2. FORMA DE INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO
2.1 AS GENERALIDADES DO INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO
Estabelece o artigo 37, inciso I, da Constituição Federal35, que os cargos, empregos e funções públicos são acessíveis a todos, brasileiros e estrangeiros, quando preenchidos os requisitos legais. Salienta-se que apenas em casos excepcionais é que a reserva dos cargos é feita aos brasileiros natos. Essa regra destina-se aos cargos estratégicos – privativos – como ocorre com o Presidente da República e seu vice, Presidente da Câmara e, também, do Senado, Ministro de Defesa e outros.
Concurso público, nas lições de José dos Santos Carvalho Filho, é conceituado como
[...] o procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos ao provimento de cargos e funções públicas. Na aferição pessoal, o Estado verifica a capacidade intelectual, física e psíquica de interessados em ocupar funções públicas e no aspecto seletivo são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no procedimento, obedecida sempre a ordem de classificação.36
Como regra, o acesso aos cargos públicos se dá através de concurso público de provas ou de provas e títulos, como garantia de impessoalidade, moralidade e isonomia, uma vez que, dessa forma, são assegurados critérios de seleção objetivos, sem favoritismos ou discriminações.
Em resumo, são proibidas as contratações exclusivamente com base em currículos ou títulos, bem como em eventuais procedimentos que não incluam a realização de provas no certame.
Os concursos devem dispensar tratamento igualitário e impessoal sobre os concorrentes do certame, quais, se inexistentes, são capazes de desvirtuar as normas de Direito Público aplicáveis, sobretudo que concerne aos princípios da moralidade e da eficiência.
Consoante ao mencionado, os cargos públicos são acessíveis atendidos os regramentos da lei. Logo, não podem ser criados entraves para ingresso, nos editais, que não tenham fundamento legal. São vedadas quaisquer condições para ingresso nos cargos ou empregos públicos, ou ulterior acesso aos cargos e empregos, com fundamento em atos infralegais (regulamentos, instruções normativas etc.) exclusivamente.
E, ainda que a lei imponha determinadas condições, deverão ser sempre respeitados, sobretudo, os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como o princípio da impessoalidade.
De toda sorte, cumpre ressaltar que o ingresso do servidor público sem a observância dos preceitos normativos respectivos é absolutamente nulo. Na Justiça do Trabalho prevalece, inclusive, que a nulidade gera o direito ao recebimento de salários e contribuições ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o FGTS37. Não bastasse, o administrador responsável pela contratação ilegal pode ser responsabilizado pela má administração e, em tese, por ato de improbidade.
Paralelamente, somente disposições constitucionais podem afastar a exigência de cargo público, justamente com vistas a atender o escopo de interesse público, de forma que a nomeação se dá de forma direta. Diversos dispositivos constitucionais possuem referida reserva.
Ao condicionar a contratação ao concurso público, a Constituição, em verdade, garante a isonomia entre os interessados. Por este motivo é que se veda a realização de procedimentos de seleção interna, por exemplo, que limitam os interessados aos agentes já pertencentes ao quadro de pessoal da Administração Pública. Defende, com razão, Maria Sylvia Zanella di Pietro, que “daí não terem mais fundamentos algumas formas de provimento, sem concurso público, previstas na legislação ordinária anteriores à Constituição de 1988, como a transposição (ou ascensão) e a readmissão.”38
A primeira exceção se refere aos cargos em comissão. Segundo a redação do artigo 37, inciso II, do texto constitucional, estes cargos são objeto das funções de direção, chefia e assessoramento. O que se infere é que para eles é necessário estrito vínculo de confiança que as atividades exigem. Em decorrência desse fato, sendo a nomeação livre, também o é a exoneração.
Segunda hipótese é a dos servidores temporários, já que na Constituição não consta nenhuma exigência acerca da necessidade de concurso, sendo os requisitos específicos – como interesse público, transitoriedade, excepcionalidade e não contratação para ocupação de cargos efetivos – devidamente esmiuçados. Com efeito, a realização de concurso poderia colocar entraves a rápida contratação que demanda a urgência de servidores temporários.
