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Lei Maria da Penha.

Uma análise dos novos instrumentos de proteção às mulheres

Resumo:


  • A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) foi criada para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, oferecendo mecanismos de proteção e punição aos agressores.

  • A lei permite medidas protetivas de urgência, como o afastamento do agressor do lar e a proibição de aproximação da vítima, além de prever a criação de juizados especializados e ações de prevenção.

  • Além das medidas protetivas, a Lei Maria da Penha alterou o Código Penal, estabelecendo crimes e penas específicas para agressões contra mulheres no contexto doméstico e familiar.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

No dia 22 de setembro de 2006 entrou em vigor no Brasil a Lei n. 11.340, que trata da criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei foi batizada como Lei Maria da Penha, em homenagem à cearense homônima, que se tornou símbolo da luta contra a violência doméstica contra a mulher. Maria da Penha foi vítima de tentativa de homicídio duas vezes, em 1983, tendo ficado paraplégica. Lutou para ver seu agressor condenado, o que apenas ocorreu após o Brasil ser condenado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) por violação ao direito fundamental da vítima mulher ante a ineficiência da persecução penal.

A lei, respaldada por forte movimento social de defesa dos direitos da mulher, é bem-vinda, pois reflete a necessidade premente de repensar as relações de gênero como uma relação construída sobre uma cultura secular de poder simbólico de dominação machista, cuja perversa marca tem sido a violência doméstica. Segundo estudo do IBGE, do final da década de 80, 63% das agressões físicas sofridas por mulheres são cometidas dentro de casa por pessoas com afinidade pessoal e afetiva [01]. Segundo estudo da fundação Perseu Abramo, a cada minuto quatro mulheres são agredidas no Brasil [02]. Uma sociedade justa e democrática apenas pode ser construída com superação destas desigualdades fáticas, mediante políticas públicas que assegurem o pleno desenvolvimento da potencialidade humana de todos, independente de gênero, idade, raça e credo.

O tratamento diferenciado que a lei confere à mulher funda-se no reconhecimento de que existe um papel social artificialmente atribuído à mulher, caracterizado pela subordinação familiar, não-independência econômica, de ser a responsável pelas atividades de casa e criação dos filhos enquanto o homem é o responsável pelo sustento, de ser a responsável pela manutenção da unidade familiar, de lealdade ao "chefe do lar" mesmo nas dificuldades (leia-se agressão), de ausência de voz ativa na gestão da família, de necessidade de manter o matrimônio a qualquer custo sob pena de se tornar uma pecadora, de aceitação da violência como um problema normal de casal e sua denúncia como atitude desleal, afora os mitos construídos de que "mulher gosta de apanhar" ou que "é necessário domar a mulher". Este caldo cultural discriminatório, somado a uma incompetência emocional de lidar com os problemas familiares de forma madura, mediante o diálogo e o respeito, cria ambiente propício à proliferação da violência doméstica, expressa em ameaças, agressões, humilhações, cerceamentos, subjugação, um controle do corpo e da alma da vítima, que além de violar direitos humanos básicos atua como um câncer social, pois corrói as bases éticas da própria sociedade gerando danos físicos e emocionais permanentes na vítima e seus dependentes.

O novo regramento legal parte do reconhecimento de que há todo um conjunto de poder simbólico, interiorizado por homens e mulheres desde a infância, que coloca a mulher em uma postura de dependência e acaba por fragilizá-la na relação de gênero, especialmente no âmbito doméstico, potencializando sua vitimização e criando óbices à alteração deste status, pela dificuldade psicológica de sua denúncia e pela tendência de minimização da gravidade da violência pelas instâncias formais e informais de controle social. Infelizmente, não é raro ouvir-se a expressão que "agressão de marido contra mulher não é ''violência contra a mulher'' mas violência contra a sua mulher", argumento estapafúrdio fundado numa perspectiva coisificante da mulher e utilizada para justificar a desnecessidade de interferência do Estado para quebrar este ciclo de violência que se repete diariamente em milhares de lares. A tomada de consciência desta desigualdade justifica a criação de políticas públicas destinadas a superar esta relação de gênero iníqua em favor da máxima efetividade dos direitos fundamentais da mulher, mediante a construção de uma nova forma de relação social pautada no reconhecimento da idêntica dignidade humana entre homens e mulheres.

O compromisso do Estado Brasileiro de atuar de forma efetiva na proteção dos direitos fundamentais das mulheres vem previsto no art. 226, § 8º, da CF/88, que estabelece: "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Esta disposição constitucional não é princípio abstrato, meramente programático, mas norma efetiva, que possui eficácia vinculante para o ordenamento jurídico infra-constitucional, de forma que é o ponto de partida hermenêutico para toda a legislação.

No plano internacional, o Brasil é signatário desde 1996 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como convenção de Belém do Pará) [03], pela qual assumiu o compromisso de:

Art. 7º [omissis]

2. agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher.

4. adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade.

5. tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.

Assim, toda legislação deve ser interpretada de forma que se proporcione a máxima efetividade à proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos e, diante do reconhecimento da violência doméstica como um problema histórico de desigualdade nas relações de gênero, a legislação deve ser interpretada de forma que maximize a prevenção à violência doméstica, evitando quaisquer práticas que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.

Assim, a nova lei estabelece de forma peremptória que é co-responsabilidade do Estado, ao lado da família e sociedade, alterar a desigualdade na relação de gênero para assegurar o direito a uma vida livre de violência pelas mulheres (art. 3º). A lei contém uma enunciação de direitos das mulheres que, apesar de já estarem previstos na Constituição de forma genérica, sua explicitação num diploma legal específico para as mulheres é uma importante forma de comunicação social, sinalizando a alteração de paradigma quanto à não-aceitação da violência contra a mulher.

A novel legislação classifica como espécies de violência doméstica tanto a violência física, como a psicológica, sexual, patrimonial e moral (art. 7º). Todas são consideradas violações aos direitos humanos das mulheres.

A lei prevê a possibilidade de uma série de medidas de proteção e assistência à mulher. Por exemplo, prevê o acesso prioritário à remoção, se a vítima for servidora pública, bem como a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses, todas deferidas mediante ordem judicial (art. 9º, § 2º).

