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Acordo de acionistas como limitação contratual ao poder de gestão e representação

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27/09/2007 às 00:00
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O artigo analisa as eventuais limitações contratuais do poder de gestão e representação, focalizando, neste particular aspecto, os acordos de acionistas que versam sobre o direito de voto.

Sumário:1. Introdução; 2. Natureza Jurídica; 2.1. Negócio Jurídico; 2.2. Contrato Parassocial; 3. Evolução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro; 3.1. Decreto-lei 2.627 de 1940; 3.2. Lei 6.404/76; 3.2.1. Requisitos do acordo de acionistas; 3.2.1.1. Partes; 3.2.1.2. Objeto; 3.2.1.3. Publicidade; 3.2.2. Efeitos; 3.2.2.1. Desconsideração do voto contrário ao acordo; 3.2.2.2. Execução específica; 3.3. Lei 10.303/2001; 4. Possibilidade de invasão de competência administrativa pelo acordo de acionistas; 4.1. Vinculação dos administradores e o interesse social; 4.2. Limitações ao poder do administrador e eficiência corporativa; 5. Bibliografia.


1.Introdução

O presente artigo tem por objeto a análise das eventuais limitações contratuais do poder de gestão e representação, focalizando, neste particular aspecto, os acordos de acionistas que versam sobre o direito de voto, disciplinados pelo artigo 118 da Lei das Sociedades por Ações, Lei 6.404/76.

Em sua definição, o acordo de acionistas figura como contrato concluído por acionistas da companhia com o intuito de compor seus interesses individuais relacionados à negociabilidade de suas participações na companhia, exercício do direito de voto ou poder de controle, "de forma a harmonizar os seus interesses societários e implementar o próprio interesse social" [01] .


2.Natureza Jurídica

Para poder delimitar os contornos da eficácia do acordo de acionistas e verificar seu alcance em relação ao comportamento dos órgãos administrativos, necessário faz-se, primeiramente, apreender a natureza jurídica do instituto.

2.1.Negócio Jurídico

O acordo de acionistas versando sobre a compra e venda de suas ações, o exercício do direito de voto, ou do poder de controle é regulado pela Lei das Sociedades Anônimas em seu artigo 118.

Carvalhosa, anteriormente à unificação do direito obrigacional e à inclusão do direito da empresa no Código Civil Brasileiro, analisava, para caracterizar a natureza do acordo de acionistas, se a convenção encontrava-se no âmbito institucional da companhia, ou na esfera privada dos acionistas [02] .

Para o autor, ainda que a convenção de voto produza efeitos através das deliberações assembleares, e que o instituto seja regulado pela Lei 6.404/76, a convenção objetivaria a composição da vontade dos contratantes, sendo estranha ao estatuto legal da sociedade, na medida em que não haveria "entre a sociedade e os contratantes nenhum interesse que, através do ajuste, tenha-se composto ou harmonizado" [03] .

Sob esta concepção, fundamentando-se nos postulados de Dohm [04] , o ato estaria fora do direito das sociedades anônimas, relacionando-se com o direito das obrigações e com os princípios gerais do direito civil. Na dicção do próprio autor, "embora a fonte formal do direito seja a lei societária, a fonte substancial do acordo está no direito das obrigações. Isto porque, diferentemente do direito societário propriamente dito, que trata da constituição, organização, funcionamento e extinção da companhia, o acordo de acionistas pertence à esfera privada destes que, através desse ajuste, cuidam de compor os seus interesses" [05] .

Com a nova regulamentação pela Lei 10.303/2001, todavia, a circunscrição do acordo à esfera privada dos acionistas não parece tão clara. As alterações do caput e §§ 8º e 9º do art. 118 atribuíram ao acordo a capacidade de interferir expressamente no funcionamento da atividade corporativa, vinculando inclusive a atuação dos administradores aos termos do acordo e, assim, o próprio desenvolvimento da atividade corporativa. Desta forma, ainda que a companhia não seja parte na convenção, como alude o autor, os efeitos do acordo recaem diretamente no desenvolvimento de seu objeto social, não se podendo afastar o direito societário como mera fonte formal de regulamentação do instituto.

Não obstante haja especificações reguladas pela Lei societária, as quais não podem ser afastadas na definição do instituto, o acordo de acionistas pode ser amoldado perfeitamente dentro do gênero negócio jurídico, como "ato lícito que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos", na definição do art. 81 do antigo Código Civil de 1916; seria a expressão do princípio da autonomia da vontade, pelo qual o particular, por deliberação de sua própria vontade, e em conformidade com a lei, cria direitos e contrai obrigações [06] .

De maneira mais específica, o acordo de acionistas pertence à categoria dos contratos, como modalidade de negócio jurídico que se perfaz pelo consentimento, pela manifestação de vontade de duas ou mais pessoas que se ajustam tendo em vista a produção de um determinado resultado comum, compondo e regulamentando os interesses de cada contratante. Na definição de Gomes, "negócio jurídico que se forma pelo concurso de vontades" [07] , ou, acordo de vontades destinado a constituir, disciplinar, modificar ou extinguir uma relação jurídica de natureza patrimonial [08] .

A definição de contrato compreende perfeitamente o instituto do acordo de acionistas, o qual se aperfeiçoa com declarações de vontades convergentes de dois ou mais acionistas, que se destinam a compor seus interesses, nitidamente patrimoniais, quanto à venda de ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou do poder de controle.

O ordenamento jurídico pátrio somente empresta força coercitiva, tornando obrigatória a convenção das partes, desde que os pressupostos de validade sejam atendidos. Caracterizado como contrato, o acordo de acionistas sujeita-se aos pressupostos gerais de validade de todo negócio jurídico. Conforme estabelece o art. 166 do Código Civil é nulo o negócio jurídico quando for celebrado por pessoa absolutamente capaz; for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; não revestir a forma prescrita em lei; for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; e tiver por objetivo fraudar lei imperativa.

Os pressupostos de validade do acordo de acionistas, contudo, não ficam adstritos ao do negócio jurídico em geral. Na medida em que o acordo de acionistas influencia diretamente o desenvolvimento da própria atividade corporativa, o instituto também deve se conformar à disciplina da legislação societária, compatibilizando seus efeitos com os princípios e regras aplicáveis às sociedades anônimas. Assim, aos acordos de acionistas são aplicáveis as disposições específicas da legislação societária, mormente quanto às peculiaridades de sua eficácia, voltando-se supletivamente às normas comuns de direito obrigacional aplicáveis aos negócios jurídicos de modo geral.

2.2.Contrato Parassocial

A caracterização do acordo de acionistas como negócio jurídico não pode trazer a falsa impressão de uma autonomia em si. O acordo de acionista pressupõe à sua perfeição a existência do contrato plurilateral constitutivo da sociedade na medida em que seu objeto é justamente compor os interesses uti socii dos contratantes, influenciando na condução da atividade corporativa.

