Capa da publicação Injúria racial: alterações da Lei nº 14.532/23
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Injúria racial e as alterações promovidas pela Lei nº 14.532/23

23/01/2023 às 22:09
Leia nesta página:

A Lei 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, como inafiançável e imprescritível, na esteira da decisão do STJ em 2015.

Em 11 de janeiro de 2023, foi sancionada a Lei 14.532, que alterou a Código Penal e a Lei 7.716/89, que prevê os crimes de racismo e entrou em vigor na data de sua publicação.

Neste contexto, faremos uma análise das mudanças promovidas pelo citado diploma legal e sua aplicação no dia a dia.

A Constituição Federal trouxe em seus dispositivos o que foi chamado de mandados constitucionais de criminalização que de forma sintética significa que o legislador constituinte trouxe um dever ao legislador infraconstitucional para editar leis visando criminalizar determinadas condutas.

Um destes mandados de criminalização está previsto no artigo 5, inciso XLII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Nesta esteira, em 1989 foi editada a Lei 7716 que trouxe as condutas que se enquadram na prática de racismo e em 1997 foi inserido no artigo 140 em seu §3° a denominada injúria racial.

A grande discussão passou a ser sobre o fato de as condutas previstas na Lei 7716 serem inafiançáveis e imprescritíveis e a ação penal ser pública incondicionada, enquanto a injúria racial previa a necessidade de representação da vítima e como não estava contida no rol de condutas da lei 7716 em tese seria cabível a aplicação de fiança, além de se sujeitar a prescrição.

A doutrina e jurisprudência passaram a se debruçar sobre o tema e o STJ no ano de 2015 em decisão proferida no AREsp 686.965/DF considerou a injúria racial como inafiançável e imprescritível, equiparando-a ao crime de racismo:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INJÚRIA RACIAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA NOS AUTOS DE CERTIDÃO EMITIDA POR SERVENTUÁRIO DA JUSTIÇA ABRINDO PRAZO PARA A RESPOSTA AO REFERIDO RECURSO. TEMPESTIVIDADE DO AGRAVO AFERIDA EM CONFORMIDADE COM A SÚMULA N.448 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - STF. DECISÃO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO DE ARTIGOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INVIABILIDADE EM RECURSO ESPECIAL. IMPRESCRITIBILIDADE DO DELITO DE INJÚRIA RACIAL. DECADÊNCIA. INEXISTÊNCIA, IN CASU. RECURSO DESPROVIDO.

1. Não há que se falar em cerceamento de defesa, porquanto consta dos autos documento assinado por serventuário da justiça certificando que, em 22.1.2015, as partes foram intimadas para responderem, no prazo de 5 (cinco) dias, o recurso de agravo em recurso especial.

2. O agravo é tempestivo, pois consoante a Súmula n.448 do Supremo Tribunal Federal: "O prazo para o assistente recorrer, supletivamente, começa a correr imediatamente após o transcurso do prazo do Ministério Público."

In casu, sequer consta nos autos a informação de que o Ministério Público tenha sido intimado pessoalmente da decisão que inadmitiu o recurso especial.

3. O recurso da parte adversa traz tópico específico acerca da prescrição, não havendo que se falar em decisão extra petita, no ponto.

4. Não cabe, na via do recurso especial, a análise de suposta violação de artigos da Constituição Federal.

De acordo com o magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei n.9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão.

5. A injúria racial é crime instantâneo, que se consuma no momento em que a vítima toma conhecimento do teor da ofensa. No presente caso a matéria ofensivo foi postada e permaneceu disponível na internet por largo tempo, não sendo possível descartar a veracidade do que alegou a vítima, vale dizer, que dela se inteirou tempos após a postagem (elidindo-se a decadência).

O ônus de provar o contrário é do ofensor.

6. A dúvida sobre o termo inicial da contagem do prazo decadencial, na hipótese, deve ser resolvida em favor do processo.Agravo Regimental desprovido.

(AgRg no AREsp n. 686.965/DF, relator Ministro Ericson Maranho (Desembargador Convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 18/8/2015, DJe de 31/8/2015.)

A decisão gerou grande discussão na doutrina e jurisprudência com a concordância de alguns e discordância de outros.

Em 2021, o STF instado a se manifestar sobre o assunto no HC 154.248 decidiu que o delito de injúria racial seria imprescritível, mas foi silente quanto a inafiançabilidade:

HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ESPÉCIE DO GÊNERO RACISMO. IMPRESCRITIBILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Depreende-se das normas do texto constitucional, de compromissos internacionais e de julgados do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento objetivo do racismo estrutural como dado da realidade brasileira ainda a ser superado por meio da soma de esforços do Poder Público e de todo o conjunto da sociedade.

2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo.

4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível.

5. Ordem de habeas corpus denegada.

Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relator(a): Min. EDSON FACHIN. Julgamento: 28/10/2021 Publicação: 23/02/2022.

Nesta decisão o STF considerou a injúria racial como espécie do gênero racismo.

Paralelo a esta discussão e as decisões dos Tribunais Superiores, o Congresso Nacional passou a discutir o tema com a apresentação do PL 1749/2015 que recebeu um texto substituto no Senado passando a PL 4566/21 que culminou com a promulgação da Lei 14532/23 com entrada em vigor a partir da data de sua publicação.

Após esta breve retrospectiva histórica passemos a análise da já mencionava lei que de imediato revogou em parte o texto previsto no artigo 140 §3° do Código Penal inserindo o art 2° -A na Lei 7716/89 que passou a vigorar com o seguinte dispositivo:

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

De imediato com a inserção da conduta típica de injuriar alguém em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional na lei 7716 passou assim a ter como ação penal pública incondicionada, além da inafiançabilidade e imprescritibilidade.