Especificamente no âmbito processual penal, a Lei Maria da Penha criou instrumentos importantes para assegurar uma intervenção preventiva do Estado a fim de evitar a ocorrência de delitos mais sérios contra a mulher, bem como para dar uma resposta mais efetiva à violência, visando assegurar a proteção integral nas relações de gênero. Várias foram as inovações.

Durante o atendimento policial, a lei também criou novos direitos à mulher (art. 11), como o direito à proteção policial, quando necessário; encaminhamento da ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; direito de receber transporte policial para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; se necessário, ser acompanhada para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar.

A nova lei estabelece a necessidade de criação de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para processar e julgar as causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 14). A especialização é importante pois possibilita que a repetição das causas gere especial sensibilidade aos operadores do direito quanto ao problema da violência doméstica, possibilitando ações estatais mais eficientes. No Distrito Federal, o TJDFT editou a Resolução n. 07/2006, criando uma Vara de Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na Circunscrição Especial Judiciária de Brasília e estabelecendo que nas demais circunscrições a competência desta vara será exercida pelo Juizado Especial Criminal respectivo. Certamente há que se atentar para que a efetividade da Lei n. 11.340/06 não fique comprometida com a antiga mentalidade dos Juizados Especiais Criminais, aproveitando-se as experiências positivas de acompanhamento multidisciplinar nestes Juizados e afastando-se a "cultura do arquivamento" e da minimalização da violência, tendo-se efetivamente uma postura ativa do Estado para resolução deste problema social da violência doméstica contra a mulher.

A lei criou as Medidas Protetivas de Urgência (art. 12, 18, 19 e 22 a 24). Quando uma mulher registra um boletim de ocorrência informando que foi vítima de qualquer espécie de violência doméstica, é obrigação da autoridade policial indagar à vítima se esta possui interesse no deferimento de algumas das medidas protetivas previstas em lei, como suspensão de porte de arma, afastamento do lar, proibição de aproximação, de contato e de freqüência a determinados lugares, restrição ao direto de visita de menores e prestação de alimentos provisionais (art. 22). A vítima formula seu requerimento em delegacia, sem necessidade de assistência de advogado, e esta deve encaminhá-lo, no prazo de 48 horas, ao juiz com cópia do boletim de ocorrência e do depoimento da mulher. Por sua vez, o juiz deve decidir num prazo de 48 horas sobre o deferimento dos pedidos. Este procedimento permite que, de forma rápida (no máximo 96 horas), o juízo especializado possa dar uma resposta de proteção a uma situação de urgência experimentada pela mulher vítima de violência, visando assegurar sua integridade física e moral. A desobediência do agressor à ordem determinada pelo juiz pode ensejar sua prisão preventiva, nos termos de alteração feita pela nova lei no Código de Processo Penal.

Além destas, outras medidas de proteção estão previstas na nova lei, como encaminhamento da vítima a programa oficial de proteção, recondução da vítima ao domicílio com apoio de força policial, proibição temporária de disposição do patrimônio comum pelo agressor, dentre outras (art. 23 e 24).

A previsão de medidas protetivas foi adotada tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90, art. 101) quanto no Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03, art. 45), que são aplicadas em relação a crianças, adolescentes ou idosos em razão de sua situação de hipossuficiência, e não aos agressores. Todavia, estas medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha realmente inovam ao prever medidas que obrigam diretamente ao agressor.

Estas medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor são, na realidade, novas alternativas à tradicional bipolaridade do sistema cautelar penal brasileiro, que conhecia apenas dois extremos: a prisão cautelar ou a liberdade provisória. A lei cria novas medidas cautelares intermediárias, que permitem uma resposta mais efetiva e menos violenta do Estado, para situações que, a princípio, não seriam hipótese de decretação da prisão preventiva.

Na verdade, a lei não é clara quanto à natureza jurídica destas medidas cautelares, se cível, criminal ou híbrida. Certamente a interpretação da disposição deverá ser a que assegurar a máxima efetividade à proteção aos direitos fundamentais.

A medida prevista no art. 22, inciso V (prestação de alimentos provisórios), certamente possui natureza exclusivamente cível. Todas as demais medidas protetivas de urgência possuem natureza cautelar penal, pois visam assegurar a integridade física e moral da vítima em decorrência do crime, mas também é possível a construção de que possuem natureza cível independente.

Nos EUA, existem as protective orders e as restraining orders, sendo as primeiras com natureza criminal e as segundas com natureza cível. As medidas de natureza criminal possui duração limitada à duração da ação penal. Já as medidas cíveis possuem duração independente, estabelecendo-se o prazo adequado para sua validade. Regra geral, as medidas restritivas de natureza cível são muito mais adequadas que as de natureza criminal para conflitos familiares, pois em casos de ameaça, v.g., é muito comum que o maior interesse da vítima seja apenas que o agressor seja afastado de seu convívio e seja proibido de aproximação, sob pena de prisão e responsabilidade criminal. A interpretação que venha permitir ao juiz fixar prazo razoável para duração da medida protetiva de urgência de proibição de aproximação e contato, mesmo após o término do procedimento criminal, é certamente aquela que proporcionará maior efetividade à finalidade da lei de proteção integral à mulher, e será ao mesmo tempo a menos violenta, pois permitirá que a vítima informe desinteresse na sanção criminal e interesse apenas da ordem de restrição de aproximação. Como implicam em restrição de direitos do suposto agressor, decidida mediante informações unilaterais da vítima, é admissível que aquele venha questionar os fundamentos da decisão após sua intimação (contraditório diferido). Assim, após o deferimento ou indeferimento do pedido de medida protetiva de urgência, deverá o juiz citar o agressor do requerimento, intima-lo da decisão e notificar as partes para comparecerem em audiência, na qual serão ouvidas as partes e suas eventuais testemunhas e o juiz decidirá o feito. Tudo informado pelo princípio da oralidade e celeridade, para assegurar a efetividade da proteção à mulher e o respeito ao direito de defesa do (suposto) agressor.