A denominação de contrato parassocial aos acordos de acionistas foi introduzida por Oppo [09] . Segundo o autor, por contrato parassocial deve-se entender "os acordos estipulados pelos sócios (por alguns ou também por todos), fora do ato constitutivo e do estatuto, para regular entre si ou também nas relações com a sociedade, com os órgãos sociais ou terceiros, seus interesses ou uma conduta social" [10] . Segundo o referido autor, o sentido de parassocial seria tanto o de separação do regulamento legal e estatutário, como também um sentido de coexistência, de dependência e acessoriedade com o estatuto [11] .O acordo de acionistas seria considerado contrato parassocial pois se posicionaria "à margem do contrato social, embora dele dependa" [12] .

A conexão com o contrato social é imanente ao pacto. Ainda que reconduzam a negócios distintos do contrato de sociedade, operando na esfera privada dos acionistas e, assim, tendo eficácia obrigatória e limitada aos contraentes, possuem o escopo de incidir e influir sobre a relação social, integrando o direito dos sócios enquanto sócios.

Segundo o autor, a conexão entre os dois contratos, o parassocial e o social, é de ordem econômica, mas também juridicamente relevante por indicar em que "medida o intento das partes, que preside a combinação o parassocial com o social, merece (ou não merece) a tutela jurídica e em que medida é compatível com o intuito legislativo que preside a disciplina típica da relação social" [13] .

Ressalta-se, contudo, que se considera parassocial o pacto que coexista com o contrato social, e não o pacto que o modifique, ou que o absorva ou seja absorvido pelo contrato social. O contrato parassocial não pode ser confundido, nesta hipótese, com o contrato social. Enquanto o contrato social é relação entre sócios e sociedade (pessoa jurídica), "o vínculo que intercorre entre cada sócio como indivíduo ou entre um sócio e um órgão social e não passe pelo trâmite da sociedade, não pode originar-se do contrato social" [14] . No contrato parassocial, a sociedade permanece estranha á relação; ainda que o contrato seja pactuado entre um sócio e um órgão social, "este último não se apresenta como portador de direitos da sociedade ou sujeito de direitos e obrigações em relação à sociedade, em suma na qualidade de órgão da sociedade, mas como portador de direitos próprios e sujeito de obrigações e direitos em relação a um determinado sócio [15] .

A distinção entre o contrato social e o contrato parassocial é esclarecida pormenorizadamente por Rescio [16] . Para o autor, o acordo de acionistas diferencia-se do contrato social no plano da constituição, validade, eficácia, interpretação e modificação. Em relação à constituição, a formação do contrato social através dos procedimentos e formas previstas com relação à constituição de sociedades e sua personificação contrapõe-se à mera manifestação do consenso exigido para a formação do contrato parassocial. Em relação à validade, as normas aplicáveis à nulidade da sociedade ou das deliberações não se identificam com as normas gerais sobre a invalidade dos contratos e, consequentemente, aplicáveis aos pactos parassociais. Com relação aos efeitos, a eficácia real do contrato social, no sentido de ser oponível a terceiros, difere da eficácia meramente obrigatória do contrato parassocial, gerando efeitos diretos somente com relação às partes contratantes. No plano da interpretação, enquanto que a interpretação do pacto social é objetiva, a hermenêutica do contrato parassocial deve se fundar em uma análise subjetiva, perscrutando a real intenção das partes. Por fim, em relação à extinção ou modificação, os contratos diferem-se na medida em que a alteração do contrato social exige a maioria qualificada ou conforme os procedimentos estabelecidos na legislação aplicável, e a alteração do contrato parassocial exige o consenso unânime manifestado pelas partes [17] .

Para o autor, o dado realmente de individualização entre contrato social e contrato parassocial é a referência impessoal da participação social nos contratos sociais, ou seja, gerando efeitos sobre qualquer sócio, independentemente de sua identidade, vinculando todos os sócios atuais ou futuros. O contrato parassocial, por outro lado, refere-se à pessoa do sócio, sendo sua condição de sócio mero pressuposto do pacto ao regular uma situação jurídica derivada do contrato de sociedade. O vínculo, nesta hipótese, não se faz unicamente pela participação social, tanto que não pode ser estendido ao adquirente de participação social de sócio vinculado ao acordo parassocial [18] .

Essa eficácia do contrato social é chamada por Rescio de eficácia real, por ser oponível a terceiros, ao contrário da eficácia de direito obrigacional do contrato parassocial, o qual teria validade apenas entre as partes contratantes. Corolário desse entendimento é que "os atos realizados em violação da regra social geram a sanção de invalidade ou de ineficácia, enquanto aqueles que violam a regra parassocial permanecem perfeitamente válidos e eficazes e dão lugar somente a um inadimplemento, fonte de responsabilidade contratual" [19] .

No direito brasileiro, contudo, essa característica da pessoalidade do acordo de acionistas não aparece, como veremos, como totalmente verdadeira, pois o ordenamento pátrio tutela os efeitos reflexos do acordo de acionistas frente a sociedade.


3.Evolução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro

Como contrato parassocial, a caracterização do instituto do acordo de acionistas foi sendo realizada de maneira gradual pela doutrina, cujos postulados e controvérsias foram sendo positivados progressivamente pelo legislador pátrio, ainda que este nem sempre tenha acolhido o posicionamento doutrinário majoritário.

À análise da complexidade hodierna do acordo de acionistas, procura-se, assim, debruçar-se sobre a evolução legislativa do instituto e sobre as principais correntes doutrinárias que a motivaram.

3.1.Decreto-lei 2.627 de 1940

O instituto do acordo de acionistas passou a ser discutido pela doutrina no início do século passado, tendo sido inicialmente considerado pela doutrina majoritária e pela jurisprudência como inválido. A concepção do período era a de que a relação formada da combinação entre o contrato social e contrato parassocial não poderia ser uma relação que colidiria com as regras procedimentais da disciplina típica da sociedade, principalmente a formação da vontade social, a qual era baseada no princípio da democracia acionária.

O princípio da democracia acionária alicerçava-se nos postulados de que a vontade social deveria ser formada na própria deliberação assemblear, sendo as declarações de voto dos acionistas computadas tendo em vista a regra da maioria e emitidas após as discussões sobre cada assunto presente na pauta de votação. Desta forma, apregoava-se que a declaração de vontade de cada acionista deveria ser livre e espontânea, formando uma deliberação representativa da maioria efetiva do capital social, e desta forma, mais interessada no desenvolvimento da atividade corporativa. Pela análise do princípio da democracia acionária, o acordo de acionistas provocaria a predeterminação do sentido do voto de cada contratante, ferindo a regra da maioria na medida em que a deliberação tomada não necessariamente seria representativa da vontade da maior parcela do capital da companhia.

O pensamento dominante da época culminou no Decreto-lei francês de 1937 que dispunha, em seu art. 10, que "são nulas e de nenhum efeito nas suas disposições gerais ou acessórias as cláusulas que tenham por objeto ou por efeito atentar contra o livre exercício do direito de voto nas Assembléias Gerais das sociedades comerciais".

