Resumo: A partir do conceito de ordem administrativa militar e dos parâmetros da Lei nº 13.869/2019 para a sujeição ativa nos crimes de abuso de autoridade, conclui-se que estes crimes, quando praticados por agente público vinculado à Administração Militar, sempre atentará contra (mas não só) a ordem administrativa militar. Dessarte, a sujeição ativa nos crimes militares por extensão de abuso de autoridade, na órbita federal, não é restrita aos militares federais da ativa, podendo abarcar: qualquer agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal (AdmMF), com tipicidade mediata pelo art. 9º, III, do CPM; outros civis que atuem em concurso com um agente público vinculado à AdmMF - com a ressalva de que, se esse civil for um agente público e sua conduta tiver relação com as suas atribuições funcionais, praticará crime autônomo de abuso de autoridade, o qual poderá ou não ser um crime militar; militares inativos, se empregados na AdmMF (ex: PTTC) ou se atuarem em concurso com um agente público vinculado à AdmMF; militares estaduais, se empregados na AdmMF, se atuarem em concurso com um agente público vinculado à AdmMF, ou ainda se atuarem sob comando de autoridade militar federal. Por fim, quando houver civil no polo passivo da ação penal militar pela prática de crimes militar por extensão de abuso de autoridade, na órbita federal, será fixada a competência monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar (art. 30, I-B, da LOJMU), sendo irrelevante a presença ou não de militares no polo passivo deste processo.
Palavras-chave: Crime militar por extensão. Lei de abuso de autoridade. Justiça Militar da União. Sujeição ativa. Competência monocrática.
Sumário: 1. Introdução 2. O sujeito ativo na Lei de Abuso de Autoridade 3. O crime militar por extensão de abuso de autoridade 3.1. Os crimes militares por extensão (ou extravagantes) 3.2. A ordem administrativa militar e os crimes de abuso de autoridade 3.3 Sujeito ativo no crime militar por extensão de abuso de autoridade perante a Justiça Militar da União 3.3.1. Militar federal da ativa 3.3.2. Agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal 3.3.3. Demais sujeitos civis (agentes públicos ou não) 3.3.4. Militar federal inativo 3.3.5. Militar estadual 3.4. Competência 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A Lei nº 13.491/2017, ao alterar o inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, criou os crimes militares por extensão (ou extravagantes), entendidos como aqueles previstos apenas na legislação penal comum, mas que serão qualificados como crimes militares se praticados em uma das circunstâncias previstas nos incisos II ou III do art. 9º do CPM.
Dentre os diversos crimes militares por extensão, estão aqueles previstos na nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019). Considerando que a Lei nº 13.491/2017 e a Lei nº 13.869/2019 são recentes, ainda há diversas questões em discussão no âmbito doutrinário, dentre elas a sujeição ativa nos crimes militares por extensão de abuso de autoridade no âmbito da Justiça Militar da União, assim como a competência do órgão de 1º grau para o processamento e julgamento desses delitos.
2. O SUJEITO ATIVO NA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
A sujeição ativa nos crimes da Lei nº 13.869/2019 é ditada pelo seu art. 2º:
CAPÍTULO II
DOS SUJEITOS DO CRIME
Art. 2º É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a:
I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
II - membros do Poder Legislativo;
III - membros do Poder Executivo;
IV - membros do Poder Judiciário;
V - membros do Ministério Público;
VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.
Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.
A definição de agente público, para fins da Lei de Abuso de Autoridade, é bastante ampla. Todavia, Renato Brasileiro[1] ressalta que o diploma não faz referência, como o faz o Código Penal comum, em seu art. 327, §1º, ao "funcionário público por equiparação", assim compreendido como aquele que exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da administração.
Por conseguinte, em função do princípio da especialidade (lex specialis derogat generali) e da vedação à analogia in malam partem, tal conceito não pode ser aplicado à nova Lei de Abuso de Autoridade. Configura-se uma situação inusitada: o indivíduo que exerce uma função numa empresa contratada para a execução de atividade típica da Administração Pública (ex: coleta de lixo) é considerado funcionário público no tocante aos crimes contra a Administração Pública, podendo praticar delitos como peculato e corrupção passiva, mas não poderá praticar, a priori, os crimes da Lei de Abuso de Autoridade.
Entretanto, ser um agente público não é suficiente para praticar tais crimes. É necessário também que a conduta abusiva desse agente se dê no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las e esteja animada por finalidades específicas (elementos subjetivos especiais do tipo). Tais critérios são detalhados no art. 1º da lei, que acaba por restringir a amplitude do art. 2º:
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.