Em nosso entendimento, caso as partes estejam separadas e a vítima alegue estar sofrendo ameaça ou agressões, deve-se conceder inaudita altera pars a medida protetiva de proibição de aproximação e de contato. Entre a proteção ao direito da alegada vítima, mas possível comunicante mendaz, e do alegado agressor, mas possível inocente, certamente é mais sensato usar de cautela para a proteção imediata da possível vítima com a revisão posterior da decisão em audiência de justificação. Certamente a situação que causará mais dificuldades será o pedido de afastamento do lar, quando ambos ainda convivem sob o mesmo teto. Ainda assim, se o pedido de medida protetiva de urgência vier instruído com informações da delegacia de que efetivamente a vítima sofreu agressão (ainda que um relato sucinto do agente de polícia que registrou a ocorrência documentando agressões), diante do histórico de violência doméstica e dos antecedentes do agressor, será possível uma decisão cautelar e precária de afastamento do lar. Fora destas situações, é prudente a designação de audiência de justificação para o deferimento do pedido.

Muito se discute sobre a possibilidade de aplicação destas medidas protetivas de urgência também para vítimas homens, especialmente se estes estão em situação de hipossuficiência, como é o caso de idosos, crianças ou portadores de necessidades especiais. Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso estabelecerem alguns instrumentos de proteção, nenhuma destas medidas protetivas obrigam ao agressor, bem como nenhum procedimento é tão eficiente quanto o previsto na Lei Maria da Penha. Provavelmente a lei não previu a aplicação destas medidas também a vítimas homens na finalidade de criar uma comunicação simbólica de que doravante as mulheres contarão com uma proteção especial do Estado. Todavia, há que extrair a máxima efetividade da norma em comento, cujo espírito é proporcionar uma proteção o mais eficiente possível às vítimas de violência em situação de fragilidade, como é o caso das mulheres, assim como das crianças, idosos e portadores de necessidades especiais ou mesmo homens em outras situações de violência. Assim, considerando que o estabelecimento das medidas protetivas de urgência é feita em norma processual e que esta admite a aplicação da analogia (CPP, art. 3º), entendo que é admissível o deferimento de medidas protetivas de urgência em favor de vítimas homens, por analogia, e com fundamento no poder geral de cautela do juízo, em atenção ao princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Neste sentido, argumenta Denilson Feitoza Pacheco que: "o princípio constitucional da proporcionalidade, especialmente como decorrência do exame de necessidade, nos possibilita concluir que o órgão jurisdicional pode, quando cabível uma medida cautelar mais gravosa, impor uma medida cautelar alternativa mais branda não prevista na lei processual penal ou reduzir aspectos da medida cautelar cabível para que fique mais branda, se a idoneidade da medida cautelar alternativa é equivalente" [04].

A lei expressamente prevê a possibilidade de decretação da prisão preventiva aos crimes cometidos em violência doméstica e familiar contra a mulher. Há dois dispositivos que tratam da matéria, o art. 20, caput, da lei e o novo inciso IV do art. 313 do CPP. In verbis:

Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

A alteração é positiva, pois possibilita que em situações mais graves o Estado tenha instrumentos para evitar que o conflito inicial transforme-se em atos mais sérios. Todavia, duas questões controvertidas merecem análise: as hipóteses de cabimento da prisão e o prazo de duração da medida.

Quanto ao cabimento, verifica-se que o novo inciso IV do art. 313 do CPP traz mais uma hipótese de cabimento da prisão preventiva. Assim, além dos requisitos previstos no art. 312 do CPP (causas de periculum libertatis) o Código faz uma pré-ponderação das hipóteses de crimes mais graves que justificam a prisão preventiva. Assim, considerando que todos os crimes punidos com reclusão já admitem a prisão preventiva (inciso I), também o crime punido com detenção praticado por réu primário, com identidade certa e não-vadio, admitirá a prisão preventiva desde que praticado com violência doméstica contra mulher e estejam presentes os demais requisitos do art. 312 do CPP. Esta hipótese é de especial importância para a decretação da prisão preventiva para a lesão corporal em violência doméstica e a ameaça, já que ambas são punidas com detenção.

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Neste ponto há uma parcial contradição entre os dois dispositivos supra citados. O art. 20 da lei é genérico sobre a admissibilidade da prisão preventiva. Já o inciso IV do art. 313 do CPP é mais restritivo, dando a entender que apenas seria admissível a decretação da prisão preventiva se antes houver o deferimento de uma medida protetiva de urgência em favor da mulher, e esta for desobedecida pelo agressor (decretação da prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência). Todavia, esta interpretação não deve prosperar. Como visto, o art. 226, § 8º, da CF/88 estabelece o dever de proteção eficiente a todos os membros da família, especialmente as mulheres. O art. 7º do Decreto n. 1973/96 (Convenção Interamericana de Belém do Pará) determina que o Estado Brasileiro deve modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher. A máxima eficiência da norma constitucional e do tratado internacional sobre direitos humanos deve ser a guia da interpretação jurídica. A finalidade da prisão preventiva é assegurar a efetiva proteção da mulher em uma situação de urgência. Assim, se a mulher foi vítima de uma séria agressão (v.g., lesão corporal doméstica que, apesar de legalmente simples, é da maior seriedade, acompanhada de séria ameaça de morte), mesmo que não tenha sido previamente deferida uma medida protetiva de urgência, é admissível que a gravidade concreta do crime já demonstre ser relevante a decretação da prisão preventiva para proteger a integridade física da mulher. Vale argumentar que, na mesma hipótese, seria admissível a efetivação da prisão em flagrante do autor, não sendo razoável que o delegado tenha poderes para determinar a prisão em flagrante mas o juiz não tenha poderes para determinar a prisão preventiva.

