Resumo: Os meios adequados de solução de conflitos e os modelos multiportas no Direito são uma realidade no Brasil, mas ainda não evoluímos para uma ideia de jurisdição que contemple, de forma abrangente, os meios de acordo protagonizados pelos particulares. Este trabalho traz alguns aportes históricos da jurisdição na Grécia do período clássico e no Direito Romano, a fim de contribuir com essa nova jurisdição do acordo.
Palavras-chave: meios adequados de solução de conflitos; jurisdição; acordo; Grécia clássica; direito romano.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os meios (ou métodos) adequados (ou alternativos) de solução de conflitos não são novidade em nosso País. Encontramos discussões bastante estruturadas há pelo menos duas décadas. Nesse ínterim, ideias, conceitos e técnicas avolumaram-se e espalharam-se entre os juristas de forma a promover a confiança e a segurança na aplicação de meios autocompositivos e na formação de um novo conceito de jurisdição, não necessariamente provida judicialmente. Vimos também surgir a necessidade de meios mais céleres para solução dos litígios, o que acelerou a passagem do papel para a prática de meios que visem um acordo, não conduzidos pelo Estado, mas por este validados. A junção destes dois fatores, a consciência da necessidade de uma justiça participativa e a morosidade da justiça estatal, propiciaram o surgimento de legislações configurativas do acordo, de forma que o Direito atenda também os cidadãos que desejem fazer justiça de forma colaborativa e pacífica, dizendo o Direito enquanto verdadeira e legítima origem do poder e da decisão.
Quanto à morosidade do Poder Judiciário no cumprimento da sua função estatal de prestação de serviço jurisdicional, temos visto, nos últimos tempos, números e prazos incompatíveis com a própria Constituição de 1988, como no descumprimento do Princípio da razoável duração do processo, insculpido no inciso LXXVIII do artigo 5º da Carta Magna. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2021, p. 50, 103, 169 e 202), durante o ano de 2020, em todo o Poder Judiciário, ingressaram 25,8 milhões de processos e foram baixados 27,9 milhões. Significa que o chamado Índice de Atendimento à Demanda (IAD), que mede a relação entre o que se baixou e o que ingressou, no ano de 2020 foi de 108,2%. Bravo! No entanto, o Poder Judiciário ainda contava com um estoque de 75 milhões de processos pendentes de baixa no final do ano de 2020 (52,3% na fase de execução). Nas varas estaduais os processos de conhecimento têm média de tramitação de 3 anos e 4 meses do início até a baixa e os processos de execução chegam a 7 anos e 2 meses. Nas varas federais, os processos de execução tramitam, até a baixa, por 8 anos e 11 meses. E isso é só no 1º grau de jurisdição. Temos, na prática, uma irrazoável duração do processo. Esperar mais de 10 anos para ter seu direito reconhecido não pode ser tomado como algo aceitável. E sobre o custo do acesso à justiça estatal? Pagamos pesados impostos que custeiam toda essa máquina (o Poder Judiciário custou mais de 100 bilhões de reais somente em 2020) e quando precisamos de seus serviços ainda temos que pagar custas que, somadas aos honorários advocatícios, transformaram o efetivo acesso à justiça em privilégio de poucos.
Algo precisa mudar, e passa pela formação de uma nova ideia de jurisdição. Para dar suporte aos meios adequados de solução de conflitos atualmente em discussão e já em operação, com foco nos meios autocompositivos da mediação e da conciliação, faremos uma rápida abordagem da jurisdição ao longo do tempo, limitando o estudo aos períodos da Grécia Clássica e do antigo Direito Romano. Assim, esperamos alcançar um melhor entendimento do fenômeno que hoje experimentamos, perante a nova jurisdição do acordo, a partir de aportes históricos cuidadosamente recortados de períodos de intensa participação popular na vida pública e nas decisões.