Ao longo do século, todavia, a tendência a refutar de maneira absoluta as convenções começou a ser abrandada. A doutrina italiana, frente a omissão do Código Civil Italiano de 1942 em disciplinar a matéria, ainda que de maneira contrária à jurisprudência dominante, passou a aceitá-los, desde que não violassem regras de lei imperativa, de ordem pública ou fossem contra bons costumes [20] . Sobre essa evolução, Oppo preconiza que o princípio da democracia acionária não pode ser tido mais como absoluto. Para o autor, a presença de mecanismos expressamente aceitos pela legislação que destacam o exercício do direito do voto da pessoa do sócio como o penhor, o usufruto, a sociedade holding, e ainda a possibilidade de metade do capital social ser composto por ações preferenciais, sem direito a voto, fazem com que haja a relativização do referido princípio acionário [21] .

No Brasil, anteriormente à promulgação da Lei 6.404/76 - que passou a aceitar a validade do acordo de acionistas, mas não tornando a matéria menos controversa na doutrina - o ordenamento societário brasileiro era silente quanto à regulamentação da disciplina dos acordos de acionistas.

Apesar da omissão legislativa, a doutrina majoritária do período, alicerçada nos misteres de Valverde, Pontes de Miranda e Ferreira [22] , preconizava que, com base no princípio da autonomia da vontade, e na medida em que não haveria qualquer proibição legal expressa, os acionistas e mesmo terceiros estranhos à relação da companhia poderiam livremente convencionar entre si o exercício do direito de voto na deliberação societária e regular desta forma seus interesses. A convenção seria válida, contudo, desde que não importasse na transferência do direito de voto sem a transferência da titularidade da ação ou na irrevogabilidade das manifestações de vontade sobre o voto.

Segundo Valverde, não se poderia condenar, de antemão, toda e qualquer convenção pelos motivos que estas tirariam "ao acionista a sua liberdade, o seu direito e o seu dever de exame da matéria submetida à deliberação das assembléias gerais". Para o autor, desde que se conservasse a liberdade de agir do acionista, o pacto deveria ser admitido. O que é inadmissível, segundo essa posição, "é o acordo pelo qual o acionista renuncia para sempre o exercício do direito de voto ou se obriga, para sempre, a votar ou a não votar nesse ou naquele sentido" [23] .

Neste mesmo sentido, Ferreira afirma que "não se pode argüir de ilícita qualquer convenção de voto, realizada acidentalmente ou estabelecida previamente, sem ofensa aos interesses da companhia, antes inspirada pelo propósito de seu desenvolvimento e execução de seu programa industrial ou mercantil" [24] .

Para essa corrente, não se poderia confundir a transferência do direito de voto sem a transferência da titularidade das ações - a qual era proibida em diversos dispositivos do Decreto-Lei 2.627 [25] - com a convenção de voto, como regulação voluntária sobre o exercício do direito de voto e que, portanto, deveria ter sua existência, validade e eficácia apreciadas conforme os princípios comuns aos negócios jurídicos em geral.

Para não elidir, todavia, a regra do livre exercício do voto manifestada no princípio da democracia acionária, as manifestações de vontade das partes sobre os votos não poderiam ser tidas como irrevogáveis, possibilitando ao acionista votar diferentemente daquilo que havia convencionado inicialmente no negócio jurídico. Neste sentido, apregoava-se que a sanção pelo inadimplemento da convenção pelo acionista não poderia ser outra que a indenização por perdas e danos ou a baseada em cláusula penal [26] .

Desta forma, o voto dissidente aos termos do acordo emitido por acionista pactuante permaneceria válido e eficaz, embora gerasse direito à indenização por perdas e danos. Os efeitos da convenção, logo, ficariam adstritos somente às partes contratantes.

Cunha Peixoto, por outro lado, com base no princípio da democracia acionária, ainda que de maneira minoritária na doutrina brasileira, sustentava que ainda que não houvesse dispositivo legal proibindo a convenção, a invalidade do acordo de acionistas emergiria dos princípios da soberania das Assembléias Gerais, da regra da maioria e da liberdade do voto na deliberação, os quais seriam sobrelevados a princípios de ordem pública, inderrogáveis pelos particulares [27] .

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Analisando esses posicionamentos doutrinários antes da Lei 6.404/76, Guerreiro afirma que "limitadas as conseqüências da inexecução dessas obrigações à reparação civil de perdas e danos, pode-se afirmar que os acordos de acionistas nunca propiciaram, entre nós, plena segurança jurídica aos respectivos contratantes, primordialmente interessados, como é natural, no cumprimento específico das disposições acordadas. Sendo assim, na tradição de nosso direito, referidos acordos sempre se caracterizaram pela extrema precariedade de suas virtudes e pela total insegurança quanto ao seu pleno e regular adimplemento" [28] .

3.2.Lei 6.404/76

Com o expresso intuito de coibir o grande número de abusos e malefícios em decorrência da ausência de disciplina legal do instituto [29] , a Lei 6.404/76, em seu artigo 118, inovou e acabou por regulamentar as hipóteses de validade e eficácia do acordo de acionistas no ordenamento jurídico brasileiro.

Sob a perspectiva dos redatores do projeto que veio a se converter na referida Lei, a regulamentação do acordo de acionistas coadunava-se perfeitamente com o objetivo da nova Lei de Sociedades Anônimas de criação e fortalecimento das grandes empresas nacionais [30] . Para cumprir efetivamente o objetivo de "propiciar a formação e a gestão eficiente e responsável da grande empresa", a reforma da legislação societária deveria compreender, para os redatores do projeto, o "incentivo e estímulo ao investidor para aplicar poupanças no mercado de capitais de risco, e, para tanto, cabe reforçar-lhe os direitos, aumentar a publicidade dos atos dos administradores, defendê-lo contra fraude dos gestores, tornar efetiva a posição do acionista como dono e controlador da empresa [31] ".

Desta forma, para que se pudesse criar um ambiente de maior segurança jurídica aos grandes investidores, garantindo a estabilidade dos grupos controladores, ainda mais diante das objeções da doutrina européia sobre a validade do acordo de acionistas, estabeleceu-se a regulamentação legal do instituto. Caracterizou-se, assim, seus principais elementos, proporcionando-lhe maior eficácia através da possibilidade de oposição à companhia e da execução específica de seus termos, pois a indenização por perdas e danos, como apregoada anteriormente à vigência da referida Lei, não era tida como suficiente para compensar a perda do controle em decorrência da dissolução do grupo controlador [32] .

Nesse sentido, a redação original do caput do artigo 118 da Lei 6.404/76 determinava que "os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, o exercício do direito de voto, deverão ser observados pela companhia quando arquivados na sua sede"; e o §3º garantia a eficácia desses acordos ao determinar que "nas condições previstas no acordo, os acionistas podem promover a execução específica das obrigações assumidas".