Ainda a título de exceção, menciona-se os cargos eletivos em geral. Esses são ocupados por agentes políticos, que exercem a vontade do Estado e função de representação da sociedade por meio de eleições para os respectivos mandatos. Sendo manifestação legítima da demanda, não é compatível a exigência de provas.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, precisamente no artigo 53, inciso I, há outra exceção: ex-combatentes que participaram, efetivamente, de operações da Segunda Guerra Mundial.
A derradeira hipótese de ressalva ao concurso público é o cargo de agentes comunitários de saúde e o de agentes de combates às endemias. Segundo dispõe a norma do artigo 198, §4º, do texto constitucional, esses agentes se submeterão a processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade das atribuições que desempenhem e requisitos específicos para a atuação. A questão é regulada pela Lei 11.350/06, que define regras para a contratação desse pessoal – na forma de emprego público e que sempre atenderá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, suas atividades e áreas de atuação39.
Como exceção, aponta a doutrina de Matheus Carvalho, a nomeação direta de Ministros para os Tribunais de Contas, do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal Superior Eleitoral.40
2.2 O INGRESSO NAS ESTATAIS
A controvérsia sobre o tema se encontra no que tange às empresas estatais – sociedades de economia mista e empresas públicas – que se trata de pessoas jurídicas com personalidade de direito privado, integrantes da Administração Pública Indireta, que justamente faz parte do escopo do presente trabalho.
Embora seus contratados sejam empregados públicos, ou seja, regidos pelos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, mediante a vinculação por contratos de trabalho, a eles também são impostas restrições aplicáveis a todos os servidores públicos em geral, notadamente ao que se refere à necessidade de aprovação em concurso público.
À vista disso, para que haja admissão na relação de emprego, esses contratados devem ter sido previamente aprovados em concurso de provas ou de provas e títulos, consoante ao artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, salvo nos casos dos seus dirigentes, cuja nomeação e demissão é ad nutum.
É importante ressaltar que existem vozes na doutrina que apontam ser desnecessário concurso para as pessoas integrantes da Administração Pública Indireta que desenvolvem atividade econômica.41 Entre os que defendem essa corrente está Celso Antônio Bandeira de Mello que assegura,
Ressalve-se, todavia, que as pessoas estatais constituídas para exploração de atividade econômica disporão de liberdade para contratar diretamente seus empregados nas hipóteses em que (a) adoção de concurso público tolheria a possibilidade de atraírem e captarem profissionais especializados que o mercado absorve com grande presteza e interesse ou (b) nos casos em que o recurso a tal procedimento bloquearia o desenvolvimento de suas normais atividades no setor.42
Esse posicionamento é absolutamente minoritário, sendo já adotada, de forma quase totalitária, a posição de que a exigência de concurso público é interpretada da forma mais extensa possível, integrando inclusive todos as entidades da Administração Pública Indireta em qualquer que seja o propósito desenvolvido pela contratante.
Ainda em relação às estatais, parte da doutrina entende ser possível a contratação direta, isto é, sem concurso, para situações excepcionais, da necessidade de utilização dos préstimos de profissionais qualificados em ramos específicos da atividade desenvolvida. Apontam como fundamente que a exigibilidade de concurso público iria de encontro com à satisfação do interesse público e a desburocratização, que é princípio instituidor dessas empresas, o que levaria a perda de um determinado profissional para o mercado43.
3. A DISPENSA DO EMPREGADO PÚBLICO
Consoante ao já explicitado, o regime estatutário, que garante estabilidade aos contratados nessa modalidade, só se aplica aos ocupantes de cargos públicos. No mais, em relação às demais entidades da administração indireta – notadamente as empresas públicas e sociedades de economia mista –, admite a Constituição a contratação sob a modalidade de emprego público, sem dispensar, contudo, a realização de concurso.
Ocorre que as citadas empresas estatais são constituídas em regime híbrido, de forma que, mesmo sendo pessoas jurídicas de direito privado e se submetendo aos ditames das leis civis, comerciais e trabalhistas, esses, especialmente o último, são derrogados em parte pelas normas de Direito Público para garantir o controle pela vontade estatal e prevalência do interesse público primário.