2. A JURISDIÇÃO NA GRÉCIA CLÁSSICA
A vida pública, a política e a justiça eram ideias muito presentes na vida e no imaginário dos habitantes da Grécia do período clássico, ainda que a compreensão deste fenômeno democrático demande-nos um estudo vocabular próprio. Isso porque não há como entender esses e outros termos gregos sob os sentidos normalmente utilizados contemporaneamente. Há inúmeras dificuldades nessa missão, não só semânticas, mas relativas à tradução do idioma. Anteriormente ao século VI a.C. pouco se pode falar em termos de jurisdição, consistindo-se, em muito, na direta aplicação de ordens a partir de conjuntos de regras familiares. Assim, cada família ou clã aplicava suas próprias regras e sanções pelo cometimento de crimes e mesmo no trato com estrangeiros, em procedimentos pautados pela oralidade.
Com a substituição da monarquia pela aristocracia ao final da civilização micênica, abriu-se espaço para outras ideias de forma de governo, como a democracia, que se notabilizaria mais tarde, no chamado período clássico. No período anterior ao clássico, denominado arcaico, deu-se um forte desenvolvimento da economia, com a transformação dos genos em grandes unidades políticas: as cidades-estado ou pólis. Fala-se que chegaram a existir mais de cem cidades-estado na Grécia. Nesse contexto, torna-se inviável obtermos um formato jurisdicional que contemple toda a civilização grega da época. Apesar de apresentarem características comuns, cada pólis tinha suas próprias leis e aplicações. Assim, a experiência com maior número de fontes, mesmo que não exatamente jurídicas, vem de Atenas, motivo pelo qual tomá-la-emos como parâmetro jurisdicional do período grego clássico. Outra dificuldade para os estudos contemporâneos acerca da jurisdição (chegaremos à ideia de justiça) na Grécia clássica é a ausência de uma sistematização das normas, como ocorreu no Direito Romano. Uma primeira distinção para o período é que o Direito como hoje conhecemos tem pouca relação com as ideias da época. Dessarte, não cabe interpretarmos os vocábulos traduzidos de textos no idioma grego de 2.500 anos com o significado utilizado no Direito e na jurisdição atuais; é, de outra forma, mais apropriado extrairmos a ideia visada pelos autores.
Nas obras dos grandes filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, a justiça e a injustiça eram temas frequentes, de forma que as grandes discussões da aplicação das normas apresentavam a busca de um equilíbrio entre as leis escritas e as leis da natureza, um equilíbrio entre a norma e o justo, o que incluía um procedimento justo, equânime. A criação de instituições constitucionais, como o Conselho e a Assembleia, possibilitou o início da produção de leis escritas, cujas discussões (em maior parte filosóficas) deixaram um indescritível legado para a humanidade. O Conselho tinha o poder de emitir uma espécie de parecer preventivo sobre as decisões da Assembleia, tanto em matéria legislativa quanto judiciária. A Assembleia, por sua vez, detinha a competência para a produção das normas escritas, inclusive sobre política externa, e para o controle sobre a administração e sobre os atos dos magistrados. Estes eram escolhidos dentre os cidadãos atenienses sabidamente obedientes às leis, do que destacamos os termos de seu juramento, conforme traz-nos Guilherme Roman Borges (BORGES, 2011, p. 127):
O juramento foi recortado por Demóstenes, e apresenta, segundo interpretações contemporâneas, algumas idéias centrais que obrigariam os juízes a: a) votar de acordo com as leis e os decretos do povo ateniense; b) votar sobre as matérias pertinentes do caso; c) ouvir igualmente acusador e defensor; d) [...] (julgar) de acordo com a [...] (opinião mais justa).