3.2.1.Requisitos do acordo de acionistas

Para que se possa compreender o âmbito de eficácia do acordo de acionista frente à regulamentação original da Lei 6.404/76, mormente quanto à possibilidade de vinculação dos membros da administração, faz-se necessário analisar os requisitos específicos exigidos para a sua eficácia: partes, objeto e publicidade.

3.2.1.1.Partes

O primeiro elemento que emerge da definição do art. 118 da Lei de Sociedades Anônimas é relacionado à capacidade e legitimação das partes celebrantes.

Como espécie do gênero negócio jurídico, o acordo sujeita as partes contratantes à regra geral de capacidade estabelecida no Código Civil. Desta forma, conforme regula o art. 166, I, do referido normativo, é nulo o negócio jurídico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz; enquanto, segundo o art. 171, é anulável o negócio jurídico por incapacidade relativa do agente.

Ao regular a disciplina do instituto, o artigo 118 estabelece, para que todos os efeitos do instituto societário possam ser atribuídos ao pacto, a necessidade das partes contratantes ocuparem a posição jurídica de acionistas da companhia.

Enquanto a incapacidade envolve uma inaptidão interna [33] , a legitimidade envolve uma relação particular do sujeito com o objeto do negócio. A legitimidade, segundo Junqueira de Azevedo, não é normalmente requisito da validade do ato, mas condiciona a oponibilidade dos efeitos desejados pelas partes frente a terceiros, ainda que o negócio jurídico permaneça eficaz entre as partes contratantes [34] .

Para que as partes possam ser consideradas legítimas, assim, devem caracterizar-se como acionistas da companhia. Os acordos celebrados entre acionistas e terceiros, ainda que sejam destituídos dos efeitos atribuídos ao instituto do acordo de acionistas, como a oponibilidade à companhia e a terceiros, não são considerados prontamente como inválidos pelo ordenamento jurídico, tendo seus efeitos disciplinados pelas regras gerais estabelecidas aos negócios jurídico, notadamente efeitos inter partes.

Ainda que se apresente a necessidade dos acionistas serem partes da convenção, muito divergiu a doutrina sobre a possibilidade de participação nesses acordos dos administradores da sociedade [35] .

Na medida em que se exige somente que a parte contratante seja acionista, o administrador poderá ingressar como contratante do acordo desde que o faça em sua condição de acionista. Neste sentido, não havia qualquer controvérsia doutrinária se o acordo celebrado com a participação dos administradores versava sobre matérias que não exclusivas da esfera de competência dos órgãos administrativos, haja vista que nesta hipótese o administrador convencionaria sobre o seu exercício de voto na assembléia geral como regular acionista.

Controvérsia, todavia, existia sobre a validade e eficácia dos acordos dos quais participavam administradores e que versassem sobre matéria de competência da administração da companhia pois, nesta hipótese, estes ficariam vinculados em sua qualidade de administrador, e não como acionistas.

Ao versar sobre a matéria, Comparato estabelecia a ilegitimidade dos administradores figurarem como partes do acordo, implicando a ineficácia da convenção em relação à sociedade [36] . Segundo o autor, ao tratar especificamente sobre a possibilidade de convenção sobre a nomeação dos diretores pelos membros do Conselho de Administração, "não tendo a assembléia, nem a fortiori os acionistas individualmente, como foi visto, competência alguma no que tange ao exercício dessa função, tratar-se-ia no caso de obrigação assumida pelos conselheiros; e obrigação assumida contra dispositivo legal de ordem pública, o que implica a sua ineficácia, relativamente à sociedade" [37] .

Para Comparato, o art. 118 indicaria que o acordo de acionistas tem por objeto o exercício do direito de voto, direito dos próprios acionistas e não de terceiros, o qual deve ser manifestado na assembléia e não no conselho de administração ou no fiscal. Nas palavras do autor: "sem dúvida, o conselho de administração deve ser composto de acionistas (art. 146). Mas eles não atuam no conselho enquanto acionistas, e, sim, como administradores. Cuidando-se de acordos de acionistas, e não de administradores, não é juridicamente admissível que se regule o exercício do voto no conselho de administração" [38] .Como conseqüência direta dessa ilegitimidade de parte, ressalta o autor, o acordo de acionistas aparece para os administradores como res inter alios acta, impossibilitando a execução específica dos termos acordados [39] .

Coaduna-se com essa posição Carvalhosa, o qual justifica a impossibilidade do acordo versar sobre competência da administração pela razão que não se poderia confundir o interesse uti singoli do administrador como acionista com o interesse decorrente de sua função de administrador [40] . Para o autor, o acordo de acionistas não poderia avançar sobre a competência administrativa, a qual seria indelegável. Segundo Carvalhosa, "o âmbito de ação dos acionistas é a assembléia geral, não podendo adentrar o do conselho de administração, ainda que os membros deste possam vir a ser os próprios convenentes (...) Não serão, portanto, válidos os acordos que limitam, sob qualquer forma, os poderes dos administradores ou influenciam suas decisões e sua capacidade de julgamento, com relação aos negócios e interesses sociais, independentemente da boa ou má-fé dos convenentes" [41] .

Corrente oposta era defendida, dentre outros, por Bulgarelli, Bulhões Pedreira [42] , e Wald [43] . Para essa posição doutrinária, os administradores seriam partes legítimas para figurar como tais no acordo de acionistas pois não havia qualquer restrição legal ao exercício do direito de voto, o qual deveria compreender, assim, não apenas o voto nas Assembléias Gerais, com também nos Conselhos de Administração.

Na opinião de Bulgarelli, teria havido "silêncio eloqüente", omissão intencional da legislação, posto que a vinculação do voto dos membros da administração resultaria da configuração do próprio sistema. Os controladores, ao tomarem o poder, "certamente o fizeram para traçar uma política para a companhia obter o interesse social, nos seus três níveis, o que demanda uma orientação uniforme na conduta dos convenentes, quer como acionistas quer como administradores, pois, como é curial, adquiriram a qualidade de controladores" [44] . Segundo o autor, o controlador é o que "exerce de fato o poder e dita a política da companhia, sendo assim a obediência a essa política efeito natural do acordo ajustado que acompanha o acionista quando administrador" [45] . Desta forma, a vinculação do administrador pactuante apresenta-se como uma conseqüência lógica do acordo de acionistas para firmar o controle social na medida em que este procura fixar uma orientação uniforme a todos os convenentes, quer na qualidade de acionistas ou na de administradores.

3.2.1.2.Objeto

Em sua redação original, o art. 118 da Lei de Sociedades Anônimas exigiu como requisito característico do acordo de acionistas, além da legitimidade das partes, que seu objeto versasse sobre a compra e venda de ações, a preferência para adquiri-las, ou o exercício do direito de voto.

Tendo em vista a finalidade da presente dissertação, dentre os três objetos referidos pelo caput do art. 118, sobre os quais pode incidir o acordo de acionistas para ter oponibilidade à companhia e eficácia em relação a terceiros, focalizar-se-á a análise sobre a amplitude pela qual se deve compreender o "exercício do direito de voto".

