Sumário: 1. Introdução; 2. O objetivo da Lei Maria da Penha; 3. A possibilidade de concessão de liberdade provisória ao infrator; 4. A jurisdicionalização dos procedimentos referentes à Lei Maria da Penha; 5. A fiança na Lei nº 11.340/2006; 6. Condicionamentos para a liberdade provisória; 7. Conclusão.
1.Introdução
Com o surgimento da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como "Lei Maria da Penha", que estabelece regras, medidas e sanções nos casos de violência no âmbito familiar, advieram dúvidas e questionamentos sobre sua aplicabilidade.
Entre essas dúvidas, aparecem as relativas à liberdade provisória do infrator às disposições penais da mencionada lei.
Pode-se soltar o infrator provisoriamente? Os crimes são afiançáveis? Quem poderá conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança? Eventual liberdade provisória do infrator não prejudicará a vítima, submetendo-a a situação de risco?
Visando responder a estas indagações, faz-se esta exposição, com o propósito de contribuir para a discussão do tema.
2.O objetivo da Lei Maria da Penha
Conforme dito acima, a gênese da Lei nº 11.340/2006 foi o incremento assustador, em especial nas últimas décadas, de violências físicas, morais e psicológicas no âmbito familiar, tendo como principal vítima a mulher.
Deve ser ressaltado que essa problemática não é exclusiva de nosso país, sendo objeto inclusive de Convenções Internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, ratificada e promulgada pelo Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1984 (Convenção de Belém do Pará), ratificada e promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996.
Neste diapasão, o objetivo da Lei Maria da Penha foi estabelecer proteção especial às vítimas de violência no âmbito familiar, excepcionando, em muitos aspectos, o sistema geral protetivo e repressor, constituído pelo Código Penal e Código de Processo Penal.
3.A possibilidade de concessão de liberdade provisória ao infrator
Embora tenha tido o propósito de adotar uma postura mais rigorosa, no que toca aos infratores que cometam ilícitos penais no âmbito familiar, a Lei Maria da Penha deve ser interpretada à luz da Carta Magna, sob pena de incorrer no vício da inconstitucionalidade.
Não se pode olvidar que a Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LVII, assevera que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".
Tal disposição constitucional, igualmente aplicável à Lei Maria da Penha, como não poderia deixar de ser, permite, em tese, a concessão de liberdade provisória ao infrator, com ou sem fiança, guardadas as situações e peculiaridades de cada caso.
4.A jurisdicionalização dos procedimentos referentes à Lei Maria da Penha
Analisando toda a Lei nº 11.340/96, constata-se que o legislador pretendeu, até como forma de garantia à vítima de infrações penais no âmbito familiar, concentrar as deliberações de medidas legais na pessoa da autoridade judiciária.
Exemplo disso foi a prescrição de que somente perante o juiz a vítima poderá retratar-se da representação criminal feita, evitando-se que tal proceder se dê na Delegacia de Polícia, sem a presença e assistência de advogado.
Mais, as medidas de proteção à vítima são fixadas e estabelecidas pela autoridade judiciária, sempre com o propósito de resguardar aquela de eventuais novas agressões ou práticas violentas.
Portanto, a Lei Maria da Penha, de forma mais incisiva e derrogando o direito anterior, deu relevo significativo à atuação da autoridade judiciária, que participará de maneira contundente de todo o procedimento legal, inclusive antes do recebimento de eventual denúncia.
5.A fiança na Lei nº 11.340/2006
A Lei Maria da Penha, conforme visto acima, permitiu, em respeito ao mandamento constitucional da presunção de inocência, a concessão de liberdade provisória ao infrator, inclusive com o pagamento de fiança.
A respeito da fiança, o artigo 322 do Código de Processo Penal fixa que a autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples.
Os crimes previstos na Lei nº 11.340/2006, inclusive o artigo 129, § 9º, do Código Penal Brasileiro, acrescido por aquele diploma legal, são punidos com pena de detenção.
Em rápida e apressada exegese, a conclusão é que caberia à autoridade policial, ainda nas infrações penais ínsitas na Lei nº 11.340/2006, arbitrar fiança ao infrator e, conseqüentemente, conceder-lhe liberdade provisória.
Parece uma interpretação simples, mas que precisa ser adequada à luz da sistemática legal e processual, bem como da própria finalidade e objetivos da lei protetora em tela.
Deveras, o Código de Processo Penal, precisamente no seu artigo 313, também estabelece que somente é possível a prisão preventiva, exceto a circunstância prevista no inciso II, aos crimes punidos com reclusão.