Frisa-se não ser necessário que a conduta seja contemporânea ao exercício efetivo da função. Será possível a configuração da infração penal especial ainda que o agente se encontre licenciado, em férias ou não tenha assumido o cargo, mas já tenha sido, por exemplo, aprovado no concurso público ou nomeado formalmente para exercer determinada função.
Não obstante, é imperioso que o sujeito ativo goze do status de agente público, nos termos do art. 2º da Lei nº 13.869/2019. Dessarte, o funcionário público aposentado não é abrangido pela definição ofertada pela lei, vez que, à época do delito, já havia se desvinculado funcionalmente da Administração Pública.
Ademais, deve restar caracterizada a correlação entre a conduta abusiva e as funções desempenhadas pelo agente. Se a conduta for praticada com total desvinculação em relação às suas funções, em ato ligado essencialmente à vida privada do agente, não haverá abuso de autoridade.
No âmbito do direito penal militar, Cícero Coimbra sugere que a expressão "no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las" (art. 1º, caput, da Lei nº 13.869/2019) seja interpretada utilizando-se como parâmetro a alínea c do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, a qual menciona a situação do militar "em serviço ou atuando em razão da função"[2].
A locução "em serviço" se refere ao militar no desempenho de funções atreladas à instituição militar em que serve. Compreende não só o serviço próprio da instituição militar, mas todo serviço em que a instituição deposite em seu agente a confiança de executá-lo. Abrange, por exemplo, a situação do oficial no exercício de função de assessoria em um órgão civil. Assim, estar "em serviço" é mais amplo que exercer função de natureza militar, que seria aquela essencialmente beligerante ou ligada à atividade-fim da instituição militar. Ressalta-se que o art. 15, §7º, da Lei Complementar nº 97/1999 elenca uma série de atividades das Forças Armadas que devem ser consideradas "atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição".
O militar que está "atuando em razão da função", por sua vez, é aquele que não está em serviço (ex: folga, férias), mas age em razão de seu ofício ou em razão do dever jurídico de agir. Prescreve o art. 243 do Código de Processo Penal Militar que qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito. Para militares federais, o dever de realizar a prisão em flagrante será, a priori, limitado aos crimes militares de competência da Justiça Militar da União. Deve-se frisar que esta atuação do militar não pode visar a um interesse próprio, à autodefesa ou à proteção pessoal ou patrimonial de um empregador, por exemplo. Afinal, trata-se do exercício de um dever, e não de um direito[3].
Especificamente em relação à expressão "a pretexto de exercê-la", Coimbra pontua que a hipótese estará presente sempre que o agente, ao agir, invoque o cargo ou função, ocasião em que se instrumentará com os poderes e prerrogativas que o cargo ou função lhes conferem[4], ainda que esta atuação seja indevida.
3. O CRIME MILITAR POR EXTENSÃO DE ABUSO DE AUTORIDADE
3.1. Os crimes militares por extensão (ou extravagantes)
O constituinte originário não definiu o conceito de crime militar. Ao estabelecer que à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei (art. 124 da CF/88), remeteu o encargo à legislação ordinária.
A matéria foi disciplinada pelo Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969), sendo elencados, nos seus arts. 9º e 10, respectivamente, os crimes militares em tempo de paz e os crimes militares em tempo de guerra. Adotou-se, portanto, o critério ratione legis para a definição de crime militar[5].
É recorrente na jurisprudência a afirmação de que a Justiça Militar da União detém competência para julgar os crimes militares", e não os crimes dos militares, sendo importante tal distinção. Nesse sentido:
A competência da JMU não se limita, apenas, aos integrantes das Forças Armadas, nem se define, por isso mesmo, "ratione personae". É aferível, objetivamente, a partir da subsunção do comportamento do agente - inclusive do civil - ao preceito primário incriminador, consubstanciado nos tipos penais definidos em lei (o Código Penal Militar - CPM). O foro especial da JMU inexiste para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos de natureza militar.
(STM, Habeas Corpus nº 0000193-37.2014.7.00.0000, Relator Ministro Fernando Sérgio Galvão, julgado em 19/12/2014, publicado em 09/02/2015)
A partir dos arts. 9º e 10 do CPM, constata-se haver expressa previsão legal de que tanto militares (da ativa ou inativos) quanto civis podem cometer crimes militares. Daí a conclusão de que a Justiça Militar da União tem competência para julgar militares ou civis, desde que cometam crimes militares. Afinal, a competência da JMU é estabelecida na Constituição a partir de um critério ratione materiae, e não ratione personae. É dizer, importa estar presente a natureza militar da infração penal, sendo irrelevante, a priori, o sujeito que a comete.