Com relação a esse objeto, questionava-se à época se a convenção poderia regular o exercício de voto exclusivamente nas deliberações assembleares, ou em toda e qualquer deliberação da companhia, mais especificamente, nas deliberações dos órgãos administrativos.

Para uma primeira corrente fundamentada principalmente nos argumentos de Carvalhosa [46] e Comparato [47] , a intelecção do art. 118 somente poderia ser apreendida após uma interpretação sistemática, avaliando o instituto frente aos demais dispositivos da Lei 6.404/76. Ao proceder desta forma, a referida corrente preconizava que a extensão do exercício do voto aos membros do Conselho de Administração ou da Diretoria confrontava-se diretamente com o art. 139 da Lei - norma cogente e inderrogável na medida em que visa proteger a ordem pública - que estabelece que "as atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem se outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto".

Segundo argumenta Comparato, o art. 139 evidenciaria o princípio da exclusividade de funções, o qual, aliado ao art. 122, que assegura as competências privativas da Assembléia Geral, vedariam à assembléia delegar funções aos órgãos administrativos, assim como estes seriam impossibilitados de atribuir uma função tipicamente administrativa à Assembléia [48] . Nas palavras do próprio autor, "se assim é relativamente ao estatuto social, que não pode alterar regras de competência privativa estabelecidas em lei, com maioria de razão vale o mesmo raciocínio em relação aos acordos de acionistas, que se situam, na hierarquia normativa, em posição inferior à do estatuto social" [49] .

Para Comparato, assim, como já se depreendeu da análise dos seus argumentos sobre a ilegitimidade dos administradores para figurarem como partes, a convenção que versasse sobre matéria da administração não possuiria a eficácia típica do acordo de acionistas, como a oponibilidade à companhia ou a execução específica, revestindo a forma de mera promessa de fato de terceiro e acarretando exclusivamente perdas e danos caso não cumprida [50] .

Baseado nos mesmos argumentos sustentados por Comparato, ou seja, que os acordos de acionistas que dispusessem sobre a competência dos órgãos administrativos feririam o art. 139, Carvalhosa chega a conclusão oposta. Para o autor, na medida em que fraudariam lei imperativa, pois se eqüivaleriam a autêntica delegação de poderes, os acordos de acionistas seriam inválidos, não gerando efeitos sequer entre as partes contratantes, impedindo, assim, a constituição de qualquer promessa de fato de terceiro [51] .

Corrente oposta era sustentada, dentre outros, por Bulgarelli [52] , Bulhões Pedreira [53] , e Wald [54] . Para esta posição doutrinária, na medida em que a redação do artigo 118 não restringia a deliberação que poderia ser objeto do acordo, e tendo em vista que não poderia haver interpretação restritiva quanto ao princípio liberdade contratual, a convenção poderia envolver o exercício do voto tanto nas deliberações assembleares, quanto nas administrativas da companhia.

Para essa posição, o acordo de acionistas, ao versar sobre o controle social, intenta traçar uma orientação uníssona a todos os órgãos da companhia, não sendo admitido que a atuação de um desses órgãos possa contrariar a de outro. Segundo Bulgarelli, "em termos hierárquicos pode-se constatar que em primeiro plano está a posição de controlador, pois é o que exerce de fato o poder e dita a política da companhia, sendo assim a obediência a essa política efeito natural do acordo ajustado que acompanha o acionista quando administrador" [55] .

A necessidade de "orientação negocial harmônica" consta como objetivo legislativo na própria exposição de motivos da referida Lei societária, na medida em que seus novos institutos visariam a garantir a segurança dos investidores, o qual somente poderia ser alcançada através de uma política empresarial estável. Neste sentido, a efetiva direção das atividades sociais e do funcionamento dos órgãos da companhia é atribuído pela alínea b do art. 116 ao poder de controle, inclusive quando este se constituir por meio de convenção entre os acionistas.

Essa posição doutrinária, complementando-se com a adoção da legitimidade para os administradores figurarem como partes na convenção, determina que o acordo de acionistas "sujeita seus signatários ao seu cumprimento, em toda a extensão do convencionado, não se limitando, por este aspecto, apenas ao voto nas assembléias gerais, mas indo alcança toda a conduta dos signatários, inclusive como administradores" [56] .

Corolário do princípio da relatividade dos efeitos de negócio jurídico, os administradores somente ficariam vinculados, para essa corrente, se fossem signatários da convenção, pois os efeitos obrigacionais não poderiam ser estendidos a terceiros estranhos à relação obrigacional. Caso os administradores não fossem partes no acordo, a obrigação constituir-se-ia meramente em obrigação de fato de terceiro, na qual um dos acionistas se obriga perante os demais pactuantes a um determinado sentido de voto a ser emitido pelos administradores por ele eleito. Nesta hipótese, o voto no órgão administrativo manifestado em desacordo ao estipulado na convenção acionária não proporcionaria a execução específica, resolvendo-se a obrigação exclusivamente em perdas e danos.

3.2.1.3.Publicidade

Conquanto a doutrina anterior à Lei 6.404 admitisse a possibilidade de convenção do acordo de acionistas, preconizava que seus termos não poderiam ser tidos como irrevogáveis, facultando ao acionista pactuante votar de maneira contrária ao acordado embora ficasse sujeito às perdas e danos. Com o intuito de recriar um ambiente propício ao desenvolvimento da grande empresa acionária, através da maior segurança jurídica aos investidores, a Lei 6.404/76 regulamentou o instituto, dispondo sobre sua eficácia e oponibilidade em relação à companhia e a terceiros.

Apresentando-se como espécie dos negócios jurídicos, o acordo de acionistas submete-se às regras dispostas aos contratos em geral. Como princípio contratual, a relatividade determina que a relação jurídica convencionada entre os particulares não interfira diretamente na esfera jurídica de quem não seja parte na mesma, pois, na medida em que é ato de autonomia de vontade, não poderia o ato obrigar estranho que não manifestou vontade em contrair a respectiva obrigação.

Embora o princípio da relatividade vede que efeitos diretos do negócio jurídico repercutam sobre a esfera de terceiros não contratantes, nada obsta, contudo, que sobre os terceiros repercutam não efeitos diretos, como a exigência de uma determinada prestação, mas efeitos reflexos da convenção. Sobre essa concepção manifesta-se Leães, para quem "se bem se trate de uma relação entre partes, todo negócio jurídico ocupa um espaço cuja existência não pode ser ignorada por terceiros, visto que muitas vezes representa um antecedente de fato de um efeito sofrido pelos mesmos [57] ". Como todo fato jurídico, o negócio jurídico produz necessariamente efeitos reflexos sobre terceiros. Sendo a espécie de negócio jurídico julgado relevante e tendo seus efeitos indiretos tutelados pelo ordenamento jurídico pátrio, tal fato jurídico, embora não gere nenhuma prestação a terceiros, deve ser reconhecido e respeitado por eles [58] .

