Resumo: Tratou-se de uma análise, ainda que sintética, da Guerra Russo-Ucraniana diante dos preceitos básicos fundamentais do Direito Internacional Humanitário - DIH. Inicialmente se procurou compreender as razões do conflito em questão, a partir de uma perspectiva histórica da relação entre os dois países envolvidos. Na sequência, analisando o conceito, as origens, os princípios e as normas do DIH, traçou-se um comparativo com os acontecimentos do front da batalha, bem como de episódios pregressos entre os conflitantes, e aquilo que esse Direito preconiza, prescrutando-se de sua força normativa e efeitos práticos, que o habilitem a resolver as questões humanitárias resultantes dessa guerra, que abalou toda a sociedade internacional, ameaçando o futuro da humanidade e redefinindo a geopolítica global, de forma definitiva e inimaginável, frustrando todos os esforços de paz da comunidade internacional dos últimos anos, que pareciam consolidados, e desafiando as organizações que se pretendiam capazes de responder ou deter o conflito.
Palavras-chave: Guerra Russo-Ucraniana, Direito Internacional Humanitário, Força Normativa, Efeitos Práticos.
1. Introdução
Considerada a maior crise humanitária em anos na Europa, a Guerra Russo-Ucraniana redefine o cenário geopolítico mundial e se tornou um dos maiores conflitos militares na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, desencadeando a maior crise de segurança no continente desde a Guerra Fria (CNN, 2022).
Conforme noticiado pela CNN (2022), os movimentos de fuga do conflito já mobilizaram 6,5 milhões de pessoas e mais de 3,5 milhões de ucranianos já deixaram o país na maior crise migratória europeia desde a Segunda Guerra Mundial, com famílias, e até crianças sozinhas, cruzando as fronteiras e se colocando em situação de vulnerabilidade ao tráfico de pessoas, em campos de refugiados improvisados.
Além disso, instalações civis têm sido alvos de bombardeios constantes, inclusive uma escola e uma maternidade em Mariupol.
Corredores humanitários têm sido criados semanalmente para o escape de civis, mas estimativas da ONU apontam que pelo menos mil civis morreram nos ataques russos.
Os riscos nucleares, das usinas ucranianas e do arsenal russo, correspondente a mais da metade das ogivas do planeta; a interrupção no fornecimento global de energia, decorrente das sanções econômicas impostas à Rússia; aliados ao aumento da inflação e ao baixo crescimento econômico, produzidos pelo confronto; representam uma ameaça global.
Em síntese, esse é o quadro da crise global e humanitária instaurada pelo conflito em questão, que gerou, em um efeito dominó, consequências energéticas, econômicas, geopolítica, diplomáticas, etc, que ameaçam a vida no planeta e o planeta como o conhecemos, colocando em xeque as nossas instituições internacionais, sobretudo aquelas voltadas para a manutenção da paz e o socorro humanitário, bem como o papel das legislações que lhes fundamenta.
Uma análise mais profunda dessa dinâmica humanitária do conflito, embora sintética, devido aos limites de extensão deste trabalho, será realizada a seguir, por meio de pesquisa básica pura, qualitativa e bibliográfica.
2. Compreendendo melhor a origem do conflito
A historiadora Maria Kurishenko esclarece que o confronto entre Rússia e Ucrânia não é de agora, pois o país de posição estratégica, por estabelecer fronteiras com a Europa Central, a Rússia e o Médio Oriente, sempre teve seu território disputado pela Rússia, com quem guarda forte identificação étnica, desde tempos remotos:
A divisão da Ucrânia pelo Estado czarista de Moscovo e pela Polónia levou a um sentimento de separação dentro da Ucrânia, com uma parte da população a associar o nome oficial do Estado cossaco, "Pequena Rússia", com o czar de Moscovo como seu suserano, e mais tarde o que conhecemos como "Pequena Rússia" (a visão da Ucrânia como uma "Rússia inferior" e como parte da nação russa maior) veio dela, em contraste com a outra parte, que via o país cossaco como um corpo político e uma pátria distintos, que os comandantes chamavam "Ucrânia", e pouco depois os cossacos de ambos os lados do Dnieper começaram a usar "Ucrânia" para se referirem à Pátria Mãe. (Kurishenko, 2022, p. 7).
Saltando na história, em apertada síntese, Mazzoni esclarece que após a queda do muro de Berlim a Ucrânia começa sua aproximação com a União Europeia e, consequentemente, a tentar se libertar da influência russa, desagradando cada vez mais a potência bélica e frustrando seus planos restauracionistas do bloco soviético.
A Ucrânia, espremida entre a Rússia e a UE, é um país dilacerado por velhas e novas lealdades.