Quanto ao segundo aspecto da prisão, há que se ter cautela no prazo de duração da prisão preventiva, para evitar a violação à denominada instrumentalidade hipotética das medidas cautelares. É que as penas mínimas dos crimes de ameaça e lesão corporal ainda são extremamente pequenas (um mês para ameaça e três meses para lesão corporal). Como a pena no caso de condenação será fixada a partir do mínimo legal e normalmente não excede muito este mínimo (a não ser por circunstâncias muito graves do caso concreto, como reincidência ou circunstâncias concretas diferenciadas), há o problema de que a prisão cautelar seja mais grave que a própria condenação criminal. Lamenta-se, neste ponto, a redução da pena mínima do crime de lesão corporal feita pela lei, que acabou criando mais embaraços à implementação da prisão preventiva. Todavia, como a prisão preventiva é decretada nestas hipóteses para assegurar a instrução processual, de sorte que a principal testemunha do delito, a vítima, esteja viva para poder testemunhar, é razoável que em situações realmente extremas admita-se a prisão no curso do processo. Portanto, não se trata de mera prisão para assegurar uma punição imediata ao agressor (função reservada à sanção penal definitiva e não à prisão cautelar). Contudo, é essencial a constante ponderação dos interesses contrapostos para o deferimento de uma medida tão extrema quanto a prisão cautelar. Também é razoável que a medida seja deferida por prazo determinado, fixado pelo juiz quando de sua decretação, exatamente para evitar que eventual demora excessiva do processo transforme a prisão cautelar em pena muito superior à própria condenação.

A nova lei estabelece que é indispensável a intervenção do Ministério Público em todas as causas cíveis e criminais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 25), estabelecendo-lhe poderes de requisição aos órgãos públicos para assegurar a proteção efetiva à mulher (art. 26).

A Lei prevê a necessidade de criação junto ao Juizado da Mulher de equipe de atendimento multidisciplinar (art. 29 a 32), da área psicossocial, jurídica e de saúde, com atribuição para subsidiar a atuação do juiz, promotor de justiça e defensor público, bem como atuar em trabalhos de orientação e prevenção à violência. Esta medida foi certamente inspirada na experiência de vários Estados que instalaram referidos núcleos psicossociais perante os Juizados Especiais Criminais e deram resultados muito mais efetivos que a tradicional punição criminal. Estas intervenções visam gerar reflexão nos agressores sobre os problemas que envolvem a violência doméstica e conscientizá-los da necessidade de procurar soluções alternativas à violência para superação de seus conflitos. O ideal é que esta equipe de apoio possa se fazer presente durante as audiências, para proporcionar consultoria especializada ao juiz e promotor de justiça sobre as melhores soluções para os problemas submetidos à apreciação do Juizado da Mulher, bem como que haja um trabalho de longo prazo para o acompanhamento psicossocial dos envolvidos.

Também há alteração da Lei de Execuções Penais para permitir que o juiz encaminhe obrigatoriamente o agressor condenado para programa de recuperação e reeducação (LEP, art. 152, parágrafo único), normalmente de cunho psicossocial.

No mesmo sentido de uma autuação preventiva de novas agressões, a Lei Maria da Penha também estabelece diretrizes para que União, Estados e Municípios implantem políticas preventivas à violência doméstica (art. 35), como programas e campanhas de enfrentamento à violência doméstica e familiar, centros de educação e reabilitação para agressores, e uma série de serviços especializados à mulher (atendimento multidisciplinar, casa-abrigo, delegacias, núcleos da defensoria pública, serviços de saúde etc). Na efetiva implementação destas políticas preventivas provavelmente reside o maior potencial de alteração da realidade brasileira para a implementação da igualdade nas relações de gênero.

A lei implementou alterações no Código Penal, como a inclusão da agravante da violência doméstica contra mulher (CP, art. 61, II, "f"), a alteração da pena da lesão corporal em situação de violência doméstica (CP, art. 129, § 9º, que teve a pena mínima diminuída pela metade e a pena máxima elevada de metade, passando de seis meses a dois anos para três meses a três anos) e criando causa de aumento da pena quando o crime for cometido contra deficiente (CP, art. 129, § 11). A elevação da pena máxima da lesão corporal em situação de violência doméstica (seja contra vítima mulher ou homem) retirou este delito do rol das infrações penais de menor potencial ofensivo - IPMPO, que anteriormente eram processadas pelos Juizados Especiais Criminais.

A lei estabelece que a retratação à representação da vítima apenas será admissível se feita perante o juízo (art. 16). Assim, as retratações feitas em delegacia não terão qualquer efeito se não forem feitas em juízo. Se a vítima não comparecer em juízo, poderá o Ministério Público dar continuidade ao processo penal. Esta alteração é importante, pois assegura que a vítima terá um contato pessoal com o Juiz e o Ministério Público, especializados no trato da violência doméstica, que poderão, ao invés de incentivar a desistência, conscientizar a vítima sobre a necessidade de levar o processo adiante, especialmente para possibilitar ao autor do fato ou à própria vítima submissão a acompanhamento multidisciplinar, como instrumento de prevenção a futuras agressões. Em muitas situações, após sofrer inúmeros atos de violência, a vítima se retrata da representação e foge para local incerto; nesta situação, se a vítima não comparecer em juízo para confirmar a retratação à representação e houver prova suficiente da prática do delito, será possível o ajuizamento da ação penal.

Também está vedado doravante o estabelecimento de penas de prestação pecuniária ou multa isolada para os crimes cometidos com violência doméstica contra mulher (art. 17). Assim, há a abolição das denominadas cestas básicas nestas hipóteses. A alteração visa evitar a banalização da resposta do Estado à violência doméstica, que, muitas vezes, acaba por gerar mais revolta à vítima, que se vê novamente humilhada ao se passar a impressão de que o réu possui a possibilidade de comprar o direito de agredir, normalmente a valores módicos, mediante o pagamento de cesta básica. Para uma punição séria, ao menos, há que se aplicar uma prestação de serviços à comunidade, como momento de reflexão pessoal do autor e de reparação social de seu ato. Há que se dar valor, especialmente, ao encaminhamento do agressor a programas de acompanhamento multidisciplinar, como o psicossocial, para evitar a reiteração de atos de violência doméstica mediante a interiorização da necessidade de respeito às normas de convivência social (que, no caso de condenação definitiva, é previsto na nova redação da LEP, art. 152, parágrafo único). Mesmo no caso de separação do casal, há a possibilidade de o agressor reiterar a violência na nova familiar que constituir, sendo essencial a intervenção do Estado para quebrar este ciclo de violência.

A vítima deve ser comunicada de todos os atos processuais, especialmente o ingresso e saída de estabelecimento prisional (art. 21, caput). Esta alteração visa reduzir a revitimização da mulher decorrente de sua desconsideração durante o processo, para o qual era apenas uma fonte de prova; agora, a vítima passa a ser partícipe do processo e destinatária de toda atuação estatal. A comunicação à vítima das medidas tomadas visa diminuir a sensação de impunidade, pois eventualmente a justiça aplicava uma sanção, mas como a vítima não era comunicada ficava com a sensação de que nada fora realizado.