Observamos do juramento do magistrado, além da clara limitação de sua atuação, uma preocupação com o equilíbrio da relação processual. Já o julgamento de acordo com a opinião mais justa, apesar de suscitar divergências, parece-nos indicar uma primitiva ideia de hermenêutica jurídica, especialmente quando o caso concreto encontrava lacunas legais ou conflitos entre a lei e o justo. Interessa-nos, em particular, o fato de, há 2.500 anos já existir a ideia de arbitragem e conciliação (BORGES, 2011, p. 192-193):
[...] havia ainda, entre os gregos, a possibilidade de se levar a questão, antes ou durante o processo, para um δηεηέηη (árbitro) e não diretamente ao juiz. Este, que poderia ser público ou privado, era escolhido pelas partes e sua decisão vincula os seus interesses, de modo que, tal o mundo contemporâneo, a existência da decisão de um árbitro impedia que a matéria fosse revista por um tribunal. O objetivo do árbitro era buscar a conciliação e pacificar o conflito entre os cidadãos. Contudo, caso alguém se sentisse desconfortável com a decisão do árbitro, nada impedia que fosse questionar em juízo. Isso poderia ser feito pela ἔθεζηο (recurso de apelação), de modo que as provas eram colocadas num vaso e levadas ao tribunal de modo que nunca um tribunal poderia analisar provas novas; pela δίθε ἔξεκνο (oposição); ou, enfim, pela ἐηζαγγειία (acusação pública), em razão da má conduta do árbitro. Não resolvida a questão em sede arbitral, e, ultrapassada a propositura da ação, iniciava-se o rito processual. O juiz (designados entre os δηθαζηαί () para conduzir a instrução e presidir o tribunal) recebia a petição e determinava uma ἀλάρξηζηο (audiência) para contraditório, o pagamento da πξπηαλέηα (custas processuais), e abria espaço para que, também por escrito, o acusado pudesse se defender através da ἀληηγξαθή (apenas nos processos privados havia o ὑζηεξόο ιόγνο tréplica).
Era vigente no período a ideia da mediação de conflitos como função ou resultado da ação do juiz, como observamos na Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 2014, p. 190-191):
De fato, o juiz é como se fosse a justiça dotada de alma. Outro motivo para buscar os juízes é para que ele estabeleça a mediania, pelo que, efetivamente, em alguns lugares, chamam-se os juízes de mediadores, pois eles atingem a mediania, segundo lhes parece, atingem o justo. É de se concluir, portanto, que o justo é uma espécie de mediania na medida em que o juiz encarna essa mediania.
A justiça era, para Aristóteles, o encontro, a comunhão entre as leis e o justo, e o justo reclamava a justiça da alma, não vista como algo mítico, mas racional, manifestado no mundo real pela equidade, a média dos valores, o comedimento dos desejos. A atividade de mediação exercida pelo juiz consistia em restaurar o equilíbrio, a equidade dentro da lei, muitas vezes lacunar pela sua própria característica genérica e abstrata, e o mediador encarna esse ideal de justiça, de modo que as partes saiam do conflito melhores do que entraram. Por óbvio precisamos fazer uma adaptação, inclusive semântica, para o que temos por jurisdição atualmente, visto que o culto às virtudes exaltado pelos filósofos gregos infelizmente não se faz mais presente em nossa sociedade. Aliás, Aristóteles chegou a dizer que a justiça é a virtude maior ou a soma das virtudes. Parece-nos um ideal de possível restabelecimento por meio da mediação entre particulares.
Até a Revolução Francesa (1789) tinha-se a justiça (e os preceitos morais) como objetivos da sociedade. Essa conexão foi praticamente dizimada no período monárquico absolutista francês e definitivamente aniquilada pelos revolucionários da guilhotina, a ponto de hoje na academia pouco se falar de justiça, mas somente de Direito. O iluminismo e o movimento revolucionário francês resultaram no banimento do ideal de justiça do imaginário humano, independentemente de ter sido desejado por seus idealizadores. Rousseau, por exemplo, falava em povo virtuoso, mas não praticava a virtude; resumia a vida pública à política e à lei. Na mediação moderna precisaremos resgatar a ideia de justiça, dentro das normas, ou qualquer tentativa resultará em mera formalidade usada por governantes e burocratas. Já vemos, em muitos casos, o Poder Judiciário assumindo a autoridade sobre os meios autocompositivos e ordenando a conciliação dentro do processo judicial, o que nos parece inaceitável. A prática dos meios autocompositivos de solução de conflitos deve partir da sociedade, dissociada de imposição estatal. A prática jurisdicional advinda da voluntariedade, da mediação e da justiça é o mínimo do legado da Grécia Clássica que devemos apreender para aplicação nos meios autocompositivos contemporâneos.