Na esteira de Ronaldo Roth[6], ao alterar a redação do inciso II do art. 9º do CPM, a Lei nº 13.491/2017 alargou a definição de crime militar para albergar figuras típicas inexistentes no CPM, mas existentes na legislação penal comum, quando praticados pelos militares federais e por civis, quando se trata da competência da Justiça Militar da União (JMU), e pelos militares estaduais, no âmbito da competência da Justiça Militar Estadual (JME). São os crimes militares por extensão ou extravagantes[7].
Há muito, a área jurídica militar ficou a reboque da legislação comum. Enquanto os crimes comuns eram crescentes, com novas figuras penais na legislação penal comum (por exemplo: abuso sexual, crimes cibernéticos, crime organizado, crimes do estatuto do desarmamento, crimes contra crianças, adolescentes e idosos etc.), de forma atualizada e com penas mais proporcionais à realidade, o CPM, que é o diploma legal dos crimes militares, se viu, durante décadas, esquecido e desprovido de modernização penal, o que agora foi corrigido com a novel Lei nº 13.491/17, a qual não possui nenhum vício de inconstitucionalidade.
Ressalta-se ainda a observação de Renato Brasileiro, no sentido de que, à primeira vista, fica a impressão de que o acréscimo dessa nova competência da Justiça Militar para o processo e julgamento dos crimes previstos na legislação penal não poderia ser aplicado aos crimes militares cometidos por civis, definidos no inciso III do art. 9º do CPM. Isso porque a mudança legislativa produzida pela Lei nº 13.491/2017 ficou restrita ao inciso II do art. 9º, que trata dos crimes militares cometidos por militares da ativa.
No entanto, não se pode olvidar que, ao se referir aos crimes militares cujo sujeito ativo pode ser um civil, o inciso III do art. 9º do CPM preceitua que serão considerados crimes militares aqueles praticados contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos casos ali mencionados. Como se percebe, o inciso III do art. 9º do CPM traz para si o conceito de crimes militares do inciso II. Logo, a mudança legislativa produzida neste inciso também irá repercutir em relação ao inciso III, do que se pode concluir que os crimes militares cometidos por civis da competência da Justiça Militar da União abrangem não apenas aqueles previstos no Código Penal Militar, mas também os previstos na legislação especial[8].
Nesse sentido é o entendimento do Superior Tribunal Militar, citando-se como exemplo um caso em que foi afirmada a competência da Justiça Militar da União para o processamento e julgamento de civis que, em tese, teriam praticado crime tipificado na Lei 8.666/93, invocando-se o art. 9º, III, a, do CPM[9].
3.2. A ordem administrativa militar e os crimes de abuso de autoridade
A expressão "ordem administrativa militar" está presente em duas alíneas do art. 9º do CPM:
Crimes militares em tempo de paz
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
(...)
II os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
(...)
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
(...)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar; (...)
Vazada em linguagem abstrata e porosa, a locução tem seus contornos dados pela jurisprudência e pela doutrina, ante a ausência de definição legal.
Segundo Jorge Alberto Romeiro, ordem administrativa é a administração. Assim, os crimes contra a ordem administrativa militar seriam os elencados nos Títulos VII (Dos crimes contra a administração militar) e VIII (Dos crimes contra a administração da Justiça Militar) do Livro I da Parte Especial do CPM, a exemplo de peculato (art. 303), corrupção passiva (art. 308), prevaricação (art. 319), comunicação falsa de crime (art. 344) etc[10].
Em sentido similar, Nucci pontua que a expressão ordem administrativa militar equivale à administração militar em geral, de sorte que seria possível fazer um paralelo com os crimes contra a Administração Pública, previstos no Código Penal comum. A proteção penal destinar-se-ia aos interesses moral e organizacional da administração militar[11].
Contudo, verifica-se também uma outra corrente de pensamento, que dá à expressão um sentido mais amplo. Célio Lobão ensina que a ordem administrativa militar consiste no conjunto de leis, regulamentos, atos legais da autoridade militar competente, indispensável ao funcionamento das instituições militares, ao cumprimento de sua destinação constitucional ou legal. Cita a definição dada pelo Supremo Tribunal Federal no HC 39.412[12], de que os delitos contra a ordem administrativa militar são os que atingem a organização, existência, finalidade legal e constitucional, o prestígio da administração militar, a normalidade de seu funcionamento, o decoro funcional e o respeito devido à instituição militar.