Também fica vedado que a vítima efetua e entrega das notificações ao agressor (art. 21, parágrafo único). Como ambos normalmente estão residindo juntos, o oficial de justiça deverá entregar a comunicação processual pessoalmente ao agressor. Este dispositivo também possui aplicação na fase das investigações, pois era comum a vítima registrar a ocorrência e a autoridade policial solicitar que ela mesma entregasse a notificação de comparecimento ao agressor, o que gerava novas agressões.

A vítima também deve estar representada por advogado nos atos processuais, seja nas causas cíveis como criminais (art. 27). A disposição visa criar um instrumento adicional de fiscalização dos direitos da mulher, bem como facilitar que problemas que não podem ser resolvidos na seara criminal tenham o devido encaminhamento na seara cível.

Os processos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher devem ter tramitação prioritária (art. 33, parágrafo único). A disposição visa garantir a efetividade na efetivação da proteção à mulher. Certamente, a tramitação de casos de violência doméstica é mais relevante que processos envolvendo crimes contra o patrimônio, que atolam delegacias e varas criminais. Todavia, a disposição deve ser contemporizada com normas constitucionais que estabelecem tratamento diferenciado para crimes hediondos e equiparados, como homicídio, latrocínio e seqüestro, por exemplo, bem como com outras normas legais que estabelecem tramitação prioritária, como para idosos.

Todavia, a alteração mais relevante para o processo penal foi a estabelecida no art. 41 da Lei n. 11.340/06, que estabelece que não se aplica a Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais) aos crimes cometidos em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. Uma interpretação literal do dispositivo leva às seguintes conclusões: admite-se prisão em flagrante para os crimes contra mulher, em situação de violência doméstica ou familiar, é inadmissível acordo civil, transação penal ou suspensão condicional do processo, o crime de lesão corporal passa a ser de ação pública incondicionada.

Muito se tem discutido acerca da constitucionalidade deste dispositivo, pois estabelece um tratamento diferenciado entre crimes contra vítimas homens e mulheres. Isso porque o artigo permitirá que o crime de lesão corporal doméstica contra vítima homem dependa da autorização da vítima, mas contra vítima mulher independa desta autorização, bem como que uma ameaça do irmão contra a irmã admita prisão em flagrante mas que a ameaça da irmã contra o irmão não admita a mesma prisão. Como visto no início deste artigo, uma diferenciação de tratamento pode ser justificada quando houverem razões de ordem prática que justifiquem a o tratamento diferente exatamente para assegurar a igual proteção, e no caso das relações de gênero há certamente várias razões que colocam as mulheres em situação de fragilidade que justificam políticas públicas de maior proteção. Todavia, esta diferenciação deve ser realizada no limite no necessário para assegurar a melhor proteção. Este art. 41 da nova lei deve ser lido como um vetor de política criminal destinado a assegurar melhor proteção à mulher, na medida do necessário.

Considerar o crime de lesão corporal em situação de violência doméstica ou familiar contra mulher de ação penal pública incondicionada é relevante para superar a pressão sociológica que existe sobre a mulher para esta não levar adiante a responsabilização do crime. Há uma alteração do foco da resposabilização, pois a culpa do agressor ser processado não mais será da vítima que assim escolheu, mas do próprio agressor que violou as normas sociais. Normalmente há um ciclo de brigas do casal, que vai da agressão, separação emocional, reconciliação, lua-de-mel, novas agressões e reinício do ciclo. Como a retratação à representação geralmente ocorre na fase da lua-de-mel, condicionar a resposta do Estado à representação significa afirmar que o Estado fará tábula rasa da situação de violência que certamente se reiterará ali adiante se nada for realizado. Assim, a alteração para ação incondicionada permite que o Estado tenha mais instrumentos de ação frente uma situação de violência doméstica (de forma especial o encaminhamento do agressor a acompanhamento psicossocial), para alterar a realidade, mesmo quando a vítima não deseje o prosseguimento do processo.

O TJDFT possui decisões em ambos os sentidos. Há precedentes de ambas turmas criminais, assentando que a crime de lesão corporal em situação de violência doméstica e familiar contra mulher é de ação penal pública incondicionada, afastando neste particular a alegação de inconstitucionalidade do tratamento diferenciado entre homens e mulheres [05]. Conferir [06]:

HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. CONTEÚDO POLÍTICO E SOCIAL DA LEI 11.340/2006. DELITOS DE LESÕES CORPORAIS LEVES E LESÕES CULPOSAS. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E PROTEÇÃO À FAMILIA. EFETIVADADE DA LEI. ORDEM DENEGADA.

1. O artigo 1º da lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha enuncia o conteúdo político social da recém norma editada, em atenção aos reclamos de ontem da sociedade brasileira ante o elevado índice de casos de violência contra a mulher no seio familiar e doméstico, exigindo uma resposta penal eficaz do Estado.

2. A sociedade há muito tempo sente-se incomodada com as práticas violentas no seio familiar contra a mulher, cujas medidas despenalizadoras previstas na lei 9.099/95 não foram suficientes para coibir e prevenir a violência contra a mulher.

3. A exegese que confere efetividade à repressão aos crimes de violência doméstica contra a mulher nos casos de lesões corporais leves e lesões culposas é o da não vinculação da atuação do Ministério Público ao interesse exclusivo da ofendida tal como previsto no art. 88 da Lei 9.099/95.

4. Na busca da concretização dos fins propostos pela lei 11.340/2006 prevalece o interesse público traduzido na coibição de violência doméstica, lastreada na garantia constitucional de ampla proteção à família e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

5. Essa orientação permite a compreensão do alcance, sentido e significado dos artigos 16 e 41 da lei nº 11.340/2006 para reconhecer que os delitos de lesão corporal simples e lesão culposa cometidos no âmbito doméstico e familiar contra a mulher são de ação pública incondicionada, reservando-se à aplicação do art. 16 àqueles crimes em que a atuação do Ministério Público fica vinculada ao interesse privado da vítima em punir o seu ofensor.