(...) a Ucrânia tem lutado com problemas políticos e econômicos.
Grande parte de seus problemas tem a ver com sua localização. (...)
Sem surpresa, a Rússia tem uma longa história de intervenção na Ucrânia. Recentemente, o país procurou reafirmar seu controle na região, após o colapso da União Soviética. (...)
A Rússia também financiou certos políticos ucranianos, que defendem agendas políticas escritas por Moscou, enfatizando ações pró-russas e antiocidentais.
Do outro "lado", os países da União Europeia também trabalham para influenciar os acontecimentos na Ucrânia.(...)
O poder da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) vem aumentando, expandindo-se para o leste após a queda da Cortina de Ferro.
Esses dois grupos trouxeram cada vez mais ex-aliados da Rússia, como a Polônia e os países bálticos, para o seu grupo.
A Rússia, por sua vez, tentou proteger agressivamente sua antiga esfera de influência.
Isso colocou a União Europeia numa posição desconfortável.
Os estados membros reduziram os gastos militares enquanto a Rússia está se rearmando - então provocar conflitos é um jogo perigoso.
E como Ucrânia, União Europeia também depende de um fornecimento constante de combustíveis fósseis russos.
Por algum tempo, a estratégia da União Europeia foi simplesmente ignorar a crescente situação da Ucrânia. Infelizmente, isso acabou só piorando as coisas... (Mazzoni, 2022, p. 31-32).
Independentemente das raízes históricas do conflito e quais sejam os seus desdobramentos, o fato é que ele altera definitivamente a história e principalmente como projetamos o seu desenrolar, após todo esforço internacional de paz da sociedade global, como salientado no livro Guerra da Ucrânia entenda o conflito que reconfigurou a geopolítica mundial:
Mesmo que a paz na Ucrânia fosse selada hoje, nada mais seria como antes. Fantasmas do século XIX (como países invadindo outros para tomar territórios, ou da Guerra Fria, como o Exército Russo marchando rumo a Europa Ocidental), que até 24 de fevereiro de 2022 pareciam anacronismos, tão improváveis e fora do imaginário que não eram retratados nem mesmo na ficção Hollywoodiana, se mostraram perturbadoramente reais. (Ed, 2022, P. 43).
2.1. O conflito na perspectiva do Direito Internacional Humanitário.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha - CICV, responsável pela promoção e o desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário DIH, assim conceituou o DIH:
O Direito Internacional Humanitário (DIH) regula as relações entre Estados, organizações internacionais e outros sujeitos do direito internacional. É uma área do direito internacional público que se fundamenta em normas que, em tempos de conflito armado, procura - por motivos humanitários - proteger as pessoas que não participam ou que tenham deixado de participar diretamente das hostilidades, ademais de restringir os meios e métodos de guerra. Em outras palavras, o DIH consiste de normas de tratados internacionais ou de direito consuetudinário (por exemplo, as normas que surgem da prática dos Estados e são observadas por um sentido de obrigação), cuja finalidade específica é resolver problemas humanitários derivados diretamente do conflito armado, seja este de caráter internacional ou não internacional. (CICV, 2015, p.4).
Born acrescenta que:
O direito humanitário se ramifica no direito de guerra (Jus ad bellum) e no direito na guerra (Jus in bello). No primeiro caso, em respeito à Carta das Nações Unidas todos os Estados têm o dever de se abster de recorrer à ameaça ou ao emprego da força contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, conforme definido no Preâmbulo do Protocolo Adicional I de 1977 (Brasil, 2003). Entretanto, se a guerra foi inevitável, é compulsório respeito ao Jus in bello (direito na guerra) para reafirmar e desenvolver a proteção às vítimas dos conflitos armados (Brasil, 2003). (Born, 2020, p. 85).
Neste sentido, aliando o relato histórico das origens do confronto entre Rússia e Ucrânia com os primados, expostos por Born, do Jus ad bellum, é nítido que a Rússia sempre recorreu à ameaça ou ao emprego da força contra a soberania, integridade territorial ou independência política da Ucrânia, e, como destacou Mazzoni, sob as vistas, feitas de cegas, de toda comunidade internacional, em especial a União Europeia, que disputava com a Rússia a influência sobre os destinos dessa Nação.
Com relação ao Jus in bello, a coisa também não parece ser diferente, haja vista os relatos jornalísticos a respeito das mortes de civis, ataques a alvos desse tipo, a crise migratória, a situação dos corredores humanitários, dos campos de refugiados e dos populares que enfrenta todo o desabastecimento e caos na infraestrutura ucraniana.