No mesmo trilhar, menciona que o STM classificou como crime contra a ordem administrativa militar, e não contra o patrimônio sob administração militar, tentativa de furto do posto de atendimento bancário e do caixa eletrônico de instituição financeira, situados em dependências da instituição militar. A Corte Castrense asseverou que, ainda que seja contra o patrimônio de particular, a conduta se apresenta contra a ordem administrativa militar, a qual têm todos os militares envolvidos no dever de zelar e respeitar, satisfazendo, assim, a disciplina exigida dentro das organizações militares (Rec. Crim. 007578-5/2008, rel. Min. Marcos Augusto Leal de Azevedo)[13].
Enio Luiz Rosseto[14] ratifica as lições de Célio Lobão. Na mesma linha, Alexandre Leal de Barros Saraiva, sinteticamente, afirma que a ordem administrativa militar se refere à regular, eficiente e proba gestão militar[15]. Já Cícero Coimbra[16] assevera que a expressão significa a própria harmonia da instituição, abrangendo sua administração, o decoro de seus integrantes, dentre outros aspectos. Por fim, cita-se o trecho do parecer da lavra da Exma. Sra. Subprocuradora-Geral da Justiça Militar Dra. Maria de Nazaré G. de Moraes, nos autos do Recurso em Sentido Estrito nº 7000684-46.2019.7.00.0000[17]:
"Neste contexto, fica fácil perceber que toda vez que uma conduta típica de um militar ofender a organização - ou seja, a 'disposição metódica das coisas militares' -, a disciplina, a 'boa arrumação' da Caserna, haverá lesão a bens jurídicos afetos à Administração Militar, de modo a atrair a norma contida no art. 9º, II, alínea 'e' do Código Penal Militar".
Especificamente em relação aos crimes de abuso de autoridade, Jorge César de Assis adota opinião mais restritiva[18]. Embora o autor conceitue a ordem administrativa militar de forma aparentemente ampla apontando que esta se refere à atividade da instituição militar na consecução de suas finalidades legais e constitucionais, abrangendo tudo que puder causar transtorno à administração militar , aduz que tal concepção não daria à ordem administrativa militar um poder de se sobrepor a qualquer enquadramento que o aplicador da norma penal militar pretenda realizar, na adequação do fato típico à uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do CPM.
O autor parte da premissa de que os crimes de abuso de autoridade tutelam de forma imediata ou principal os direitos e garantias fundamentais das pessoas físicas e jurídicas, enquanto a proteção da normalidade e da regularidade dos serviços públicos, isto é, do bom funcionamento do Estado, seria objeto apenas de atenção mediata. Por isso, o enquadramento no art. 9º do CPM deveria ser feito em uma das quatro primeiras alíneas ("a" a "d"). Afinal, os crimes de abuso de autoridade seriam sempre crimes contra pessoas: o preso, o conduzido, o detento, a pessoa constrangida, o interrogado, o titular do imóvel alheio e de suas dependências, o indiciado, o investigado, e assim por diante, o que impediria a adequação do fato criminoso à alínea e, do inciso II do art. 9º do CPM. Por conseguinte, a utilização da alínea e seria excepcional e condicionada à inadequação às alíneas anteriores.
Não obstante, entendemos que o Código Penal Militar não cria uma hierarquia entre as alíneas dos incisos do art. 9º, nem impõe qualquer óbice a que um caso concreto encontre adequação em mais de uma das alíneas do artigo bastando, naturalmente, o enquadramento em apenas uma delas para que haja crime militar. Especificamente quanto ao crime de abuso de autoridade, o fato de haver lesão a um bem jurídico da pessoa natural não é suficiente para tornar irrelevante a lesão à ordem administrativa militar, a qual permanecerá latente e possibilitará o uso da alínea e do inciso II e também da alínea a do inciso III, como abordaremos adiante do art. 9º do CPM.
Cícero Coimbra, por outro lado, discorda da doutrina majoritária ao afirmar que, nos crimes de abuso de autoridade, o sujeito passivo imediato é o Estado, e não o eventual particular atingido. Prossegue asseverando que não se inclui no objetivo da lei tutelar bens jurídicos de titularidade de pessoas naturais (integridade corporal etc.), pois, se assim fosse, seria desnecessário um crime específico, uma vez que a agressão a esses bens jurídicos já possuem tipos penais incriminadores, como o crime de lesão corporal. Proteger-se-ia, isso sim, o hígido e lhano exercício do poder, a dignidade da função pública e o prestígio de que o poder público deve desfrutar perante os administrados. Logo, a subsunção do crime de abuso de autoridade no inciso II do art. 9º do CPM sempre seria na alínea e, focando-se a ordem administrativa militar[19].
