judicial estatal. Warat já nos oferecia esse ensinamento (WARAT, 2018, p. 18-19):
É importante considerar que as práticas sociais da mediação configuram-se em um instrumento de realização da autonomia, da democracia e da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisão sem intervenção de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito. Falar de autonomia, de democracia e de cidadania, em um certo sentido, é ocupar-se da capacidade das pessoas para autodeterminarem-se em relação e com os outros; autodeterminarem-se na produção da diferença (produção do tempo com outro). A autonomia como uma forma de produzir diferenças e tomar decisões com relação à conflitividade que nos determina e configura, em termos de identidade e cidadania. Um trabalho de reconstrução simbólica dos processos conflitivos das diferenças que nos permite formar identidades culturais, _de nos integrar no conflito com o outro_, com um sentimento de pertencimento comum. Uma forma de poder perceber a responsabilidade que toca a cada um num conflito gerando devires reparadores e transformadores.
São diversas as autorizações infraconstitucionais voltadas aos meios autocompositivos, a destacar-se o parágrafo 3º do artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015: A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Embora seja dispositivo orientado ao Processo Civil, a inclusão de outros meios de solução de conflitos à concepção de jurisdição em tão importante legislação nacional, impulsionou a sua aplicação, como já visto em outros países. Em nível nacional podemos também citar a Lei nº 13.140/2015, que trata da mediação e da autocomposição. A questão mostra-se bastante dinâmica no Direito Tributário, como podemos observar da lei da transação tributária de Blumenau/SC, publicada em 2017, e da lei da mediação tributária de Porto Alegre, publicada em 2022.
4 A LINGUAGEM DO ACORDO
A solução da conflitividade (termo já usado por Warat), através de meios de troca de sentidos encontra resistência quando se pensa na linguagem a ser utilizada, ainda que isso seja pouco admitido. Afinal, que linguagem melhor aproxima as pessoas que já se encontram em um conflito, de forma a trazê-las a um lugar comum, ainda que não se tenha a certeza de uma conclusão acordante? Precisamos trabalhar os usos da linguagem para melhor entender como utilizá-la para o bem de todos, para a solução dos conflitos. Novamente trazemos as palavras de Warat (WARAT, 1995, p. 65):
Indagar sobre um uso linguístico ou modo de significar é realizar uma análise das alterações significativas que as palavras sofrem no processo de comunicação. Os significados socialmente padronizados possuem sentidos incompletos; são expressões em aberto, que apenas se tornam relativamente plenas em um contexto determinado. Assim, é impossível analisar o significado de um termo sem considerar o contexto no qual se insere, ou seja, seu significado contextual. Desta forma, um termo possui dois níveis básicos de significação: o significado de base e o significado contextual. O primeiro é aquele que reconhecemos no plano teórico quando abstraímos a significação contextual e consideramos o sentido congelado, a partir dos elementos de significação unificados por seus vínculos denotativos. O segundo pode ser entendido como o efeito de sentido derivado dos processos efetivos da comunicação social. [...] O sentido gira em torno do dito e do calado. Desta forma, o êxito de uma comunicação depende de como o receptor possa interpretar o sentido latente.
A ideia de Warat aplica-se perfeitamente aos processos de solução de conflitos que se pautem pela oralidade, como no caso da mediação. Ao enunciar ao outro seu conflito, um mediando permitirá uma lacuna, um não-dito, pelo bem maior de pacificidade na solução do conflito, não só com o outro, mas consigo. A proposição, característica do proativo, é bem-vinda neste cenário. Talvez contrariamente ao senso comum, temos que determinado uso premeditado da linguagem não contribuirá para a interpretação de um enunciado na busca de um acordo. Se um dos acordantes intenta o uso de enunciados, por exemplo, eivados de ideologia, a fim de obter a vitória, certamente está no processo errado e seria aconselhável procurar uma via mais litigiosa, como a judicial estatal. O significado emitido pelo emissor deve ser compreendido pelo receptor. Certamente nem sempre essa comunicação é efetiva, pelo fato de que o signo não é capaz de reproduzir integralmente o seu significante (ou referente). O enunciado é uma simplificação, uma padronização, um início comunicativo do que se quer comunicar. Uma mensagem pode não ser completa, o que não autoriza a sua compreensão de qualquer forma; um enunciado tem um significado (e um significante), ainda que não se consiga emiti-lo integralmente em função das próprias limitações humanas. Uma palavra pode ter um significado diferente quando enunciada separadamente e quando inserta num contexto, mas seu significado terá limites, tanto num quanto noutro caso. Queremos chegar, efetivamente, no significado que o emissor buscou enunciar, não cabendo a cada receptor (re)interpretá-lo como quiser. A conexão entre signo e significante carrega paz e ordem, até porque na ausência de ordem é difícil falarmos em acordo; a estabilidade, oriunda da ordem, permite a existência do acordo. Para que não nos iludamos com teses que propagam a ausência do referente no discurso, há que se observar onde e no que, no mundo real, o signo é encontrado, verificado, e não somente ligá-lo a um significado, que pode ser alterado pela manipulação. Também o tempo da linguagem parece-nos essencial no intuito do acordo, como enfatiza Leonel Severo Rocha, referindo-se ao processo de mediação (ROCHA; GUBERT, 2017):