6. Ordem denegada.

Todavia, também há precedente em sentido contrário, que o crime permanece sendo de ação penal pública condicionada à representação, mas que, diante da peculiaridade do caso concreto, especialmente os antecedentes de violência doméstica, poderá o juiz não aceitar a retratação à representação. Conferir [07]:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. LESÃO CORPORAL LEVE. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. EXEGESE DOS ARTIGOS 16 E 41 DA LEI Nº 11.340/2006. NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO. RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. NÃO ACEITAÇÃO. PROVIMENTO DO RECURSO.

O artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, ao excluir a aplicação da Lei nº 9.099/95, pretendeu, somente, vedar a aplicação dos institutos despenalizadores nela previstos, como a composição civil e a transação penal, instrumentos impeditivos da persecução criminal contra o agressor. Não foi intenção do legislador afastar a aplicação do artigo 88 da Lei nº 9.099/1995, que condiciona a ação penal concernente à lesão corporal leve e à lesão corporal culposa à representação da vítima, tanto que esta é prevista no art. 12, I, in fine, da Lei nº 11.340/2006. Exegese diversa conduziria a um absurdo dentro do sistema, que não pode contrariar a lógica. Há outros crimes, até mais graves, para os quais, não a Lei nº 9.099/95, mas o próprio Código Penal prevê a necessidade de representação da vítima. Exemplo os crimes contra a liberdade sexual (estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante fraude, corrupção de menores), nos quais, igualmente ofendida mulher em contexto de violência doméstica, sendo ela pobre, é necessária a sua representação, porque exigida pelo Código Penal (artigo 225, § 1º, I, e § 2º).

Já o artigo 16 da Lei nº 11.340/2006 impõe que a "renúncia" à representação, na realidade, retratação da representação, "só será admitida perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público". O claro objetivo é que o Ministério Público e o juiz fiscalizem a retratação da representação, para evitar que ela ocorra por ingerência e força do agressor. Esse o ponto nodal da questão. Atentou a nova lei, precisamente, para que pode a mulher, vítima da lesão corporal, "desistir" do prosseguimento da ação contra seu marido ou companheiro, em face de coação ou violência deste. Daí a necessidade da audiência. Manifestada a retratação antes do recebimento da denúncia, deve designar o juiz audiência para, ouvido o Ministério Público, admiti-la, se o caso. Não se trata aqui de mera homologação da retratação. O objetivo da lei, dever do Ministério Público e do juiz, é perquirir, efetivamente, por todos os meios, a motivação do pedido da vítima. Ouvido o Ministério Público e convencido o juiz de que a retratação é espontânea, tendo por fim a efetiva reconciliação do casal, a real preservação dos laços familiares, e havendo condições a tanto favoráveis, deve admitir o pedido, pondo fim ao processo. Caso contrário, não. Na dúvida, é de recusar-se a retratação, pelo relevo que merece a proteção à vítima da violência doméstica e familiar. Reiteração da violência doméstica e familiar, maus antecedentes criminais do agressor, seriedade e gravidade das circunstâncias de que resultantes as lesões, apesar de leves, tudo isso milita contra a aceitação da retratação. Imprescindível, portanto, o exame de cada caso concreto.

No caso, é inaceitável a retratação. O relatório técnico elaborado pela Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude informa que a situação de violência perpetrada pelo denunciado contra sua companheira e seus filhos menores ocorre desde o ano de 2004, culminando com o abrigo destes em instituição própria para crianças em estado de risco. De especial relevo a manifestação técnica de que "a genitora não consegue proteger seus filhos, estando ela mesma fragilizada e à mercê da violência do seu companheiro". Somam-se condenações criminais do denunciado, inclusive reincidências em crimes de roubos.

Nesse contexto, há de se recusar a pretendida retratação, possível em tese, mas seguramente não espontânea no caso concreto e não servindo ao restabelecimento de uma saudável convivência familiar.

Mesmo que assim não fosse, outra razão, de si só também suficiente, impediria, na espécie, a aceitação da retratação. É que, como resulta do disposto no artigo 16 da Lei nº 11340/2006, a retratação somente pode ser admitida "antes do recebimento da denúncia". Mas, na espécie, a denúncia já fora recebida. Não mais cabe, nem em tese, retratação.

Recurso provido para, cassada a decisão que aceitou a retratação, e prevalecendo o recebimento da denúncia, determinar o prosseguimento do feito, como de direito.

Regra geral, em casos que não seja tão séria a lesão corporal, sem antecedentes de violência doméstica e com intenção recíproca de reconciliação do casal, é conveniente que haja o encaminhamento dos envolvidos para programa de acompanhamento psicossocial para prevenção da violência doméstica, eventual encaminhamento a programa de tratamento à dependência do álcool ou drogas (se for o caso) e haja uma suspensão informal do processo por prazo razoável e fim de acompanhar o comportamento do agressor e vítima. Caso o agressor compareça aos programas de acompanhamento, não haja novas agressões durante o período da suspensão do processo, e a vítima informe que não possui mais interesse no processo após o acompanhamento, é viável o arquivamento do feito por ausência de interesse em agir na punição criminal. Em verdade, a ação penal deve ser considerada pública incondicionada, mas, diante do princípio da subsidiariedade e fragmentariedade do direito penal, apenas deverá ocorrer a aplicação da sanção penal se esta for efetivamente necessária à prevenção geral e especial da infração; assim, se uma restrição menos grave (as intervenções psicossociais de caráter não-criminal) forem suficientes para a prevenção do desvio comportamental, o princípio da proporcionalidade determina que não se aplique a restrição mais grave (sanção criminal). A submissão voluntária a estas mencionadas intervenções psicossociais e o acompanhamento judicial por período de tempo aliados à ausência de gravidade e ausência de interesse da vítima podem justificar o arquivamento do procedimento criminal. O acompanhamento judicial é especialmente relevante para assegurar à vítima que a situação está sendo monitorada pelo Estado e que, caso hajam novas agressões o procedimento anterior não estará arquivado, mas será somado às novas agressões, possibilitando, diante do agravamento da situação, uma punição mais séria. A violência doméstica não é uma situação pontual mas algo que se prolonga no tempo, daí porque o acompanhamento prolongado é essencial à efetividade da intervenção estatal. Deve-se repisar que o Estado brasileiro possui um compromisso com a efetividade da proteção aos direitos humanos das mulheres e sempre que se estiver diante de uma situação de dúvida razoável sobre a situação de risco à mulher, deve ocorre a intervenção do Estado para sanar a situação de violência (seja com a prevenção ou a repressão).