Nas lições de Maria Sylvia de Zanella di Pietro,
[...] a Administração Pública confere às suas pessoas jurídicas privadas os meios de atuação de direito privado considerados mais adequados para a execução de determinadas atividades; mas simultaneamente, as submete, em parte ao regime administrativo, na medida considerada essencial para a consecução daqueles mesmos fins.44
Um exemplo dessa derrogação – que é determinante para os apontamentos do presente trabalho – é a exigência de concurso público para o ingresso na carreira, hipótese sequer aventada pela Consolidação das Leis do Trabalho, o que já foi devidamente abordado.
Embora haja vozes no sentido contrário, prevalece na doutrina que os empregados públicos celetistas não são agraciados com a estabilidade dos servidores estatutários. Nos termos da redação do artigo 41 da Constituição Federal, somente são estáveis, após o cumprimento das regras específicas sobre o tema, os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo. A nomeação e o status de cargo não são compatíveis com o regime de emprego público.
Sem prejuízo, dessa consideração, ela não implica que sua dispensa seja complemente “livre”.
De primeiro, cumpre ressaltar que, embora empregados públicos sejam regidos pelo regime celetista, cuja legislação adota o termo “demissão”, a boa técnica e os juristas especialistas no tema indicam que a melhor expressão a ser atualizada é “dispensa”, uma vez que envolve casos não sujeitos à existência de justa causa e não existe natureza punitiva.45 Conforme explica Maurício Godinho Delgado
A resilição contratual corresponderia a todas as modalidades de ruptura do contrato de trabalho por exercício lícito da vontade das partes. Neste grupo englobar-se-iam três tipos de extinção contratual: em primeiro lugar, a resilição unilateral por ato obreiro (chamada de pedido de demissão). Em segundo lugar, a resilição unilateral por ato empresarial (denominada dispensa ou despedida sem justa causa ou, ainda, dispensa desmotivada). Em terceiro lugar, a figura da resilição bilateral do contrato, isto é, o distrato. 46
Em segundo, em razão do paralelismo das formas, que a dispensa dos empregados públicos, como ato administrativo que é, demanda efetiva motivação e que não seja realizada arbitrariamente.
Ocorre que a dispensa do empregado público se configura ato administrativo, e como tal, depende de motivação, inclusive por restringir direitos de particulares. Nesse sentido, não se pode admitir a dispensa sem a necessidade de qualquer garantia de contraditório e ampla defesa.47
O mesmo entendimento acerca do ato de dispensa como ato administrativo é adotado por Ney José de Freitas,
O Estado empregador jamais se equipara ao empregador comum. Vale dizer: não se despe, em momento algum, da sua condição de poder público. Esse modo de observar atrai a conclusão de que o ato de despedimento do empregado público é ato administrativo, absorvendo todo o aparato normativo e doutrinário criado para envolver essa espécie de ato jurídico, sob pena de desacato à lógica e, o que é mais grave, não oferecendo ao ato de despedimento uma qualificação jurídica adequada, o que não se compadece com a visão sistemática do Direito.48
Portanto, a contratação de pessoal para as empresas públicas e sociedades de economia mista sofrem condicionamento, tanto no que tange à admissão de empregados públicos, quanto no que se refere à impossibilidade de livre desligamento dos contratados.
Se, em tese, pode o particular desligar empregado quando queira, em decorrência do poder de comando exercido49, o mesmo direito potestativo não cabe em relação ao empregado público. A relação entre empregados e Administração possui peculiaridades também nesse tocante.
Essa conclusão advém do fato de que, embora não rejam negócios particulares, tampouco seja cogente o princípio da livre iniciativa nesse nicho, os empregados públicos conduzem assuntos de interesse de toda a coletividade, demandando que a dispensa seja ato que exige especial atendimento às finalidades públicas. Isso significa dizer que são imperativos também para a dispensa o atendimento dos princípios da moralidade, publicidade, transparência e necessidade de fundamentação do ato administrativo.