Discordamos do argumento de Coimbra de que o fato de já haver tipos penais que tutelam os bens jurídicos da pessoa natural tornaria desnecessária a tipificação específica do crime de abuso de autoridade. É possível que o mesmo bem jurídico seja tutelado por tipos penais distintos. Enquanto o crime de violação de domicílio (art. 226 do CPM) tutela a intimidade e a vida privada, o crime do art. 22 da Lei nº 13.869/2019 tutela, além da intimidade e da vida privada, a dignidade da função pública e o prestígio de que o poder público deve desfrutar perante os administrados. De modo análogo, enquanto o furto (art. 240 do CPM) tutela apenas o patrimônio, o roubo (art. 242 do CPM) tutela não só o patrimônio, mas também a integridade física e a liberdade pessoal.
Porém, concordamos com autor quanto ao fato de que qualquer crime da Lei de Abuso de Autoridade tutelará, sempre, o hígido exercício do poder e, assim, a regularidade da Administração Pública (militar ou não). Dessarte, em se tratando de agente público atrelado à Administração Militar, haverá lesão à ordem administrativa militar. Cremos inclusive que o próprio Jorge César de Assis concordaria com essa afirmação, embora, em sua opinião, devido à sujeição passiva imediata das vítimas pessoas naturais, as alíneas "a" a "d" do art. 9º do CPM deveriam obstar a utilização da alínea e do mesmo artigo.
Em síntese, tem-se que qualquer crime da Lei de Abuso de Autoridade, quando praticado por agente público vinculado à Administração Militar, atentará contra a ordem administrativa militar lembrando-se que o civil jamais praticará crime militar perante a Justiça Militar Estadual.
3.3. Sujeito ativo no crime militar por extensão de abuso de autoridade perante a Justiça Militar da União
Quanto ao sujeito ativo do crime militar por extensão de abuso de autoridade no âmbito da Justiça Militar da União, cabe-nos analisar cinco categorias de sujeitos: o militar federal da ativa, o agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal, os demais civis (agentes públicos ou não), o militar federal inativo e os militares estaduais.
3.3.1. Militar federal da ativa
A mera subsunção do aspecto objetivo da conduta do militar federal da ativa a um tipo penal descrito na Lei de Abuso de Autoridade não é suficiente para a configuração do crime militar por extensão. Será necessária ainda a presença de uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, assim como a existência de algum dos elementos subjetivos especiais elencados no §1º do art. 1º da Lei de Abuso de Autoridade. Por fim, o militar deverá também estar atuando "no exercício da função ou a pretexto de exercê-la", conforme analisado em tópico anterior.
Na obra "Crimes Militares Extravagantes", cujo estudo recomendamos ao leitor, Coimbra afirma que o crime militar extravagante de abuso de autoridade, na órbita federal, apenas poderá ser praticado por militar da ativa das Forças Armadas, em função da necessária tipicidade indireta nas alíneas do inciso II do art. 9º do CPM, que apenas consagram no polo ativo o militar em situação de atividade[20].
Discordamos do mestre, por quem temos enorme deferência, por identificarmos situações em que civis e militares inativos também poderão praticar os delitos em análise, como será demonstrado a seguir.
3.3.2. Agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal
Coimbra assevera que, no caso de o crime da Lei nº 13.869/2019 ser praticado por um agente público federal civil, serão afetados os serviços da União e também os interesses da União, estabelecendo-se assim, em princípio, a competência da Justiça Federal, devido à incidência do art. 109, IV, da CF/88.
Prosseguindo na divergência acerca da exclusividade do militar federal da ativa enquanto sujeito ativo do crime militar por extensão de abuso do autoridade na órbita federal, frisamos que as instituições militares poderão ter servidores públicos civis, nos termos do art. 8º da Lei Complementar nº 97/1999:
Art. 8º A Marinha, o Exército e a Aeronáutica dispõem de efetivos de pessoal militar e civil, fixados em lei, e dos meios orgânicos necessários ao cumprimento de sua destinação constitucional e atribuições subsidiárias.
Nessa toada, entendemos que a conduta de um agente público civil que esteja lotado e em exercício na Administração Militar tem potencial para atingir a "ordem administrativa militar", possibilitando a tipicidade mediata por meio do art. 9º, III, a, do CPM.
Afinal, os delitos contra a ordem administrativa militar são os que atingem a organização, existência, finalidade legal e constitucional, o prestígio da administração militar, a normalidade de seu funcionamento, o decoro funcional e o respeito devido à instituição militar. Ademais, qualquer crime da Lei de Abuso de Autoridade, quando praticado por agente público vinculado à Administração Militar, atentará contra a ordem administrativa militar.