Para efetividade deste acompanhamento judicial prolongado, é recomendável que haja a reunião dos vários processos envolvendo episódios de violência doméstica entre as mesmas partes em um mesmo juízo. Acreditamos que esta também foi uma das finalidades do juízo especializado. Assim, se uma comarca ou circunscrição possuir mais de um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, é recomendável que os vários processos entre mesmo agressor e vítima seja reunidos por conexão probatória, nos termos do art. 76, inciso III, do CPP, em uma interpretação extensiva guiada pela dignidade da pessoa humana, pela máxima efetividade dos direitos fundamentais e pelo princípio da eficiência da administração pública. Eventual acompanhamento psicossocial deverá ser o mesmo para os envolvidos e levará em conta a reiteração das agressões; da mesma forma, caso se opte pela responsabilização criminal diante da gravidade do contexto, o processamento conjunto de vários crimes é importante não apenas para facilitar a colheita da prova, pois trata-se do mesmo agressor, mesma vítima e normalmente as mesmas testemunhas, mas para subsidiar eventual compreensão da dinâmica da violência na família e permitir, se for o caso, que o somatório das penas viabilize o prolongamento da prisão preventiva para a proteção à vítima.

Vedar a composição civil como causa de extinção da punibilidade também é importante. Na hipótese de violência doméstica, ao invés de incentivar-se uma conciliação a qualquer custo, deve-se conscientizar os envolvidos da gravidade de uma situação de violência doméstica, e enfatizar a importância de soluções que proporcionem uma resposta efetiva ao problema de fundo da violência, visando assegurar a integridade dos envolvidos. Ao invés de se conciliar agressor e vítima, há que se mediar respostas efetivas.

A possibilidade da prisão em flagrante é, em geral, positiva, devendo haver equilíbrio nas situações menos graves.

A efetivação da prisão em flagrante na hipótese de lesão corporal (que agora não é mais IPMPO) é importante para assegurar a proteção penal à mulher, especialmente se há histórico de violência doméstica entre o agressor e vítima. Sua manutenção pelo juiz será analisada de acordo com a gravidade do caso concreto, verificando-se se estão presentes os requisitos necessário para decretação da prisão preventiva.

A efetivação da prisão em flagrante para um crime de ameaça também é relevante para assegurar que esta ameaça não se concretize, especialmente naquelas hipóteses em que se trata de uma ameaça factível, seja porque o agressor possui antecedentes criminais em crimes cometidos com violência contra a pessoa, seja porque no caso concreto foi uma ameaça séria que quase se concretizou. O exemplo clássico é o do ex-companheiro que se dirige à porta da casa da vítima, com uma faca na mão, e ameaça a mulher a retornar para a vida comum sob pena dela matá-la.

Todavia, a aplicação literal deste art. 41 da Lei n. 11.340/06 exige cautela, sob pena de tornar a resposta do Estado mais violenta que o próprio crime. Ameaças banais e injúrias, por exemplo, provavelmente não exigirão uma resposta tão drástica do Estado como a prisão em flagrante ou preventiva. Infelizmente, numa sociedade tão permeada por violências, como a violência entre pais e filhos, professores e alunos, policiais e cidadãos, políticos e sociedade, maridos e mulheres, ou entre vizinhos, a agressão verbal torna-se algo tão banal que afirmar, no calor de uma discussão, após uma seqüência de palavrões: "eu vou te matar, seu ..." torna-se algo corriqueiro que chega a perder seu verdadeiro sentido. Da mesma forma, provavelmente não haverá necessidade de efetivação de prisão em flagrante para o caso de uma injúria, que, apesar de constituir uma forma de violência moral, extremamente reprovável, não coloca em risco diretamente a integridade física da vítima. Certamente estas formas de violência moral devem ter uma resposta à altura pelo Estado, mas há que se ter cuidado para que a resposta do Estado de Direito à irracionalidade seja pautada na racionalidade, evitando a reprodução desnecessária da violência. A sensibilidade dos operadores do direito certamente guiará a aplicação deste dispositivo nas situações mais tênues.

Outro ponto que merece reflexão é vedação completa aos acordos processuais, como a transação penal ou a suspensão condicional do processo. Certamente a realização de acordos processuais é instrumento de agilização da justiça penal, de forma a assegurar uma resposta mais rápida e eficiente ao delito. Vários países priorizam as soluções consensuais como instrumento de resposta penal. Esta abolição anda na contra-mão da política criminal moderna. Provavelmente, a alteração foi realizada pelo receio na banalização da resposta penal mediante a "farra das cestas-básicas" que ocorria anteriormente. Todavia, a vedação a esta espécie de pena alternativa, como feito, já seria suficiente para contornar o problema. A alteração traz dois problemas. Primeiro, os requisitos de certeza probatória necessários para entabular um acordo processual são certamente mais diminutos que os necessários para o juiz proferir uma sentença condenatória. Assim, admitir os acordos processuais significa que haverá mais resposta do Estado a situações que quedariam sem qualquer resposta caso se exigisse a certeza da prova para a condenação, bem como se evitarão outros percalços tradicionais, como a prescrição e a demora da resposta do processo judicial. Na verdade, a vedação dos acordos processuais vai de encontro ao que recomendou a OAE, ao condenar o Brasil por violação aos direitos das mulheres, no caso Maria da Penha (que justificou a posterior aprovação da lei respectiva), ao estabelecer que o Brasil deveria "simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias do devido processo" e "o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera" [08]. A vedação generalizada dos acordos processuais definitivamente não atende à recomendação da OAE no caso Maria da Penha.