A mediação não estaria voltada para a necessária obtenção de um acordo ao final de um prazo pré-estipulado. Sua função seria possibilitar o direito a dizer o que nos passa, ou uma procura do próprio ponto de equilíbrio e do ponto de equilíbrio com os outros. Dessa forma, a função do mediador será a de ajudar as partes a ouvir uma linguagem mais apropriada para esta expressão. A linguagem, nesse cotejo, possuiria uma dupla função ou intenção. Uma primeira, seria a linguagem da prosa fática, empregada nos conceitos, nos pensamentos, no ego e nas verdades racionais. Esta seria a linguagem da ciência, sem dúvida meritória, e da qual o mundo não pode prescindir. No entanto, esta não pode ser a linguagem objetivo da vida quando abrimos nossos corações para tentar elucidar o que está oculto em nós e dificilmente pode ser nomeado. Para esta expressão, existe uma outra linguagem, a da poesia. Esta segunda é a linguagem que faz a comunicação com as reservas selvagens, com o inconsciente e com o mundo dos afetos. A função do mediador é auxiliar as partes a ouvir e a expressar essa segunda forma de linguagem. O tempo da mediação também é algo a ser considerado. Na visão waratiana a mediação é um processo de sensibilidade que institui um novo tipo de temporalidade, de fazer do tempo um modo específico de autoalteração. É o tempo que não pode ser preestabelecido em igual medida para todos, nem medido cronologicamente, pois cada um possui o seu processo de descoberta da singularidade.
A linguagem do acordo deve veicular a mútua apresentação dos sentimentos efetivamente sentidos no conflito dentro de um ambiente juridicamente válido. Nisso, o mediador, amplamente defendido por Warat, tem papel de ordenador do procedimento, não enquanto emissor de ordens, mas de organizador dos sentidos, manifestados ou não. Essa não é tarefa simples, tanto que o mestre argentino abordou-a em várias obras. Podemos dizer que no momento evolutivo da sociedade em que nos encontramos, o acordo diretamente realizado pelos particulares, sem a participação de um terceiro (supostamente neutro) não é viável. Talvez cheguemos nesse objetivo, mas por enquanto aquele que vê de fora o conflito é figura indissociável do procedimento que vise um acordo, o que evidencia a vantagem do uso do mecanismo da mediação na solução de conflitos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os vários aspectos a serem observados na aplicação dos meios adequados de solução de conflitos, o Direito e a linguagem são parâmetros fundamentais para o sucesso da missão. O acordo passa pelo entendimento do conflito e dos desacordos, pela transmutação do imaginário conflitante a um plano racional e consciente, pela observação das diretrizes legais e, especialmente, pela ética e pela justiça do mundo real, sensível, perceptível, observável, verificável. Temos que não deve existir acordo fora do Direito, assim como o Direito não deve impedir a feitura de um acordo. A Constituição de 1988 não apresenta obstáculos à validade do procedimento particular de acordo, bem como a legislação infraconstitucional autorizativa começa a espalhar-se no Brasil, embora sua aplicação tenha ocorrido com pouca base teórica e mesmo com nomenclaturas conflitantes (irônico!). A linguagem traz a expressão do conflito e seu entendimento auxilia no intento da resolução. O acordo não será uma vitória como o resultado de um jogo de palavras dissociadas da realidade, mas uma espécie de consenso do bem de todos, sobre o bem e a justiça possíveis, como uma espécie de elevação intelectual voltada ao bem da comunidade. O uso e o tempo da linguagem são ferramentas a serem aplicadas visando o bem e a virtude, para a evolução da sociedade. Embora as ideias abordadas neste trabalho sejam introdutórias, temos que, se desenvolvidas e aplicadas com sinceridade, trarão maior conteúdo jurídico aos meios de solução de conflitos.
REFERÊNCIAS
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BLUMENAU. Lei nº 8.532, de 13 de dezembro de 2017. Dispõe sobre transação de créditos tributários e não tributários do município de blumenau objeto de execução fiscal ajuizada até 31.12.2018 ou de litígio judicial, nas hipóteses que especifica, e dá outras providências. Disponível em: <http://leismunicipa.is/vpgit>. Acesso em: 22 jul. 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 22 jul. 2022.
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BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2º do art. 6º da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm>. Acesso em: 22 jul. 2022.
MACHADO, Carlos Henrique. Modelo multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
PORTO ALEGRE. Lei nº 13.028, de 11 de março de 2022. Institui a Mediação Tributária no Município de Porto Alegre, cria a Câmara de Mediação e Conciliação Tributária da Secretaria Municipal da Fazenda (CMCT/SMF), vinculada à estrutura da Superintendência da Receita Municipal na SMF, e altera a Lei nº 12.003, de 27 de janeiro de 2016 - que institui a Central de Conciliação e dá outras providências, criando a Câmara de Mediação e Conciliação Tributária da Procuradoria-Geral do Município (CMCT/PGM) e a incluindo no rol das Câmaras da Central de Conciliação. Disponível em: <http://leismunicipa.is/zwqga>. Acesso em: 22 jul. 2022.
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