Para que esses efeitos reflexos a terceiros com relação ao acordo de acionistas possam ocorrer é necessário que, além das partes e do objeto específico, sejam também preenchidos os requisitos relativos à publicidade, possibilitando o conhecimento da relação jurídica àqueles que não são partes.

Ressalta Comparato, contudo, que os requisitos de publicidade exigidos à convenção não são condições de validade e eficácia do acordo perante as partes contratantes. Tais requisitos visam assegurar somente os efeitos reflexos da convenção perante a companhia, os demais acionistas e demais terceiros, sendo que seu descumprimento não acarretará a invalidade ou ineficácia inter partes do negócio jurídico [59] . Nesse sentido, "uma vez que o registro acima indicado não é condição de validade e eficácia do acordo entre as partes, mas requisito para que se possa vincular a sociedade e terceiros ao pactuado, não se trata de dever legal imposto às partes, mas de ônus que deverão cumprir caso desejarem que o ajuste produza os efeitos reflexos previstos em lei" [60] .

Estabelece o art. 118 duas formas pelas quais se presume o conhecimento dos termos do acordo de acionistas por terceiros. A primeira é a estabelecida no caput do art. 118, pela qual os acordos tornar-se-iam oponíveis à companhia "quando arquivados na sua sede". A segunda forma é a que visaria opor os termos do acordo em relação a terceiros. É com esta finalidade que o §1º determina que "as obrigações ou ônus decorrentes desses acordos somente serão oponíveis a terceiros, depois de averbados nos livros de registro e nos certificados das ações, se emitidos".

Para Comparato [61] e Eizirik [62] , as duas formalidades exigidas possuiriam cada qual objetivos distintos, sendo cada procedimento aplicável em função da pessoa a quem se deseja estender os efeitos da convenção. Na opinião de Comparato, "o arquivamento do instrumento do acordo na sede da companhia procura estender à própria sociedade os efeitos da convenção naquilo em que ela entende, diretamente, com o seu funcionamento regular, isto é, o exercício do voto em assembléia" [63] . Para Eizirik, "os efeitos decorrentes dos acordos de voto produzem-se essencialmente perante a companhia, na medida em que é no âmbito dos órgãos sociais que os convenentes e os administradores por eles indicados devem proferir o voto de acordo com as disposições pactuadas (...) Assim, o arquivamento do acordo de acionistas na sede social destina-se a impor à companhia a observância das cláusulas referentes ao exercício do direito de voto ou do poder de controle, impedindo-a de computar o voto manifestado em sentido contrário daquele previamente ajustado" [64] .

Para os autores, a averbação das estipulações dos acordos nos livros de registro e nos certificados acionários é apresentada como condição de sua oponibilidade a "terceiros", vale dizer, não mais interna corporis, na atuação dos órgãos societários, mas perante não-acionistas, interessados na aquisição de ações emitidas pela sociedade e vinculados a um acordo. A averbação refere-se, logo, não aos acordos de voto, mas às estipulações sobre a compra e venda de ações e a preferência para adquiri-las".

A essa corrente não se filia Salomão Filho para quem seriam imprescindíveis ao alcance de todos os efeitos do acordo de voto, que as duas formalidades quanto ao registro fossem realizadas. Para o autor, a sociedade não seria mero oficial de registro de pactos de natureza não societária, pois seus órgãos deveriam zelar pelo cumprimento do acordo, quer esse tenha como objeto o exercício do direito de voto, quer tenha por objeto a transferência das participações acionárias. Neste sentido, os acordos que versassem sobre a compra e venda de ações ou a preferência para adquiri-las deveriam ser registrados na companhia, assim como o acordo de voto deveria ser averbado nos livros de registro e nos certificados das ações, como dispõe o §1º do art. 118, pois o objeto é relevante também aos adquirentes de ações, que poderão pelo pacto se obrigar" [65] .

Ainda que discordando da fundamentação empregada por esta última corrente, a exigência do preenchimento das duas formalidades parece ser a mais consentânea com o ordenamento jurídico vigente, na medida em que este busca garantir a plena informação dos agentes e, conseqüentemente, promover a segurança jurídica. A averbação das estipulações dos acordos nos livros de registro e nos certificados acionários deve ser realizada ainda quando o objeto do acordo seja o exercício do direito de voto pois proporcionaria aos terceiros adquirentes, não a vinculação a uma obrigação por eles não contratadas, mas o conhecimento sobre a existência de acordo de voto firmado na companhia, o que pode repercutir no próprio valor da ação adquirida, na medida em que interfere na própria influência política interna corporis esperada da ação adquirida.

3.2.4.Efeitos

Preenchidos os requisitos com relação às partes, ao objeto e à publicidade, necessário se faz analisar os efeitos que determinado acordo pode gerar.

3.2.4..1.Desconsideração do voto contrário ao acordo

Ao integrar a estrutura societária, complementando as disposições estatutárias, a fiscalização dos termos do acordo de acionistas deve incumbir aos próprios órgãos sociais. Apesar de tal incumbência da Assembléia Geral ter sido objetivo da Lei 6.404/76 de forma a aumentar a efetividade dos pactos parassociais, a omissão legal contribuiu para a polêmica doutrinária sobre a amplitude desse dever administrativo.

Uma primeira corrente doutrinária apregoava o dever do Presidente da Assembléia Geral em assegurar o cumprimento dos termos convencionados no acordo de acionistas devidamente arquivado. Sob esta concepção, Salomão Filho assegura que "da mesma forma que cabe aos administradores zelar pelo respeito ao estatuto e à lei, inadmitindo votos contrários a estes, cabe a eles também zelar pelo cumprimento do acordo" [66] . Para essa corrente, que se apresentava como majoritária na doutrina pátria, competia à mesa da Assembléia Geral considerar como ineficazes os votos proferidos pelos acionistas pactuantes em desconformidade com os termos do acordo, computando-os como se fossem votos em branco, na medida em que não possuiria competência para alterar o sentido do voto emitido.

Apesar de reconhecer que a posição doutrinária por ele sustentada é isolada, Barbi Filho preconiza que o presidente da assembléia não poderia deixar de computar o voto proferido pois não possuiria poder jurisdicional. Segundo o autor, havendo controvérsia entre os signatários sobre os termos do acordo de acionistas, não poderia o presidente avaliar se o voto foi proferido em desconformidade ao acordado; tal conflito somente poderia ser resolvido por quem possuísse jurisdição, ou seja, pelo juiz de direito, "cabendo-lhe apenas suspender a deliberação ou devolver o conflito à assembléia, que decidirá por maioria, frustrando o acordo [67] ".