3.3.3. Demais sujeitos civis (agentes públicos ou não)
A tipicidade se refere à adequação entre a conduta humana e a hipótese abstrata descrita como crime pela lei penal. Esta subsunção pode se dar de forma direta (ou imediata), na qual o fato se enquadra no preceito primário da lei penal incriminadora sem que seja necessária a intermediação de outra norma; ou de forma indireta (ou mediata), em que tal enquadramento somente é possível com a utilização de uma norma de extensão (ou integrativa), a exemplo do que ocorre com os crimes tentados.
Nas hipóteses do art. 9º, I, do CPM, a adequação típica será direta, bastando que estejam presentes os elementos do preceito primário do tipo penal previsto no CPM. Os incisos II e III do art. 9º, por outro lado, caracterizam-se como normas de extensão, sendo necessária a satisfação das condições neles previstas para que haja a tipicidade do crime militar.
As condições insculpidas nos incisos II e III do art. 9º do CPM devem ser consideradas elementares do tipo penal, ainda que presentes apenas na norma de extensão. Rogério Greco traz uma definição sintética e precisa do termo elementar: são os dados essenciais à figura típica, sem os quais ocorre uma atipicidade absoluta ou uma atipicidade relativa. Se a atipicidade for de natureza absoluta, a conduta tornar-se-á um indiferente penal. Sendo relativa, haverá a desclassificação do fato para uma outra figura típica[21].
Pois bem. No caso de crimes definidos tanto no CPM como na legislação penal comum, assim como naqueles definidos apenas na legislação penal comum, a falta das condições previstas nos incisos II e III do art. 9º do CPM é suficiente para a descaracterização do crime militar. Em outros termos: se não estiverem presentes as condições descritas em pelo menos uma das alíneas dos incisos II ou III do art. 9º do CPM, restará fulminada a tipicidade da infração penal militar. Em tese, passará a incidir o tipo penal previsto na legislação penal comum, configurando um crime comum (atipicidade relativa)[22].
Logo, as condições trazidas pelos incisos II e III do art. 9º do CPM, como circunstâncias aptas a caracterizar um crime militar, devem ser consideradas elementares do crime militar. Como decorrência direta do art. 53, §1º, do CPM, ao determinar que não se comunicam as condições ou circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime, conclui-se que a condição pessoal de militar da ativa, nos casos do inciso II do art. 9º do CPM, figura como elementar do tipo penal militar e será comunicada ao civil que atuar como partícipe ou coautor na empreitada criminosa. O mesmo se diga em relação à qualidade de "agente público" (definido nos termos da Lei de Abuso de Autoridade) do agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal.
Em suma, um sujeito civil que atuar como coautor ou partícipe de um agente público (militar ou civil) atrelado à Administração Militar Federal, na prática de um crime militar por extensão de abuso de autoridade, terá cometido o mesmo delito. Ressaltamos que, com o propósito de evitar a responsabilidade penal objetiva, a comunicação da elementar só poderá ocorrer se este civil tiver ciência da qualidade pessoal de seu comparsa.
A bem da verdade, embora Coimbra[23] afirme que a sujeição ativa, no crime militar por extensão de abuso de autoridade, no âmbito federal, seja restrita ao militar federal da ativa, ensejando a competência exclusiva do Conselho de Justiça, o autor também confirma ser possível o concurso de agentes entre um agente público e um particular, caso em que o particular poderia praticar o crime de abuso de autoridade, devido à comunicação da elementar "agente público".
Prosseguindo em nossa análise, Coimbra assevera ainda que, no caso de concurso de agentes envolvendo agente público militar e agente público civil, haverá um crime militar por extensão cometido pelo militar e um comum de abuso de autoridade cometido pelo civil, impondo-se a cisão dos processos e a remessa às justiças respectivas, nos termos do art. 79 do CPP e do art. 102, a, do CPPM. Concordamos com o autor, mas com a ressalva de que, se o concurso se der entre um militar federal e um agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal, ambos os crimes terão natureza militar e serão de competência da JMU, devido à ofensa à ordem administrativa militar federal.
3.3.4. Militar federal inativo
Embora o crime de abuso de autoridade não exija o efetivo exercício funcional no momento da conduta, é imperioso que o sujeito ativo goze do status de agente público, nos termos do art. 2º da Lei nº 13.869/19. Tal requisito excluiria o funcionário público aposentado, vez que, à época do delito, já haveria se desvinculado funcionalmente da Administração Pública.
Analogamente, podemos estender este raciocínio ao militar federal inativo. Contudo, é importante relembrar a figura do "prestador de tarefa por tempo certo", regido pela Portaria Normativa 002-MD, de 2017, com tratamento único para as 3 Forças. Jorge Luiz Nogueira de Abreu ensina que a prestação de tarefa por tempo certo visa a atender a necessidades do serviço quando inexistir militar na ativo habilitado ou disponível, por ser eventual. O ajuste é temporário e precário, estando sujeito à exoneração a qualquer tempo, por conveniência do serviço.
