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A constitucionalidade da Lei Maria da Penha

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Introdução

            Em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei nº. 11.340/06, denominada Maria da Penha. Foi uma resposta às incansáveis lutas dos movimentos em defesa das mulheres, bem como o atendimento à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

            Com a vigência da Lei Maria da Penha, surgiram divergências acerca da sua constitucionalidade. Aqueles que sustentam a inconstitucionalidade, apesar de integrarem a minoria (neste sentido, Santin [01] e Campos [02]), afirmam que a lei fere o princípio da isonomia, na medida em que estabelece uma desigualdade somente em função do sexo. Ademais, a mulher vítima seria beneficiada por melhores mecanismos de proteção e de punição contra o agressor. Já o homem não disporia de tais instrumentos quando fosse vítima da violência doméstica ou familiar.

            Com a intenção de contribuir para o debate deste tema polêmico e extremamente instigante para a comunidade jurídica, pretendemos, inicialmente, apresentar as inovações trazidas pela lei de violência doméstica e familiar contra a mulher, para logo após abordar a igualdade formal e material, seus conceitos e implicações. Posteriormente abordaremos as relações de gênero e poder. Ao final, apresentaremos as justificativas para a tutela específica.


Inovações da Lei Maria da Penha

            O art. 1º da Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, definida como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (art. 5º).

            Neste ponto, para que a Lei seja aplicada no caso concreto, devem ser atendidos os seguintes requisitos:

            a) A ação ou omissão deve ser baseada no gênero. De acordo com Silva Júnior (2006), a violência baseada no gênero pressupõe uma relação caracterizada pelo poder e submissão do homem sobre a mulher, baseada na histórica desigualdade entre os sexos.

            b) A violência deve ser perpetrada no âmbito da unidade doméstica, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto (incisos I, II e III do art. 5º);

            c) A mulher deve ser sujeito passivo do crime. Ressalte-se que o sujeito ativo tanto pode ser homem como mulher, em virtude de o parágrafo único do art. 5º estabelecer que as relações pessoais independem de orientação sexual. Dessa forma, a Lei Maria da Penha consagrou expressamente as uniões homoafetivas como entidades familiares.


Igualdade formal e material

            A Constituição Federal estabelece, no caput do art. 5º, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a todos direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade.

            Assim, na lição de José Afonso (2005), a igualdade constitui o signo da democracia e é reforçada em outras normas, como no inciso I do art. 5º, que assegura a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações.

            Tanto a CF/88 como as outras Constituições tratam de forma expressa tão somente a igualdade perante a lei, no sentido de que as normas devem ser elaboradas e aplicadas indistintamente a todos os indivíduos. É a denominada isonomia formal. Entretanto, tal isonomia não leva em conta a existência de grupos ditos minoritários ou hipossuficientes, que necessitam de uma proteção especial para que alcancem a igualdade não apenas normativa, mas baseada em ideais de justiça (isonomia material).

            Neste aspecto, quando se afirma que a igualdade deve ser buscada sem distinção, não significa que a lei deve tratar a todos abstratamente iguais. (SILVA, 2005). Na Antiguidade, Aristóteles já ensinava que a verdadeira igualdade, que almeja primordialmente a dignidade da pessoa humana, consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

            Quanto a este ponto, Moraes (2005) afirma que o que a lei veda são as diferenciações arbitrárias e as discriminações absurdas. Tal elemento discriminador só será válido se estiver a serviço de alguma finalidade acolhida pelo Direito, como por exemplo, na busca da igualdade de condições sociais.

            E como a igualdade material é implementada? A sua concretização - se é que se pode falar que ela, de fato, existe - se dá tanto através de leis específicas, como pela adoção de políticas públicas pelo Estado. Cavalcanti (2007) elucida que, constatada a desigualdade em relação a uma determinada classe de indivíduos, como as mulheres ou as minorias étnicas, as ações positivas são o meio direto e eficaz para alcançar a igualdade real.