Para a corrente majoritária, todavia, apesar de não poder ser considerado como voto inválido, pois não possuiria nenhum dos vícios que acarretariam sua nulidade ou anulabilidade, por contrariar os termos do acordo o voto deveria ser considerado como ineficaz, implicando na anulabilidade da deliberação assemblear se o voto não computado, por contrariar os termos do acordo, fosse determinante para reverter o sentido da deliberação tomada [68] . Nessa situação em que os votos dissidentes ao acordo fossem determinantes à deliberação, como o Presidente não poderia alterar o sentido do voto emanado, deveria a própria mesa da assembléia suspender a respectiva deliberação, possibilitando aos interessados submeterem a matéria à decisão judicial, sob pena de anulação dessa mesma deliberação, por manifesta ineficácia dos votos dados com inobservância do ajuste [69] .

Questionava-se, antes da alteração do art. 118 pela Lei 10.303, se essa suspensão das deliberações em virtude do voto manifestado de forma contrária aos termos do acordo poderia aplicar-se também na hipótese de abstenção do voto ou na ocasião de não comparecimento do acionista à Assembléia. Sobre a questão, Pontes de Miranda assevera que por exercício de direito de voto dever-se-ia compreender tanto um facere, como um non facere. Assim como votar é exercício positivo, a abstenção de comparência, ou a abstenção de voto, ainda que presente, é exercício negativo de direito de voto [70] .

Deste posicionamento discorda parcialmente Carvalhosa [71] . Para o autor, tanto o voto contrário como o voto em branco deverão ser considerados pela mesa como ineficazes, se contrariarem a convenção, devendo inclusive ser suspensa a deliberação se o voto fosse essencial à maioria suficiente à decisão. Na hipótese do acionista não ter comparecido à assembléia, todavia, a execução específica seria inaplicável pois esta decorreria de ato unilateral de vontade contrário ao convencionado, manifestado na deliberação. "Não tem a execução específica o poder de conduzir o acionistas à reunião e, assim, produzir os efeitos de uma declaração de vontade juridicamente inexistente" [72] . Como corolário desse pensamento, não haveria interesse em que a mesa suspendesse à deliberação nesta hipótese de não comparecimento, cabendo aos pactuantes prejudicados pleitear simplesmente multa convencional ou perdas e danos.

3.2.4.2.Execução específica

Embora a companhia possa declarar o voto contrário ao acordo de acionistas como ineficaz, ou ainda suspender a deliberação assemblear, não é competente para sobrepor-se à declaração de vontade, não podendo declarar o voto no sentido dos corretos termos pactuados no acordo.

Como modo de atribuir coerção ao acordo e de garantir a segurança dos pactuantes, os quais não ficariam satisfeitos totalmente com o mero ressarcimento das perdas e danos, estabelece o §3º que "nas condições previstas no acordo, os acionistas podem promover a execução específica das obrigações assumidas", assegurando, ainda que por manifestação judicial, que a declaração de voto pactuada seja emitida.

A Lei 6.404/76, contudo, não teria inovado sobre o tema. O Código de Processo Civil já assegurava, em seu artigo 641, o suprimento judicial das obrigações de fazer. Na medida em que o acordo que versa sobre o exercício do direito do voto gera uma obrigação de declaração de vontade pela parte contratante, e, portanto, uma obrigação de fazer, o art. 641 do Código de Processo Civil possibilita sua execução específica, determinando que a sentença transitada em julgado produzirá todos os efeitos da declaração não emitida. Nessa hipótese, a sentença não irá condenar o inadimplente a proferir a referida declaração de vontade; ao contrário, a vontade do devedor é prontamente substituída pelo comando judicial, produzindo todos efeitos da vontade suprida [73] .

Nas palavras de Guerreiro, a finalidade objetiva da execução específica "será, pois, a de transformar coativamente o inadimplemento da obrigação contratada e descumprida em cumprimento equivalente, de sorte a que o acionista faltoso, ao invés de se sujeitar ao interesse da parte contrária, vencedora da ação, tenha que cumprir o avençado, mesmo contra sua vontade, desde que o dever não cumprido tenha se caracterizado, na sentença, como bem efetivamente tutelado pelo direito" [74] .

Apesar da redundância do dispositivo societário, cuja matéria já teria sido regulada pela lei processual [75] , o normativo não teia sido irrelevante em virtude da discussão doutrinária que se travava antes da promulgação da Lei 6.404/76. Preconizava-se até então que o inadimplemento da obrigação pactuada no acordo de acionistas somente poderia se converter em perdas e danos, e nunca ensejaria a execução específica, pois esta poderia implicar na dissociação entre a titularidade da ação e o direito de voto imanente a esta, o que não poderia ser admitido [76] .

Na opinião de Barbi Filho [77] , a previsão de execução específica das obrigações de fazer pelo Código de Processo Civil implica em que os acordos de acionistas que descumpram os requisitos exigidos pelo art. 118, como referentes às partes, ao objeto e a publicidade, ainda assim podem ensejar o suprimento judicial da vontade não manifestada voluntariamente.

Tal entendimento, contudo, não pode ser acolhido tendo em vista seus efeitos gerados sobre terceiros que não partes da relação contratual. Nesse sentido, não pactua com a posição acima LEÃES, para quem caso fosse possível a tutela específica nessas hipóteses de não preenchimento dos requisitos exigidos pelo art. 118, tutelar-se-iam efeitos sobre terceiros estranhos ao pactuado, como a própria companhia e demais acionistas, estranhos à relação parassocial firmada, da modo a contrariar o princípio da relatividade dos efeitos do contrato [78] .

Como a ação de execução específica visa justamente substituir a declaração de vontade não manifestada em conformidade aos termos do acordo, não teriam os pactuantes interesse jurídico em pleitear a referida ação caso o resultado da deliberação, ainda que declarado ineficaz o voto dissidente, fosse no sentido determinado pelo pacto.

O voto do acionista dissidente pode ser, todavia, determinante para se atingir o quorum suficiente à deliberação. Caso o presidente da Assembléia, descumprindo o efeito da oponibilidade à companhia, computar o voto proferido em contrariedade aos termos do acordo, o que resultaria numa deliberação em sentido oposto ao almejado pela convenção, solução tão simples como a anterior não poderia ser encontrada. Nesta hipótese,, como o voto contrário deveria ser considerado voto ineficaz, a execução específica proporcionaria a substituição desse voto por uma declaração judicial conforme os termos pactuados na convenção, implicando na ineficácia da deliberação da Assembléia Geral [79] .

Situação diversa é a hipótese deste voto contrário e determinante ser declarado ineficaz e desconsiderado pelo presidente da mesa no cômputo dos votos. Nesta hipótese, em virtude da oponibilidade dos efeitos do acordo à companhia, deveria a deliberação ser suspensa pelo próprio presidente, proporcionando aos acionistas pactuantes, prejudicados com o voto em desconformidade aos termos acordados, que peticionassem a execução específica da obrigação assumida, possibilitando a concretização da referida deliberação nos termos da declaração judicial emitida [80] .