Segundo Born, o DIH surge a partir da encomenda do presidente norte-americano Abraham Lincoln, após a Guerra da Secessão (1861/1865), de um código humanitário, para regular a atuação do exército do norte, surgindo, posteriormente, diversas escolas, que desenvolveram esse Direito.
O mesmo autor destaca as três escolas mais importantes, convencionalmente chamadas de Direito de Haia, Direito de Genebra e Direito de Nova Iorque, nomenclaturas inspiradas nas origens ou nomes das convenções, protocolos ou resoluções que lhes dão respaldo jurídico.
O Direito de Haia regula o conflito, limitando as práticas militares de guerra. O Direito de Genebra protege as vítimas do confronto e o Direito de Nova Iorque trata dos Direitos Humanos durante o conflito.
Desta forma a guerra passa a ser limitada por princípios, principalmente os da humanidade, que protege os direitos humanos, e o da necessidade, relacionado aos fundamentos do conflito, sendo, por isso, intoleráveis métodos como a espionagem, o sítio e o bombardeio, todos amplamente praticados na Guerra Russo-Ucraniana.
Born ressalta que o DIH protege tanto feridos e doentes, náufragos, pessoal religioso, pessoa e população civil, como os combatentes, guerrilheiros e prisioneiros de guera, bem como bens culturais e locais de culto, todos indiscriminadamente atingidos pelos bombardeios russos na Ucrânia, em um verdadeiro massacre humano e civilizacional, com cidades inteiras reduzidas à ruína.
Ao discorrer sobre a proteção quanto aos efeitos dos ataques e o teatro das operações militares, Born esclarece que:
Quanto aos objetivos militares, a ação militar de destruição total ou parcial de bens deve ser justificada por uma efetiva vantagem militar e ponderada pela sua natureza, localização, destino ou utilização (...)
O protocolo de Genebra não permite o ataque a localidades não defendidas por Forças Armadas. (Born, 2020, p. 88).
2.2. A resposta das organizações internacionais.
Mesmo da análise em linhas gerais dos preceitos trazidos pelo DIH e suas principais fontes normativas, resta claro o grave desrespeito que esse Direito Internacional vem sofrendo no conflito.
A não contenção da guerra anunciada aliada a sua perpetuação no tempo já denotam o fracasso, ainda que pontual, na efetividade do DIH, tendente ao descredito total, pelo exemplo que está sendo dado para as demais nações que assistem o confronto russo-ucraniano.
As sanções e ações de repúdio ao conflito estabelecidas pela Organização das Nações Unidas -ONU, não impediram ou sequer travaram a marcha do conflito, até o momento, tão pouco a ajuda humanitária promovida pela Cruz Vermelha e demais nações solidárias a parte atacada no conflito conseguiram impedir a morte de civis ou estancar a crise de refugiados, promovendo a fulga e o acolhimento de todos os necessitados.
3. Considerações Finais
A Guerra Russo-Ucraniana ressalta os limites do Direito Internacional Humanitário e das organizações internacionais na promoção da almejada paz mundial, reclamando mecanismos mais efetivos para o atingimento de tão elevado objetivo.
Os fantasmas das duas grandes guerras mundiais e da guerra fria ressurgem ainda mais ameaçadores em um mundo com poderio bélico nuclear cada vez maior, tornando a pacificação mundial, mais do que desejável, uma questão vital, ainda mais distante e difícil de se alcançar do que se poderia supor antes.
O avanço organizacional e legislativo da comunidade internacional, em torno da manutenção da paz, mostrou-se como mera miragem, que se desvanece em um piscar de olhos.
Resta saber se a paz mundial é uma utopia ou se alguma organização ou norma é capaz de suprimir a violência do coração humano. Sobreviveremos a nossa inclinação a autodestruição mútua hobbesiana? Só os rumos desse conflito, e de outros que certamente virão, poderão responder essa questão.
Referências Bibliográficas
Born, R. C. (2020). Panorama de direito militar e humanitário. Curitiba, PR: Contentus.
CNN Brasil (2022). Entenda a Guerra da Ucrânia em 10 pontos. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-a-guerra-da-ucrania-em-10-pontos/
Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2015). Direito Internacional Humanitário (DIH) respostas às suas perguntas. Recuperado de https://www.icrc.org/pt/publication/direito-internacional-humanitario-dih-respostas-suas-perguntas
(Ed.). (2022). Guerra da Ucrânia: entenda o conflito que reconfigurou a geopolítica mundial. Mundo dos Curiosos. eBook Kindle.
Kurishenko, M. (2022). Lágrima da Ucrânia: Uma História da Ucrânia, Rússia, União Soviética. eBook Kindle.
Mazzoni, M. (2022). História da Ucrânia do começo até a guerra atual. Magic History. eBook Kindle.