6. ALCANCE E OBJETO DO USUFRUTO EXCLUSIVO
Por outro lado, é preciso delimitar qual o bem que é o objeto do usufruto, ou seja, sobre qual coisa incide o usufruto exclusivo constitucionalmente referido.
De acordo com o art. 24 do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73):
"O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.
§ 1° Incluem-se, no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos nas terras ocupadas.
§ 2° É garantido ao índio o exclusivo exercício da caça e pesca nas áreas por ele ocupadas, devendo ser executadas por forma suasória as medidas de polícia que em relação a ele eventualmente tiverem de ser aplicadas."
A Constituição, de outra parte, se refere às riquezas existentes nas terras indígenas. Em outro local, o mesmo diploma conceitua tais terras como "as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural" (art. 231, §1º). Serão caracterizadas como indígenas, pois, quaisquer terras que cumpram pelo menos uma dessas exigências constitucionais [17].
Aqui é importante ressaltar que o advérbio tradicionalmente na locução "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" é modal, e não de tempo. Refere-se, assim, ao modo tradicional de ocupação, segundo os usos, costumes e tradições indígenas, e não ao tempo da ocupação [18]. Além disso, há que se ressaltar, com José Afonso da Silva, que
não se vai tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ser deles [dos índios], da cultura deles [19].
Há ainda um ponto a ser esclarecido sobre o objeto do usufruto exclusivo atribuído aos índios: o alcance ou abrangência de tal direito. De acordo com o texto da norma constitucional, cabe aos índios "o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" (art. 231, §2º).
Primeiramente, deve-se advertir que esse dispositivo é passível de interpretação extensiva. Basta imaginar uma tribo que habite o litoral, como se verifica com algumas comunidades na Paraíba e em Santa Catarina. Obviamente, nesses casos, o usufruto se estende às riquezas do mar, embora não esteja isso previsto expressamente (o texto se refere apenas a rios e lagos).
Depois, devemos aprofundar o estudo sobre a natureza jurídica das terras indígenas. Com base na enumeração constitucional do §1º do art. 231, conjugada com o §2º do mesmo dispositivo, pode-se afirmar que as terras tradicionalmente ocupadas se caracterizam como uma universalidade de bens, e não como um bem individual.
De acordo com Sylvio Marcondes, as universalidades "são constituídas por uma pluralidade de coisas, que conservam sua autonomia funcional, mas são unificadas em vista de uma particular valoração, feita pelo sujeito ou reconhecida pelo direito" [20]. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constituem, para fins específicos de definição do objeto de usufruto exclusivo, uma universalidade de direito [21], pois incluem, além do solo, as riquezas nele incluídas, os rios, lagos e demais águas, além da diversidade de flora e fauna.
Perceba-se que a classificação das terras indígenas como uma universalidade também se aplica à propriedade da União sobre tais bens. Assim, como as riquezas do solo e das águas (também do ar, embora a Constituição expressamente não o afirme) são indispensáveis ao bem-estar das comunidades indígenas e necessárias à reprodução física e cultural delas, não podem estar excluídas do conceito em questão. Decorre, logicamente, que, se o usufruto recai sobre elas, a propriedade da União as abrange.
Assim, podemos afirmar que o usufruto exclusivo incide sobre as terras indígenas em si, e não apenas sobre as riquezas nelas contidas, como uma leitura apressada do §2º do art. 231 da CF pode sugerir. Isso porque é preciso encarar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como uma universalidade de direito, referindo-se o conceito não apenas ao solo, mas também a todas as riquezas nele contidas.
É preciso, ainda, dizer duas palavras sobre o alcance da atuação legítima do usufrutuário. O usufruto exclusivo das terras indígenas não tem caráter absoluto (como não o tem qualquer direito, segundo a majoritária doutrina constitucionalista); logo, pode apresentar alguns pontos de tensão com outros direitos de sede constitucional, quando é possível que, na ponderação entre bens e valores, precise ser relativizado.
O mais claro exemplo diz respeito ao conflito entre os direitos culturais dos índios e a proteção jurídica ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225). Como compatibilizar a caça desenvolvida pela comunidades indígenas com a proteção (até mesmo na esfera penal) às espécies em extinção? Trata-se de um polêmico tema, cujo deslinde transborda os objetivos do presente artigo, mas que bem demonstra a complexidade dos limites a serem atribuídos à legítima atuação dos usufrutuários.
Apenas de passagem, ressalte-se que a atuação dos usufrutuários exclusivas das terras indígenas só pode ser considerada legítima na medida em que se relacione às suas características culturais tradicionais, pois este é o objeto de proteção visado pela Constituição. Assim, se há alguma controvérsia acerca da legitimidade da ação de uma tribo que, dentro de suas terras, caça, segundo métodos tradicionais e com objetivo de alimentação, o último espécime da arara-azul, nenhuma dúvida há que a mesma ação seria ilegítima e até criminosa se perpetrada por indígenas já integrados à civilização.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constituem uma universalidade de direito; são (conjuntos de) bens sui generis, que não se incluem perfeitamente em nenhuma das categorias de bens públicos normalmente adotadas. Pertencem à União, por expressa determinação constitucional, mas apenas a título derivado, pois os direitos originários pertencem às comunidades indígenas.