            Portanto, as ações afirmativas são medidas imprescindíveis no Estado Democrático de Direito para fazer mais curta a espera de milhões de pessoas que almejam sentir-se parte da sociedade, fruindo da igualdade de pontos de partida. Só uma ação positiva que seja suficientemente proporcional e que não produza dano desproporcional a terceiros será constitucional e poderá implantar-se com êxito na sociedade atual.

            Nesse contexto, a Lei Maria da Penha é um exemplo de ação afirmativa. Implementada no Brasil para a tutela do gênero feminino, justifica-se pela situação de vulnerabilidade e hiposuficiência em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.


Relação de gênero e poder

            O Brasil sempre esteve inserido num sistema patriarcal, em que a dominação masculina evidencia-se na organização da sociedade. Teles e Melo (2002) ressaltam que a desigualdade entre homens e mulheres não se dá por fatores biológicos, e sim em virtude dos papéis sociais impostos a ambos, reforçados por culturas patriarcais que estabelecem relações de dominação e violência entre os sexos. Assim, a origem da violência de gênero está na discriminação histórica contra as mulheres.

            Neste ponto, Giordani (2006) acrescenta que este fenômeno histórico se deve ao fato de que as relações construídas pela sociedade são transmitidas de geração para geração, cristalizando papéis diferenciados para mulheres e homens e evidenciando a desigualdade entre os sexos.

            Sendo assim, essa visão de dominação masculina e de fragilidade da mulher, entre outros fatores, impediu que as mesmas avançassem em proporção semelhante à dos homens em diversos setores, sejam eles sociais ou profissionais, motivo de tantas lutas dos movimentos feministas em prol dos direitos das mulheres.


Justificativas para tratamento específico

            São diversas as justificativas para que a mulher vítima de violência doméstica seja merecedora de proteção específica:

            a) O Estado deve buscar uma isonomia material, tratando os desiguais na medida de suas desigualdades, de forma não abusiva;

            b)As mulheres formam um grupo especial (assim como as crianças e os idosos), porque, ao longo dos séculos, foram vítimas da dominação do homem sobre as mesmas;

            c)Os tratados internacionais ratificados pelo Brasil apontam a necessidade de uma maior proteção às mulheres, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que impõe aos Estados-partes as obrigações de eliminar a discriminação e assegurar a igualdade; bem como em atenção à Convenção de Viena, em que a violência baseada no gênero foi reconhecida como violação aos direitos humanos.

            Imprescindível, portanto, a atuação do Estado na implementação de políticas públicas, seja na criação da lei, como em sua aplicação, na busca de uma maior proteção às vítimas de violência doméstica.

            Ainda quanto às justificativas, devem-se ressaltar os impressionantes índices de violência doméstica e familiar no Brasil. Sabe-se que, por ser um tipo de violência que ocorre no âmbito das relações intrafamiliares, não existem dados absolutos sobre a temática porque muitos casos não chegam ao conhecimento da sociedade e do Estado. Isso se deve ao fato de que as mulheres suportam longos anos de agressões e humilhações na expectativa de que tudo possa melhorar, ou até mesmo por medo, vergonha ou dependência do agressor.

            Segundo consta no Relatório Nacional Brasileiro, a cada 15 segundos uma mulher é agredida:

            "Basta contar até 15 e pronto: já passaram 15 segundos. Parece ser um lapso de tempo tão insignificante, durante o qual nada acontece, tanto que o período de 24 horas contém 5.760 vezes a fração de 15 segundos. (...) isto é, a cada dia, 5.760 mulheres são espancadas no Brasil" [03]

            Maria Berenice ainda aponta outros dados [04]:

            - 25% das mulheres são vítimas de violência doméstica;

            - 33% da população feminina admite já ter sofrido algum tipo de violência doméstica;

            - Em 70% das ocorrências de violência doméstica contra a mulher, o agressor é marido ou companheiro

            - Os maridos são responsáveis por mais de 50% dos assassinatos de mulheres e, em 80% dos casos, o assassino alega defesa da honra

            - 1,9% do PIB brasileiro é consumido no tratamento de vítimas da violência doméstica;

            - 80% das mulheres que residem nas capitais e 63% das que residem no interior reagem às agressões que sofrem;