Ademais a pena foi aumentada de 1 a 3 anos para de 2 a 5 anos com causa de aumento de pena no caso de ser cometido em concurso de pessoas.

Importante destacar que o artigo 140 §3° do Código Penal não foi revogado, passando a abranger a injúria relacionada a elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Eis o texto atual do artigo em comento após alterações:

Art. 140. - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência: (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

A ação penal permanece sendo pública condicionada a representação e a pena foi mantida em 1 a 3 anos de reclusão.

Curioso neste caso que o artigo 1° da Lei 7716/89 deixa claro que a lei vai punir os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de religião, mas a Lei 14.532/23 não contemplou essa possibilidade.

No artigo 20 da Lei 7716/89 houve pequena modificação no §2° para contemplar como qualificadora em caso de publicação em rede social e a na rede mundial de computadores.

A nosso ver a redação anterior já contemplava a possibilidade de incidência da qualificadora pois o texto falava em meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.

Nestes casos a pena será de reclusão de 2 a 5 anos.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Também foi inserido o §2°-A no artigo 20 e o texto legal passou a ter a seguinte redação:

§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público: (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Verifica-se que em caso de praticar, induzir ou incitar a discriminação em contexto de atividades esportivas e outras destinadas ao público constitui mais uma qualificadora para conduta com previsão além da pena de reclusão, a proibição de frequência por 3 anos aos locais onde se deu a prática criminosa.

Neste particular, importante citar, infelizmente, um exemplo que ocorreu no ano de 2014 em uma partida de futebol em Porto Alegre/RS onde uma "torcedora" fez gestos imitando um macaco direcionando ao jogador de futebol que defendia o clube adversário.

Outra inovação legislativa foi a inserção do §2°-B que previu a aplicação do caput do artigo 20 a quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas.

§ 2º-B Sem prejuízo da pena correspondente à violência, incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Outra inovação legislativa foi a introdução do artigo 20-A que tem a seguinte redação:

Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

O texto trata justamente do que foi denominado como racismo recreativo onde a pretexto de fazer uma piada verdade a conduta da pessoa reveste-se da prática camuflada de discriminação, causando sofrimento e dor a quem é alvo da pretensa “brincadeira”.

Houve também a inclusão da causa de aumento de pena caso as condutas descritas no artigo 2°-A e 20 da lei em comento seja praticado por funcionário público, sendo remetido o seu conceito daquele previsto no Código Penal, tendo em vista ser uma norma penal em branco.

Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando praticados por funcionário público, conforme definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023).

Já no artigo 20-C houve uma chamada “regra” ou “norte” deixado pelo legislador ao juiz para na aplicação da lei avaliar e comparar se a conduta praticada seria dispensada da mesma forma a outros grupos de pessoas em razão de aspectos ligados a cor, etnia, religião ou procedência.

Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

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Para encerrar, foi inserido o artigo 20-D que veio com o intuito de tornar obrigatório que a vítima de racismo deverá estar acompanhada de advogado ou defensor público em todos os atos processuais como uma forma de orientação e proteção aos interesses da pessoa que foi vítima de absurda, reprovável e abominável conduta. discriminatória.

Esta é a redação do artigo citado acima:

Art. 20-D. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a vítima dos crimes de racismo deverá estar acompanhada de advogado ou defensor público. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)


SÍNTESE

Em suma, a Lei 14532/23 inseriu a injúria racial na Lei 7716, encerrando de vez a discussão sobre a natureza da ação penal, a inafiançabilidade e imprescritibilidade, ao passo que tratou com mais rigor a prática da conduta, passando a prever a pena de reclusão de 2 a 5 anos.

Manteve a injúria em razão de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idoso ou com deficiência no Código Penal sem alterar a pena e a natureza da ação penal.

O artigo 20 recebeu modificações para dispor sobre qualificadores em caso da conduta ser praticada por meio da rede mundial de computadores e redes sociais, além de trazer qualificadora quando a conduta for em contexto de práticas esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público.

Trouxe ainda uma causa de aumento de pena quando a conduta for praticada sobre o pretexto do denominado racismo recreativo.

Houve a inserção de causa de aumento de pena caso a conduta seja praticada por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.

Introduziu também uma premissa para que possa servir de balizamento para interpretação se a conduta foi ou não discriminatória ao comparar se a mesma conduta seria feita da mesma forma com outros grupos sociais.

Previu a obrigatoriedade da vítima estar acompanhada de advogado ou defensor público em todos os atos processuais.

Por fim a lei entrou em vigor na data da publicação.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília. DF. Senado Federal. 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 22 de jan. 2023.

BRASIL. Decreto-Lei n° 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília. DF. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm> Acesso em 22. jan. 2023.

BRASIL. Lei 14532/2023, de 11 de janeiro de 2023. Brasília. DF. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14532.htm> Acesso em 22. jan. 2023.

BRASIL. Lei 7716/89, de 05 de janeiro de 1989. Brasília. DF. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm> Acesso em 22. jan. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Penal e Processo Penal. AgRg no AREsp 686965 / DF, Brasília, DF, 31 de agosto de 2015. Disponível em <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201500822903> Acesso em 22. jan. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Penal e Processo Penal. Habeas Corpus 154248/DF. Brasília, DF, 28 de outubro de 2021. Disponível em <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5373453> Acesso em 22. jan. 2023.

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Sobre o autor
Felipe Gonçalves Martins

Delegado de Polícia do Estado do Paraná. Ex-Delegado de Polícia do Estado do Acre. Ex-inspetor de Polícia do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Graduado em Direito Penal e Criminal pela Universidade Cândido Mendes (RJ). Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Única (MG). Pós-Graduado em Direito Administrativo pela Faculdade Única (MG). Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (RJ). Graduado em Teologia pela Universidade Unicesumar (PR).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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