Nesta última situação, contudo, se o presidente da assembléia não suspender a deliberação ao se deparar com o voto dissidente, somente o declarando ineficaz, de maneira a proporcionar que a deliberação resulte numa decisão contrária aos termos da convenção, Carvalhosa sustenta a inaplicabilidade da execução específica como instrumento de satisfação dos interesses dos acionistas pactuantes prejudicados. Para o referido autor, na medida em que o voto dissidente teria sido declarado ineficaz, a deliberação tomada seria válida, pois tomada pela maioria e não contaminada por nenhum vício. Na opinião de Carvalhosa [81] , assim, a execução específica não seria própria para a anulação desta deliberação, possibilitando aos acionistas pactuante prejudicados somente o ressarcimento por meio da indenização por perdas e danos.

Opinião contrária pode ser colhida dos argumentos de Guerreiro. Na medida em que a execução específica da obrigação do acionista faltoso produziria "todos os efeitos da declaração não emitida, considerando-se nesse caso como não emitida a declaração ineficaz e, como tal, a expressão formal de voto em dissonância com o pactuado no acordo de acionistas", o resultado atribuído pela maioria dos votos seria desconforme ao resultado alcançado pela deliberação. Tal hipótese tornaria possível, assim, aos acionistas legitimados pleitearem a declaração de ineficácia da deliberação assemblear [82] .

3.3.Lei 10.303/2001

A execução específica através do processo judicial, apesar de garantir a eficácia do pacto, mostrou-se geradora de incertezas com relação ao desenvolvimento das atividades corporativas. A morosidade do judiciário a efetivar a execução específica confrontava-se com a celeridade exigida pela dinâmica societária. A suspensão da deliberação assemblear na hipótese do voto considerado ineficaz por contrariar o acordo de acionistas e ser ainda determinante para o quorum da deliberação e também a possibilidade suscitada de a deliberação ser anulada em decorrência de um voto não desconsiderado acarretavam insegurança à sociedade e minavam o próprio objetivo do pacto, o de gerar uma estabilidade no desenvolvimento da atividade da companhia.

Com o intuito de garantir maior eficiência e estabilidade ao pacto, e de resolver as principais discussões doutrinárias sobre o instituto, a Lei 10.303/2001 inseriu novas disposições no instituto, alterando a redação do próprio caput e inserindo seis novos parágrafos.

A primeira alteração relevante à presente dissertação foi a inclusão do poder de controle dentro dos objetos possíveis de regulamentação pelo acordo.

Tal alteração, contudo, já era incluída pela doutrina anterior à Lei como possível, embora ainda não houvesse expressa regulamentação da matéria pelo artigo 118. Isso porque o artigo 116, ao caracterizar o poder de controle, já incluía o acordo como uma das modalidades para caracterização do bloco de controle; além do mais, o poder de controle deve ser necessariamente exercido através do voto nas deliberações, o que já era incluído expressamente no caput do art. 118. A alteração do caput, contudo, não é de todo inócua. Sua principal repercussão seria quanto à relação entre sociedade controlada e sociedade controladora, tornando oponíveis à sociedade controlada os acordos celebrados entre acionistas da sociedade controladora, desde que preenchidos os requisitos legais, pois a lei não distinguiria entre o controle direto e o controle indireto.

Mais importante que a menção do controle no caput do art. 118, todavia, foi a inclusão neste dos §§8º e 9º.

O §8º consolida o entendimento doutrinário majoritário, quanto à redação original do art. 118 da Lei 6.404/76, de que o presidente da assembléia geral não deveria computar o voto proferido com infração do acordo devidamente arquivado. A regulação pelo novo dispositivo não se mostra, todavia, plenamente satisfatória. Embora torne expressa a obrigação do presidente de não computar o voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado, não lhe atribui poderes, nem a qualquer outra parte pactuante, de substituir o voto dissidente.

Ainda mais relevante que a determinação dos deveres do Presidente da mesa da Assembléia, o referido dispositivo possibilita a vinculação dos administradores aos termos do acordo de acionistas. A afirmação decorre do dispositivo não se referir somente aos deveres do Presidente da mesa da Assembléia, mas também ao dever de não computar o voto proferido com infração de acordo de acionistas ao presidente do "órgão colegiado de deliberação da companhia". Desta forma, reconhece, de maneira contrária à opinião majoritária até então em vigor, o dever do presidente do Conselho de Administração ou da Diretoria, quando esta atuar de maneira colegiada, de zelar para que o acordo que vincule o membro de administração seja cumprido neste respectivo órgão.

A tutela extrajudicial tão aclamada e criticada em relação à omissão legislativa no §8º foi parcialmente deduzida no §9º. No referido dispositivo, possibilita-se o cumprimento do acordo pelos próprios convenentes, sem necessidade do prejudicado pleitear judicialmente o cumprimento dos termos acordados. Segundo o dispositivo, a abstenção de voto ou o não comparecimento na Assembléia Geral de um dos acionistas vinculados ao acordo, bem como a abstenção ou o não comparecimento nas reuniões dos órgãos da administração de administrador eleito nos termos do acordo de acionistas "assegura à parte prejudicada o direito de votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do conselho de administração, pelo conselheiro eleito com os votos da parte prejudicada" [83] .

De acordo com o §9º, portanto, não é mais imprescindível o recurso ao poder judiciário para satisfazer a pretensão ao cumprimento da obrigação convencionada. O adimplemento na hipótese de não comparecimento ou abstenção do voto faz-se, assim, de maneira imediata, sem necessidade da eventual suspensão da deliberação assemblear, tornando o acordo de acionista mais efetivo e diminuindo os prejuízos causados pelo óbice ao prosseguimento das atividades corporativas.

A legitimidade garantida pelo §9º para substituir a vontade do acionista não pode ser confrontada com o argumento de que o acionista dissidente nem sequer chegou a manifestá-la, o que inviabilizaria qualquer substituição. O acionista, ainda que tenha se abstido de votar ou mesmo não tendo comparecido à deliberação, manifestou sua vontade previamente à deliberação, no momento em que convencionou o acordo de acionistas e comprometeu-se a emitir determinada declaração de voto, o que assegura a possibilidade de substituição de seu voto na assembléia, de modo a cumprir o convencionado [84] .

Da análise dos dois parágrafos referidos, entretanto, não pode passar despercebida a diferença de tratamentos entre as modalidades do mesmo gênero da obrigação de votar. Com base na argumentação de Pontes de Miranda, a qual considera o exercício do voto tanto como um facere, como um non facere [85] , não poderia haver tratamento legal diferenciado para hipóteses similares, ambas espécies do gênero inadimplemento, sob pena de incoerência do próprio sistema. Com base nesta intelecção, Aragão sustenta a interpretação extensiva do § 9º, admitindo a substituição do voto, não só quando o acionista ou administrador não compareça à deliberação ou se abstenha, como também na hipótese de ter manifestado voto contrário aos termos pactuados [86] .

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Sobre o autor
Marcelo Barbosa Sacramone

advogado em Jundiaí (SP), mestrando em direito comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Acordo de acionistas como limitação contratual ao poder de gestão e representação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1548, 27 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10467. Acesso em: 20 mai. 2024.

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