O militar prestador de tarefa por tempo certo permanece na inatividade. Dessarte, não poderá ser investido em cargo militar especificado nos quadros de efetivo ou tabelas de lotação das FFAA ou previsto, caracterizado ou definido como tal em outras disposições legais, pois esses cargos só podem ser providos, interinamente ou não, por militar da ativa[24].
Pois bem. O art. 12 do CPM prescreve que o militar da reserva ou reformado, empregado na administração militar, equipara-se ao militar em situação de atividade, para o efeito da aplicação da lei penal militar. É justamente a situação do militar inativo PTTC. Embora inativo, será equiparado a militar da ativa e poderá praticar crime militar por extensão de abuso de autoridade, mediante enquadramento no art. 9º, II, do CPM.
Ademais, assim como exposto no tópico anterior, o militar inativo, ainda que não se equipare a militar da ativa, poderá atuar como coautor ou partícipe de agente público atrelado à Administração Militar Federal, este apto a praticar, por si só, o crime de abuso de autoridade. Nesse caso, a comunicação das elementares do delito possibilitará o cometimento da mesma infração pelo militar federal inativo.
3.3.5. Militar estadual
Em relação ao militar estadual inativo, vale analogamente o quanto exposto no tópico anterior, acerca do militar inativo federal: caso esteja, de alguma forma, empregado na Administração Militar Federal, será equiparado a militar da ativa e sua conduta desviante terá aptidão para lesionar a ordem administrativa militar federal. Ademais, poderá praticar crime militar por extensão de abuso de autoridade perante a JMU ao atuar como coautor ou partícipe de agente público atrelado à Administração Militar Federal.
Quanto ao militar estadual da ativa, Coimbra afirma que o concurso de pessoas entre militares dos Estados (ou do Distrito Federal) e militares das Forças Armadas, ou mesmo entre militares de Unidades Federativas diferentes, deverá ensejar a separação de processos, cabendo a cada Justiça Militar processar e julgar o caso que, materialmente, seja de sua competência. Dá como exemplo o crime praticado no seio de intervenção federal em Unidade Federativa, em uma operação que envolva militar federal e estadual[25].
Não obstante, ponderamos que, se o militar estadual estiver atuando sob o comando das Forças Armadas, o desvio no exercício de suas funções atentará contra a ordem administrativa militar federal, resultando na competência da Justiça Militar da União. Ressaltamos que, tanto na intervenção federal quanto em operações de garantia da lei e da ordem, o controle operacional dos órgãos de segurança pública estaduais pode ser transferido à autoridade militar federal.
3.4. Competência
Findas as considerações acerca da sujeição ativa no crime militar por extensão de abuso de autoridade perante a Justiça Militar da União, resta analisar o órgão competente para o processo e julgamento em 1º grau.
Seguindo a linha já exposta, não adotamos o entendimento de Coimbra, para quem o crime militar extravagante de abuso de autoridade exige a subsunção ao inciso II do art. 9º do CPM, não havendo possibilidade de prática do referido crime por civil. Assim, na Justiça Militar da União, em primeira instância, todos os crimes militares extravagantes de abuso de autoridade seriam de competência dos Conselhos de Justiça, não se abrindo espaço para divergência, como ocorre na Justiça Militar Estadual e do Distrito Federal[26].
Conforme sustentamos neste trabalho, é possível que civis sejam sujeitos ativos dos crimes militares por extensão de abuso de autoridade na órbita federal, em dois casos: o primeiro, na hipótese do agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal; e o segundo consistente na figura do concurso de pessoas, em que o civil atua, como coautor ou partícipe, em conjunto com um agente público atrelado à Administração Militar Federal.
O art. 30, I-B, da Lei Orgânica da Justiça Militar da União estabelece o seguinte:
Art. 30. Compete ao juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente:
(...)
I-B - processar e julgar civis nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), e militares, quando estes forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo; (Incluído pela Lei nº 13.774, de 2018)
No caso do agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal, a adequação mediata se dá por meio do art. 9º, III, do CPM. Por conseguinte, será fixada a competência monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar, eis que atendidos todos os requisitos do art. 30, I-B, da LOJMU.
Quanto ao civil que atuar em concurso de pessoas com o agente público civil lotado e em exercício na Administração Militar Federal, a solução é a mesma: a adequação típica mediata também se dará pelo inciso III do art. 9º do CPM, conforme o art. 30, I-B, da LOJMU.