Os índios têm assegurado pela Constituição o direito ao usufruto exclusivo das terras que tradicionalmente ocupem. Tal direito (também originário) não se submete às regras comuns do usufruto de direito privado ou mesmo de direito administrativo; incide sobre toda a universalidade dos bens que formam as terras indígenas, o que inclui o solo, o ar, as águas, as riquezas minerais e até mesmo as da fauna e da flora.
Tem natureza jurídica de um autêntico usufruto (direito real sobre coisa alheia que permite ao usufrutuário o gozo dos frutos e das utilidades da coisa), embora regido não pelo Direito Privado, e sim pelas normas de Direito Público. Os titulares desse direito são, com exclusividade (daí a denominação), as comunidades indígenas, que devem utilizar as terras por elas tradicionalmente ocupadas de maneira legítima, segundo seus usos, costumes e tradições.
O usufruto exclusivo incide sobre as terras indígenas em si, aqui entendidas como uma universalidade de direito, que abarca também as riquezas naturais, vivas ou não, nelas situadas ou por elas contidas.
8. REFERÊNCIAS
BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: Fapesp/Plêiade, 2001.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 4, Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2005.
_____. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 1, Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
FERREIRA, Sandro Alexander. Caso de usufruto que não se extingue por morte no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1544, 23 set. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10439>. Acesso em: 26 dez. 2007.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2005.
ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006.
______. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2003.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2003.
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. "Os Direitos Originários dos Índios sobre as terras que ocupam e suas conseqüências jurídicas". In: Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992.
NOTAS
01 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 42. São Paulo: Malheiros, 2003.
02 ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional, p. 17. Belo Horizonte: Melhoramentos, 2003.
03 STF: Primeira Turma, RE nº 183188/MS, Relator Ministro Celso de Mello, DJU de 14.02.1997, p. 1988.
04 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, p. 992. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
05 DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo, p. 622. São Paulo: Atlas, 2005.
06 TOURINHO NETO, Fernando da Costa. "Os Direitos Originários dos Índios sobre as terras que ocupam e suas conseqüências jurídicas". In: Os Direitos Indígenas e a Constituição, p. 36.
07 DI PIETRO, Maria Sylvia. Op. Cit., p. 583.
08 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. Cit., p. 943.
09 DI PIETRO, Maria Sylvia. Op. Cit., p. 583.
10 Nesse sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 855. São Paulo: Malheiros, 2006. Cf. também: BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil, p. 90. São Paulo: Fapesp/Plêiade, 2001.
11 FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais, p. 178. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
12 BARBOSA, Marco Antonio. Op. Cit., p. 90.
13 DINIZ, Maria Helena. Op. Cit., p. 398.
14 FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 581.
15 Esta não é, porém, a posição adotada pela doutrina civilística majoritária. Parecendo sustentar a natureza civilística do usufruto exclusivo das terras indígenas, está Maria Helena Diniz. Cf. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 4, Direito das Coisas, p. 401. São Paulo: Saraiva, 2005. Também considerando o "usufruto indígena" como modalidade especial do usufruto do Direito Privado estão Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, que o elencam entre os modos de constituição do usufruto. Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 588.
16 FERREIRA, Sandro Alexander. Caso de usufruto que não se extingue por morte no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1544, 23 set. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10439>. Acesso em: 26 dez. 2007.
17 Discordamos, aqui, da interpretação de José Afonso da Silva, para quem o conceito de terras indígenas é "fundado em quatro condições, todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha". SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 856. São Paulo: Saraiva, 2006. Numa interpretação literal, vê-se que a norma constitucional utilizou o artigo "as", referindo-se às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, todas as vezes que elencou alguma condição. Assim, são terras indígenas as por eles habitadas em caráter permanente ou as utilizadas para as suas atividades produtivas ou as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar ou, ainda, as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Também numa interpretação sistemática com o art. 231, caput, pode-se verificar que uma região indispensável à reprodução física e cultural dos índios, ainda que não ocupada permanentemente por eles, é, para efeitos constitucionais, terra indígena.
18 Cf. SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 856.
19 Idem, ibidem, p. 856.
20 MARCONDES, Sylvio, apud DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 1, p. 293. São Paulo: Saraiva, 2003.
21 Para Maria Helena Diniz, a universalidade de direito é "constituída de bens singulares corpóreos heterogêneos ou incorpóreos, a que a norma jurídica, com o intuito de produzir certos efeitos, dá unidade". DINIZ, Maria Helena. Op. Cit., p. 293.