            - 11% das mulheres foram vítimas de violência durante a gravidez e 38% delas receberam socos e pontapés na barriga;

            - São registradas por ano 300 mil denúncias de violência doméstica

            Diante de tais estatísticas, observa-se o quão assustadores são os índices de violência doméstica no Brasil. As chances de uma mulher sofrer algum tipo de agressão pelo companheiro é muito maior que, de forma ocasional, por um desconhecido. Dessa forma, como não concluir que a mulher se encontra em situação de hipossuficiência e necessita da lei 11.340/06 a seu favor? A violência doméstica há muito deixou de ser um problema de ordem privada, passando a ser interesse de toda a coletividade.

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            Segundo Cavalcanti [05] (2007), a lei 11.340/06 não é perfeita, mas traz em seu bojo, dentre outros aspectos, todo o procedimento a ser seguido tanto pela Polícia Judiciária, Ministério Público e Judiciário. Também estabelece medidas protetivas de urgência relativas à vítima. Assim, a lei Maria da Penha possui um espírito muito mais educacional e de incentivo às ações afirmativas que de punição mais severas aos agressores.

            Entende-se que poderia haver divergências sobre a inconstitucionalidade da lei se a mesma incidisse sobre qualquer caso de violência contra a mulher, e não apenas a doméstica. Seria desarrazoado, por exemplo, aplicar a Lei Maria da Penha no caso de uma mulher que foi agredida na rua por um desconhecido (homem), recebendo este tratamento mais recrudescedor.

            Entretanto, não é isso que ocorre! A Lei visa à proteção das mulheres em relação aos membros da sua comunidade familiar, formada por vínculos de parentesco natural (pai, mãe, filha etc), civil (marido, sogra, padrasto ou outros), por afinidade (primo ou tio do marido, por exemplo) ou afetividade (amigo que mora na mesma casa) (CAVALCANTI, 2007). Isto é, assegura maior proteção frente àqueles indivíduos que deveriam proporcionar à vítima (mulher) um mínimo de amor, respeito e dignidade, valores que devem estar presentes em qualquer entidade familiar.

            Ademais, no âmbito doméstico e familiar, dentre os casos de violência doméstica, é quase absoluto se tratar de violência cometida contra mulheres e crianças. É raro alguém presenciar ou noticiar um caso de violência doméstica em que a vítima era o companheiro/marido e a mulher, a agressora.

            Uma das discussões apontadas por aqueles que defendem a inconstitucionalidade da lei é que se um pai, por exemplo, em uma mesma situação, agride a esposa e o filho, causando lesões corporais leves em ambos, o tratamento dado ao agressor seria mais severo em relação à esposa (amparada pela Lei Maria da Penha). Em relação ao filho, a persecução penal seguiria o procedimento da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais). Não é assim que acontece. Estando uma das vítimas protegidas pela Lei 11.340/06, a competência é deslocada para o âmbito do Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher (Dias, 2007).

            Tanto os operadores do direito, como profissionais de outras áreas que trabalham a temática da violência doméstica não vislumbram sua inconstitucionalidade. Afinal, estão presenciando as mudanças positivas trazidas pela lei 11.340/06.

            Tal constatação foi extraída pela equipe do Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Alagoas. O grupo estuda o tema "Violência Doméstica contra a Mulher em Maceió" e a segunda etapa da pesquisa consistiu em entrevistas às Instituições ligadas à violência doméstica em Maceió: Delegacia de Defesa da Mulher, CAV-CRIME, Centro de Referência Dra. Terezinha Ramirez, Instituto da Mulher e o Ministério Público.

            Quando perguntado aos profissionais sobre quais as mudanças mais visíveis ocorridas de imediato com o advento da lei Maria da Penha, estes foram unânimes em afirmar que as mulheres estão se sentindo mais seguras para denunciar os seus agressores e estão procurando tais Instituições com enorme freqüência para obter informações sobre a lei e/ou denunciar seus agressores.

            De acordo com dados colhidos na Delegacia de Defesa da Mulher, no ano de 2006 foram registrados 800 casos de violência doméstica contra a mulher. Já até março de 2007, ou seja, apenas nos três primeiros meses do ano, já são 600 casos formalizados, quase a média de todo o ano de 2006.