3. A JURISDIÇÃO NO DIREITO ROMANO
Assim como a filosofia grega, o Direito Romano é um dos grandes pilares da civilização ocidental, sendo sua sistematização até hoje parte constitutiva e inseparável do estudo e da aplicação do Direito. Também a proximidade da língua favorece-nos nesta missão, visto que o latim era a língua oficial de Roma à época de interesse. Para limitação do trabalho, interessa-nos particularmente a ideia de jurisdição desenvolvida a partir do Digesto de Justiniano, imperador bizantino que governou de 527 d.C. até sua morte, em 565. Até então, o conceito de iurisdictio tinha feição mais ampla, mas através do Digesto o instituto assumiu a função de declaração do direito. Para parte da doutrina, essa concepção de jurisdição sugeria oposição entre os termos iurisdictio e imperium, sendo o primeiro constituído pelo procedimento ordinário, ou seja, o iurisdictio não englobava o poder de ordenar. Ovídio Araújo Baptista da Silva explica esse entendimento (SILVA, 1997, p. 27):
As razões pelas quais se excluem os interditos do conceito de jurisdição, portanto, são estas: (a) o comando imposto pelo pretor era condicionado, quer dizer, o magistrado ordenava com base num direito non ancora accertato, o que significa afirmar que não teria havido, ainda, uma composição (definitiva) do conflito; (b) o interdito estabelecia um vínculo di natura pubblicistica, ao passo que o ordenamento jurídico privado somente poderia reproduzir um reconhecimento (declaração) de direitos, nunca uma ordem, declaração esta relativa sempre a uma relação de direito privado.
A distinção entre iurisdictio, como declaração do direito, e imperium, como potestas, poder de ordenar, traz-nos a importante ideia de composição da lide, em que tem-se um dizer o direito, confiado a um privado, e uma efetiva declaração ou declaração oficial do direito, realizada pelo pretor. No entanto, há interpretação no sentido de que o dizer o direito deve-se não à forma, mas à característica de oralidade no processo. Ovídio Araújo Baptista da Silva (SILVA, 1997, p. 34) diz que Não havia decisão de direito, apenas sobre fato. Quanto ao direito, havia julgamento, não decisão, enquanto ato de vontade. Ora, a composição entre os privados sobre o fato já seria de grande avanço para os tempos atuais, movidos basicamente pela litigiosidade. Complementa o jurista (SILVA, 1997, p. 36):
A identificação que a doutrina faz entre decidir e julgar é talvez o testemunho mais eloquente de que a jurisdição, tal como ela é concebida por nosso direito, resume-se numa pura declaração. Com efeito, julgar, enquanto ato intelectivo, é apenas o antecedente lógico, ou o pressuposto, para a decisão, que é ato de vontade. A não ser que se parta, portanto, da premissa de que o magistrado não possui vontade própria, sendo apenas a boca que pronuncia as palavras da lei (Montesquieu) e que, para ele, decidir confunde-se exclusivamente com a pronúncia das palavras contidas na lei seria impossível equiparar decisão a juízo.
Sem a intenção de exaurirmos a discussão sobre a efetividade do dizer o direito no período clássico romano, precisamos trazer à discussão dos meios autocompositivos a ideia do processo formulário (também chamado processo formular ou per formulas), bem anterior a Justiniano. O processo formulário teve início em 149 a.C. visando resolver os conflitos com estrangeiros, sendo posteriormente estendido a todos. Nesse processo, o pretor, após ouvir as partes, emitia uma fórmula escrita, fixando as diretrizes do julgamento para um juiz privado, por ele designado. José Cretella Jr. apresenta-nos a composição da fórmula (CRETELLA JR., 2010, p. 34):
A fórmula, que definimos como o escrito redigido pelo magistrado in jure, com a indicação da causa que o juiz deve resolver, é composta de duas partes: uma parte principal, que é estereotipada, fixa, a mesma para todos os casos; uma parte acessória, móvel, alterável, que varia segundo os casos. Qualquer alteração na primeira parte anula a fórmula, porque atenta contra o princípio formalista.
O Digesto de Justiniano, promulgado em 535 d.C., constitui-se de uma compilação da legislação romana, dividida em livros e estes em leis ou fragmentos (precedidos do nome do jurisconsulto romano e da obra de onde foram retirados). O Digesto fazia parte do Corpus Juris Civilis, que, mesmo vigorando por quase 1000 anos no Império Romano, era desconhecido do mundo ocidental, sendo descoberto somente por volta do ano 1.100. Vejamos algumas normas básicas acerca da jurisdição extraídas do livro segundo do Digesto, cujo Título I pode ser traduzido como A jurisdição (JUSTINIANO I, 2013, p. 25, 27, 29 e 37):
1 - ULPIANO; livro I. Regras - O ofício de ministrar jurisdição é muito amplo; porque abrange o poder de conceder a posse de bens, imitir na posse, nomear tutores a órfãos menores que não os têm, e dar juízes aos litigantes.