Com efeito, a dispensa, por conseguinte, demanda apuração regular de faltas ou insuficiências técnicas ou, ainda, redução no quadro de pessoal ou despesas a ele relativas, devidamente comprovadas, a partir de prévia divulgação dos critérios objetivos adotados e sujeitas ao contraditório e ampla defesa.
O ato de dispensa deve ser ato formal, no qual serão esmiuçados os motivos da rescisão unilateral, ou seja, a motivação é obrigatória, embora, supostamente, isentada a existência de processo administrativo.
Em relação aos requisitos do ato administrativo, o motivo é elemento essencial deles, a partir da intelecção do artigo 2º da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular)50, que não se confunde com a motivação. Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro, a “motivação é a exposição dos motivos, ou seja, é a demonstração, por escrito, de que os pressupostos de fato realmente existiram”.51
Segundo Phillip Gil França, “sob a ótica da atuação administrativa estatal, motivar é explicar as razões fáticas e jurídicas da Administração para prática de ato administrativo de forma suficiente para se conferir legitimidade substancialmente legal de tal atividade pública”52.
A motivação é componente do requisito forma do ato administrativo. É, portanto, mais do que a simples descrição das razões de fato e de direito (legalidade) que foram determinantes para que o agente tenha praticado o ato administrativo.53
A motivação, conforme artigo 54 da Lei 9.784/199954, é consagrada como item essencial dos atos administrativos. Ademais, a mesma lei impõe a motivação como princípio fundamental a ser observado pela Administração Pública.
A partir desses dispositivos, o que se observa é que sendo ato que nega, limita e afeta direitos, a inobservância da exigência de motivação causa ilegalidade, capaz de transformar o ato em nulo.
Logo, levando em consideração as regras do Direito Administrativo, há que restar evidenciado o motivo que torna a manutenção do vínculo trabalhista inviável. Caso contrário, o ato de dispensa será nulo e ilegítimo, gerando o direito de reintegração.
Essas necessidades significam, sobretudo, verdadeira proteção ao empregado público, estampando autolimitações consideradas integrantes do pacto laboral em caso de rescisão unilateral do contrato de trabalho. Outrossim, conforme enunciado por Juliana Inahin
Defender a motivação das demissões nas empresas públicas e sociedades de economia mista não significa atribuir aos empregados estabilidade. Significa dar cor ao princípio do paralelismo das formas, segundo o qual “um ato jurídico só se modifica mediante o emprego de formas idênticas àquelas adotadas para elaborá-la” (BONAVIDES, 1996, p. 182). Assim, diante da dificuldade na admissão do empregado das empresas públicas e sociedades de economia mista, também deve haver certa dificuldade para sua dispensa. O dever de motivar não ‘engessa’ essas entidades, apenas cobra do administrador a exposição dos fatos e fundamentos de sua decisão.55
O poder disciplinar existente na Administração Pública não pode – e, sobretudo, não deve – ser objeto de usurpações e abusos de direito. É direito dos empregados públicos de saber os critérios da dispensa, que deve se dar por razões de interesse público.
Ignorar a regra da motivação é, em suma, cometer equívocos. O primeiro se refere ignorar parte da Constituição, sobretudo impondo que ela se curve aos ditames da Consolidação das Leis do Trabalho – texto que não inclui motivação da dispensa como requisito de validade do ato. E, por fim, poderiam ser maculados os princípios da Administração Pública, possibilitando que o administrador impusesse sua vontade para demissões arbitrarias em detrimento do interesse público maior.56
Conclui a questão, Celso Antônio Bandeira de Mello, pontuando que,
Perante dispensas ilegais, o empregado terá direito à reintegração no emprego, e não meramente indenização compensatória, pois não estão em pauta interesses puramente privados, mas sobretudo o princípio da legalidade da Administração, o qual é garantia de todos os cidadãos e ao qual, portanto, todos fazem jus.57
Sendo assim, o entendimento que deve ser adotado é de que os empregados da Administração Pública só podem ser dispensados em ato administrativo com a devida motivação, o que não se confunde com a estabilidade prevista aos ocupantes de cargos públicos decorrentes de nomeação.