            Ressalte-se também a banalização da violência doméstica pela lei nº. 9.099/95, que gerava um sentimento de impunidade, pois o tratamento dado por este diploma legal à repressão à violência doméstica contra a mulher se mostrava insuficiente para solucionar os problemas advindos das relações familiares.

            A violência doméstica era tratada como um crime de menor potencial ofensivo, embora atingisse toda uma estrutura familiar, prejudicando não só a mulher, como os filhos do casal. Para se ter uma idéia, apenas 2% dos agressores eram condenados. A maioria dos processos eram, portanto, extintos ou a condenação consistia em pagamento de cestas básicas pelo agressor, sendo a dignidade e integridade da mulher mensuradas em quantidade de cestas de alimentos, que obviamente seriam revertidas quase sempre ao próprio agressor. Afinal, o casal, na maioria das vezes, não se separava.

            Ademais, não se pode deixar de atender ao verdadeiro espírito da lei em favor de uma interpretação puramente legalista. A Lei Maria da Penha deve ser interpretada e aplicada de modo a se tornar um instrumento hábil de prevenção e repressão à violência doméstica contra a mulher.

            Assim, entendemos que a Lei Maria da Penha não é inconstitucional. Muito pelo contrário, ela necessita ser aplicada em todos os seus termos, pois só assim estaremos dando o primeiro passo na luta contra a violência doméstica no Brasil. Devemos também cobrar dos Estados a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar ou de Varas especializadas, a fim de oferecer atendimento humanizado às vítimas e tratamento aos agressores, rompendo, assim, com o nefasto ciclo da violência.


REFERÊNCIAS

            CAVALCANTI, Stela Valéria de Farias. Violência Doméstica Contra a Mulher. Análise da Lei "Maria da Penha", n° 11.340/06. Podivm: Bahia, 2007.

            DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

            DIAS, Maria Berenice. Quinze segundos, 2002. Disponível em: <http://www.pagu.org.br>. In: Conversando sobre Justiça e os Crimes contra as Mulheres.

            DIAS, Maria Berenice. ... Falando em Violência doméstica. Disponível em <http://www.mariaberenicedias.com.br> Acesso em: 10/06/2007.

            MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

            SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Direito Penal de Gênero. Lei nº 11.340/06: Violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1231, 14 nov. Acesso em: 17/05/2007.

            SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

            TELES, M.A. de A.; MELO,M. de. O que é violência contra mulher. São Paulo: Brasiliense, 2002.

            GIORDANI, Annecy Tojeiro. Violências contra a Mulher. São Paulo: Yendis, 2006.


NOTAS

            01

SANTIN, Valter Foleto. Igualdade Constitucional na Violência Doméstica. Disponível em: <http://www.apmp.com.br/juridico/santin>. Acesso em: 17/06/2007.

            02

CAMPOS, Roberta Toledo. Aspectos Constitucionais e Penais Significativos da Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 16/06/07.

            03

DIAS, Maria Berenice. Quinze segundos, 2002. Disponível em: <http://www.pagu.org.br>. In: Conversando sobre Justiça e os Crimes contra as Mulheres.

            04

DIAS, Maria Berenice. ... Falando em Violência doméstica. Disponível em <http://www.mariaberenicedias.com.br> Acesso em: 10/06/2007.

            05

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de. Violência Doméstica. Análise da Lei "Maria da Penha", nº 11.340/06. Bahia: Podivm, 2007. p.175
Assuntos relacionados
Sobre as autoras
Andresa Wanderley de Gusmão Barbosa

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, colaboradora do Laboratório de Direitos Humanos da UFAL

Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti

promotora de Justiça em Maceió (AL), mestra em direito público pela Ufal, autora do livro "Violência Doméstica contra a mulher: análise da lei Maria da Penha"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Andresa Wanderley Gusmão ; CAVALCANTI, Stela Valéria Soares Farias. A constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1497, 7 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10249. Acesso em: 23 dez. 2024.

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