Contudo, o mesmo artigo 313 do Código Penal, no inciso IV, acrescido pela Lei nº 11.340/2006, estabelece a hipótese de prisão preventiva nos crimes envolvendo violência familiar e doméstica contra a mulher, visando garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Verifica-se, portanto, que Lei Maria da Penha estabeleceu verdadeiras exceções ao sistema geral, seja no que concerne à fiança, seja no que toca à prisão preventiva.
Os institutos da liberdade provisória e da prisão preventiva devem guardar absoluta simetria, sob pena de se estabelecer contradições na aplicação do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, difícil explicar como alguém que foi solto mediante fiança arbitrada pelo Delegado de Polícia, momentos depois poderá ser preso preventivamente pela autoridade judiciária, para a garantia da vida e integridade das vítimas de violência doméstica.
O certo é que pela sistemática da Lei Maria da Penha, excepcionando o ordenamento processual penal geral, admitiu-se a decretação de prisão preventiva em crimes punidos com detenção.
Ora, se assim é, somente caberá ao juiz, de posse do auto de prisão em flagrante, analisar se existe ou não motivos para a manutenção da prisão provisória, nos termos do artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal.
Permitir o arbitramento de fiança pela autoridade policial, no caso em que é possível a decretação de prisão preventiva, além de causar desvirtuamento do ordenamento jurídico, ainda acarretará perplexidade em posicionamentos contraditórios, bem como usurpação da função jurisdicional do juiz.
Se desejasse o legislador essas incoerências acima mencionadas, já teria anteriormente permitido o arbitramento de fiança em crimes punidos com reclusão, o que, com acerto, nunca o fez.
Além da questão meramente jurídica, a realidade prática também depõe contra o mero arbitramento de fiança pela autoridade policial, excluindo a atuação do juiz na concessão de liberdade provisória.
É sabido que nas Delegacias de Polícia, em especial nos plantões, ao ser flagranteado o infrator, dele é apenas exigido o pagamento de fiança, saindo livre e voltando para a residência familiar, com reais riscos à vítima.
Na verdade, o que pretendeu a Lei Maria da Penha foi exatamente evitar-se que, mediante simples pagamento de multa, sem a análise mais cuidadosa das circunstâncias fáticas do caso pela autoridade judiciária, o infrator conseguisse safar-se da máquina repressora estatal, continuando a perpetuar seus atos de violência e agressões contra a mulher.
Desta forma, aceitar mero arbitramento de fiança pela autoridade policial somente servirá para, direta ou indiretamente, desvirtuar os objetivos do legislador ao editar a Lei nº 11.340/2006, reduzindo o papel protetivo do Estado às vítimas de violência doméstica.
6.Condicionamentos para a liberdade provisória
Estabelecido o monopólio da autoridade judiciária para o conhecimento e julgamento de quaisquer causas envolvendo a liberdade provisória nos casos de violência doméstica, urge ser ressaltada a necessidade de eventual deferimento do pleito libertário ser condicionado ao cumprimento por parte do infrator de medidas de proteção à vítima e aos seus familiares.
Neste ensejo, ao conceder a liberdade provisória ao infrator, deve a autoridade judiciária, fitando o caso concreto, estabelecer, sem prejuízo do pagamento de fiança, caso o infrator possua condições econômicas para tanto, aplicar as medidas protetivas estabelecidas no artigo 22 da Lei nº 11.340/2006, assim como outras que entender necessárias para salvaguardar a integridade física e moral da vítima, sob pena de ser novamente decretada a prisão do infrator.
7.Conclusão
Tendo em vista todo o exposto acima, conclui-se o seguinte:
1.Mesmo tendo a Lei nº 11.340/2006 estabelecido maior rigor na punição dos infratores que praticam crimes de violência doméstica, em respeito ao princípio da presunção de inocência, é permitido a concessão àqueles de liberdade provisória, com ou sem fiança;
2. Nos casos previstos na Lei nº 11.340/2006, a concessão de liberdade provisória é competência exclusiva da autoridade judiciária, não cabendo o arbitramento de fiança pelo Delegado de Polícia, diante da necessidade do juiz averiguar previamente a possibilidade ou não de manutenção da prisão provisória;
3.Ao eventualmente deferir a liberdade provisória aos infratores que praticam crimes de violência doméstica, deverão os juízes, analisando o caso concreto, condicionar a soltura daqueles ao cumprimento de medidas que efetivamente protejam a vítima e os demais familiares.
Referências bibliográficas
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SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher. Curitiba: Editora Juruá, 2007.
OLIVEIRA, José Carlos de. O instituto da fiança na lei 11.340/06 – José Carlos de Oliveira. Disponível na internet: http://www.patriciagalvao.org.br. Acesso em 07 de julho de 2007.