Um segundo problema é que, na grande maioria dos casos, a institucionalização da resposta penal não será a melhor forma de combater a violência doméstica. Estudos criminológicos ainda não conseguiram comprovar se a sanção penal (especialmente a de prisão) possuem efetivamente o efeito de prevenção geral negativa que normalmente se imagina que ela possui (a punição de uma pessoa faz com que outras pessoas não cometam crimes). Ademais, a violência familiar é um problema complexo, com múltiplos desdobramentos. O agressor normalmente é o responsável pelo sustento da família e há uma ligação afetiva entre os vários envolvidos (marido, esposa, filhos e parentes), sendo provável que uma prisão ou uma condenação tragam resultados negativos para este relacionamento afetivo na família. Muitas vezes, a mulher vítima da agressão ainda decide manter a relação e esta decisão não pode ser coativamente obstada pelo Estado. Por outro lado, o Estado não pode ficar inerte na resposta a este fenômeno de violência. Assim, uma resposta de cunho restaurativo mostra-se muito mais adequada às peculiaridades desta espécie de violência e seu espaço de atuação são os acordos processuais. Assim, acordar com o agressor sobre sua participação compulsória e imediata em oficinas de prevenção à violência doméstica com profissionais especializados, participação a programas de mediação com toda a família, participação a programas para desintoxicação do álcool e das drogas (normalmente os motores da violência), recebimento de capacitação e encaminhamento para exercer uma profissão, recebimento de acompanhamento assistencial periódico, são medidas muito mais eficientes para dar uma resposta preventiva à violência familiar de nível menos grave que simplesmente a condenação penal simbólica e sua substituição por uma prestação de serviços à comunidade. Isto porque o direito penal clássico não possui vocação para resolver problemas (evitar que eles efetivamente não voltem a ocorrem), ele apenas decide problemas com a atribuição de responsabilidades, o que aplaca a ânsia humana por vingança mas nem sempre resolve efetivamente a questão de fundo. Uma melhor resposta do sistema de justiça passa pela reformulação destes conceitos tradicionais sobre o que significa efetivamente uma resposta estatal eficiente.

Assim, considerando que o espírito da nova lei é assegurar uma proteção eficiente à mulher, e que a restrição aos acordos processuais, além de ser uma exceção ao tratamento isonômico, não se justificaria, pois acaba por não proporcionar necessariamente melhor proteção à vítima, entendo que neste ponto específico a vedação do art. 41 da Lei n. 11.340/06 deverá receber uma interpretação conforme a constituição para ser interpretada como um vetor de política criminal para assegurar uma proteção mais eficiente à mulher, de sorte que será admissível a denegação de oferta dos benefícios de transação penal ou suspensão condicional do processo com base na ausência dos requisitos subjetivos do agressor, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, mas ainda sendo admissível a oferta destes benefícios em casos não tão graves em que a solução multidisciplinar e imediata seja mais recomendável à melhor proteção da vítima.

Diante de todo o exposto, não há dúvidas que a Lei Maria da Penha trouxe instrumentos importantes para uma postura pró-ativa do Estado perante o problema da violência doméstica contra a mulher, dando-lhe instrumentos de atuação mais eficientes para a realização da justiça em seu significado mais profundo, não apenas como a aplicação fria e cega de regras, mas como um instrumento de mudança social em prol da emancipação do ser humano em sua completude.


Inovações da Lei Maria da Penha para a proteção às mulheres:

1.Possibilidade de deferimento de Medidas Protetivas de Urgência em favor da vítima mulher, como afastamento do lar, proibição de aproximação e de contato, e outras;

2.Possibilidade de encaminhamento da vítima a programa oficial de proteção, recondução da vítima ao domicílio com apoio de força policial, proibição temporária de disposição do patrimônio comum pelo agressor;

3.Lesão corporal em situação de violência doméstica, contra vítima mulher ou homem, deixa de ser infração penal de menor potencial ofensivo, passando a admitir a prisão em flagrante;

4.Criação de agravante genérica quando o crime for cometido em situação de violência doméstica contra mulher;

5.Criação de causa de aumento de pena para o crime de lesão corporal em situação de violência doméstica quando for cometido contra vítima deficiente, seja homem ou mulher;

6.A retratação à representação da vítima mulher apenas será admissível se apresentada em juízo;

7.É vedada a aplicação de pena de prestação pecuniária ou multa isolada para crimes contra vítima mulher;

8.A vítima mulher deve ser comunicada de todos os atos processuais;

9.A vítima mulher deve estar acompanhada de advogado nos atos processuais;

10.É admissível prisão em flagrante para crimes cometidos em situação de violência doméstica contra mulher;

11.É possível a decretação da prisão preventiva do agressor para crimes como lesão corporal e ameaça;

12.Direito à tramitação prioritária do processo relativo à vítima mulher.


Notas

01 Cf. EM n° 016 - SPM/PR.

02 Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=227. Acesso em: 30 jul. 2007.

03 A convenção foi aprovada em 09 jun. 1994, seu texto foi aprovado pelo Senado pelo Decreto Legislativo n. 107, de 31 ago. 1995, e foi definitivamente promulgada pelo Presidente da República pelo Decreto n. 1973, de 01 ago. 1996.

04 PACHECO, Denilson Feitoza. O princípio da proporcionalidade no direito processual penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 207, p.251.

05 TJDFT, 1ª Turma Criminal, Processo 20060910173057APR, rel. Des. Sérgio Bittencourt, j. 31 maio 2007, DJU 25 jul. 2007, p. 126 (este foi o leading case, em recurso aviado pelo combativo Promotor de Justiça Fausto Lima).

06 TJDFT, 2ª Turma Criminal, Processo 20070020040022HBC, rel. Des. Nilsoni de Freitas,, j. 28 jun. 2007, DJ 26 set. 2007, p. 122.

07 TJDFT, 1ª Turma Criminal, Processo 20060910172536RSE, rel. Des. Mario Machado, j. 12 jul. 2007, DJ 01 ago. 2007, p. 89.

08 OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório n. 054/01 (Caso Maria da Penha Maia Fernandes), item 61.4, alíneas "b" e "c". Disponível em: http://www.cidh.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em: 30 jul. 2007.

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Sobre o autor
Thiago André Pierobom de Ávila

Promotor de Justiça do MPDFT, Mestre em Direito pela Universidade de Brasília, Professor de Direito Processual Penal da FESMPDFT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ÁVILA, Thiago André Pierobom. Lei Maria da Penha.: Uma análise dos novos instrumentos de proteção às mulheres. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1611, 29 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10692. Acesso em: 22 dez. 2024.

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