Todavia, o que pode gerar algum questionamento é o caso do civil que atua em concurso com um militar da ativa, considerando que a adequação mediata do crime militar por extensão utilizará o inciso II do art. 9º do CPM, embora o art. 30, I-B, da LOJMU apenas tenha feito referência aos incisos I e III. Trata-se de uma lacuna na lei processual penal militar, cuja identificação e colmatação foram devidamente analisadas em outro trabalho de nossa autoria, para o qual remetemos o leitor[27].
Em síntese, tem-se que a Lei nº 13.774/2018, que inaugurou a competência monocrática na JMU ao criar o inciso I-B do art. 30 da LOJMU, limitou o julgamento de civis, no juízo singular, aos casos do art. 9º, I e III, do CPM e simultaneamente excluiu tais casos da competência do Conselho Permanente de Justiça. Fez surgir, portanto, uma lacuna quanto ao órgão competente para o julgamento do civil que, em concurso com militar da ativa, cometer um crime militar subsumido ao art. 9º, II, do CPM (norma de extensão), devido à comunicação da elementar militar da ativa.
A partir da análise das críticas ao julgamento de civis pela JMU, das justificativa do PL nº 7.683/2014 (que originou a Lei nº 13.774/2018), da redação do art. 30, I-B, da Lei nº 8.457/1992 e de recentes decisões do STM sobre este dispositivo, foi possível concluir que a inovação legislativa repousa nos seguintes fundamentos:
a) é inapropriado o julgamento de civis por juízes militares em tempo de paz, haja vista não estarem os civis sujeitos ao vínculo de supremacia especial característico do militarismo; logo, não haveria razão para submetê-los às particularidades de tal regime;
b) militares devem, a priori, ser julgados pelo escabinato, pois este está intimamente ligado ao regime jurídico especial a que se submetem os militares, calcado na hierarquia e na disciplina, valores que são as vigas mestras das instituições militares e que, inclusive, recebem status de princípio constitucional pela Lei Maior (arts. 42 e 142 da CF/88);
c) é aceitável o julgamento de militares sem que dele participem juízes militares, se necessário para evitar o julgamento de civis por juízes militares e para evitar a cisão processual; afinal, foi essa a solução adotada pelo art. 30, I-B, da LOJMU, ao determinar que compete ao juízo monocrático processar e julgar não só os civis (nos casos previstos nos incisos I e III do art. 9º do CPM), mas também os militares que forem acusados juntamente com aqueles no mesmo processo.
Os incisos I, II e III do art. 9º do CPM são estruturados e diferenciados a partir de diversos critérios. Entretanto, dentre tais critérios, apenas a sujeição ativa do delito guarda relação com os fundamentos identificados acima. Outros elementos, a exemplo do local onde o crime foi cometido, ou se o tipo penal é previsto também na legislação penal comum, são irrelevantes para fins de definição do órgão julgador (juízo singular ou escabinato).
Quanto à possibilidade de haver um civil dentre os sujeitos ativos do delito, a distinção entre os incisos não resiste a uma análise mais acurada. Em qualquer dos incisos, o sujeito ativo do delito poderá ser um civil. No inciso I, há a expressão qualquer que seja o agente. No inciso III, há menção expressa ao civil. Já no inciso II, a possibilidade advém das regras sobre o concurso de pessoas e da comunicação de elementares.
Considerando que a sujeição ativa é o único critério relevante para a fundamentação da norma do art. 30, I-B, da Lei nº 8.457/1992; e considerando que os incisos I, II e III não apresentam distinção relevante em relação a este critério (pois, nos três casos, é possível que o civil seja sujeito ativo), conclui-se que os fundamentos que embasam a norma do art. 30, I-B, da Lei nº 8.457/92 (aplicável aos incisos I e III do art. 9º do CPM) estão também presentes no caso do inciso II do art. 9º do CPM, de sorte que os três incisos devem receber igual tratamento jurídico quanto à definição da competência do órgão julgador em 1º grau na JMU. Afinal, onde houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus). Dessarte, deve-se atribuir a competência ao juízo singular.
Por fim, frisa-se que a comunicação da elementar militar da ativa ao civil, por se tratar de uma ficção do direito material, não deve gerar efeitos quanto aos critérios de definição de competência, a exemplo do que acontece com a aberratio ictus, em que o direito material utilizará as qualidades da vítima virtual, mas a análise da competência levará em consideração as qualidades da vítima real. Logo, em nosso exemplo, o direito processual e a definição da competência também terão em consideração as qualidades reais do sujeito ativo, qual seja, a de "civil", e não a de militar da ativa.
Como já mencionado, todos esses argumentos foram trabalhados em maiores detalhes no trabalho de nossa autoria já referido, o qual fica recomendado ao leitor que desejar se aprofundar no tema.