2 - JAVOLENO; livro VI. Doutrina de Cássio. Àquele a quem foi conferida a jurisdição, é evidente que também se atribuíram aquelas condições sem as quais ela não poderia ser exercida.
3 - ULPIANO; livro II. O ofício de Questor. O imperium ou é merum [puro] ou é mixtum [misto]. É imperium merum poder castigar homens criminosos, imperium que se chama também potestas [poder]. Mixtum é o imperium que inclui também a jurisdição, e se manifesta no ato de conceder a posse de bens. A jurisdição é também a faculdade de dar juiz. [...]
16 - IDEM; livro III. Todos os tribunais. O pretor costuma delegar a jurisdição; e, ou delega toda, ou uma parte; e aquele ao qual foi delegada a jurisdição desempenha ao modo daquele que a delegou e não como própria.
O Título I (De Iurisdictione) do Livro II do Digesto inicia pela abrangência da jurisdição, onde vemos novamente a distinção entre imperium e iurisdictio, bem como a limitação dos poderes do pretor e da sua delegação. O ofício de ministrar jurisdição (Officium ius dicentis) expressava a função do magistrado romano (figura inexistente no Direito atual), que ao longo do tempo foi exercida pelo rei, pelos cônsules e pelos pretores (peregrinos e urbanos). Já a jurisdição (iurisdictio, de ius dicere) era manifestada, de forma similar ao processo formulário, através de uma fase in iure, perante o pretor, e de uma fase apud iudicem, perante um juiz ou árbitro privado, que recebia a delegação do pretor com o poder de sentenciar o feito. Quanto ao dar juiz aos litigantes (iudicem dare), importante esclarecermos que a iurisdictio constava de três palavras (tria verba solemnia): dico (publicar uma regra geral em um edito, ou regular uma contenda por um interdito); do (dar juiz às partes), addico (reconhecer o direito em benefício de uma parte; também, homologar o que as partes pactuam; exercer jurisdição voluntária). Dicere na linguagem jurídica e religiosa é dizer com caráter solene, técnico. Addicere é aprovar, estar de acordo; adjudicar, confirmar a vontade das partes (por ato jurisdicional). Dar um juiz não significa apenas designar um particular para decidir a causa, mas também constituía-se em uma delegação ad hoc da iurisdictio ao nomeado, como extraímos da tradução do Digesto (JUSTINIANO I, 2013, p. 25, 27 e 29).
A riqueza do procedimento positivado na codificação romana denotava a importância da ideia de res publica para os romanos e, sem dúvida, mostra-nos o quanto hoje renunciamos à coisa pública, à participação. Tal qual as noções de justiça emanadas dos grandes autores gregos, vemos que a sistematização legislativa prática e a participação dos cidadãos nos processos decisórios, inclusive jurisdicionais, observadas no Direito Romano, podem ser reproduzidos atualmente, com as devidas adaptações, no Estado Democrático de Direito. Assim enunciamos porque a res publica, seja como respeito à coisa do povo ou como participação e decisão pelo povo, deve constituir ideal da sociedade, independentemente da forma de governo e dos governantes do momento. Nos processos autocompositivos pode-se buscar um maior respeito à res publica e à cidadania, através do acordo entre as partes. A ideia de jurisdição do Direito Romano revela-nos que a decisão pela busca do acordo realizada pelos particulares em nada mitiga o poder estatal, mantendo, para nossos dias, a prerrogativa constitucional da apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito. A jurisdição participativa já teve vez numa das mais avançadas civilizações em termos de justiça e participação cidadã, não havendo motivo para o seu insucesso nos dias de hoje, com recursos tecnológicos sequer possíveis de serem imaginados pelos romanos. Basta efetuarmos a sua aplicação com conhecimento e honestidade.