Artigo Destaque dos editores

A questão da renúncia à representação na ação penal pública por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica ou familiar contra a mulher.

Lei nº 11.340/2006

27/01/2008 às 00:00
Leia nesta página:

Não seria o caso de a autoridade respeitar essa vontade, deixando de intervir em um lar no qual o sujeito passivo da agressão não tenciona processar o agressor? Não estaria essa medida infringindo o princípio da Lei n. 11.340/2006 que, em seu art. 3.º, assegura à mulher o direito à convivência familiar?

O art. 129 do Código Penal, que define o delito de lesão corporal, tem a seguinte redação em seu § 9.º, com pena imposta pela Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei da Violência Doméstica ou Familiar contra a Mulher):

"Art. 129. [...]

[...]

§ 9.º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos".

A Lei n. 11.340/2006, no que se refere à ofensa à incolumidade física e à saúde da mulher quando provocada no ambiente doméstico ou familiar, a qual configura um tipo qualificado (§ 9.º do art. 129), não teve a intenção de alterar o princípio do art. 88 da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), de que a ação penal por crime de lesão corporal leve é pública condicionada à representação. Assim, tratando-se de lesão corporal leve, a ação penal pública fica subordinada à representação da ofendida quando enquadrado o fato no § 9.º do art. 129. Significa que, fora do ambiente doméstico e familiar, se o marido agride intencionalmente a esposa, ferindo-a levemente, aplica-se o art. 129, caput, do CP, sendo imposta a pena de 3 meses a 1 ano de detenção (tipo simples); se, contudo, a agressão, causando ferimento leve, é cometida pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico ou domiciliar, incide o § 9.º do art. 129, com pena de 3 meses a 3 anos de detenção (tipo qualificado).

Reza o art. 16 dessa lei:

"Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público".

Retratação significa, no caso, retirada da manifestação de vontade da ofendida de que o ofensor venha a ser objeto de inquérito policial ou de ação penal, o que é impossível depois de oferecida a denúncia, isto é, depois de apresentada ao Juiz (art. 102 do CP; art. 25 do CPP). A renúncia à representação, no entanto, expressão já empregada no art. 74, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95, indica abdicação do direito de a ofendida manifestar vontade de movimentar a máquina da Justiça Criminal contra o agressor. Como ficou consignado nos termos do art. 16 da Lei n. 11.340/2006, a renúncia ao direito de representação só é admissível até "antes do recebimento da denúncia".

  • Teria a nova lei empregado a expressão renúncia no sentido de retratação da representação ou ela deve ser interpretada literalmente?

Haverá duas posições:

  1. Tendo em vista que o não-exercício do direito de representação, no prazo legal, conduz à extinção da punibilidade, cuidando-se de tema de Direito Penal Material, no qual a interpretação deve ser restrita, não se pode ler retratação onde está escrito renúncia.

  2. O legislador empregou a palavra renúncia no sentido comum de desistência da representação já manifestada (nossa orientação).

A norma não inseriu no texto a expressão "antes do recebimento da denúncia" como hipótese de peça acusatória já recebida, o que seria inadequado. Apenas marcou o termo final do prazo durante o qual a vítima pode, como se diz popularmente, "retirar a queixa", isto é, desistir do prosseguimento da persecução penal: enquanto não recebida a denúncia é admissível a desistência. Quer dizer: exercido o direito de representação, é possível que a vítima livre o autor do prosseguimento da ação da Justiça Criminal; isso é inadmissível, porém, se a denúncia já foi recebida.

A lei disciplinou as atitudes da vítima da violência doméstica, familiar ou íntima que mais ocorrem no dia-a-dia: inicialmente, ainda sob o impulso de revolta que a move no ambiente emocional de flagrância da agressão, ela procura a delegacia de polícia e "dá parte" do ofensor; depois, serenados os ânimos e conscientizada dos efeitos da sua ação, "retira a queixa". Não se disciplinou a hipótese de a mulher, antes do exercício da representação, manifestar vontade de não acionar a autoridade pública para fins de iniciar a persecução penal. Se o art. 16 tratasse desse caso incomum, estaríamos diante de um incrível excesso de formalismo: a autoridade pública notificando a ofendida para que, perante o Juiz, em audiência especialmente designada com tal objetivo, manifestasse a vontade de não representar contra o ofensor, ouvido depois o Ministério Público.

  • Não seria o caso de a autoridade respeitar essa vontade, deixando de intervir em um lar no qual o sujeito passivo da agressão não tenciona processar o agressor?

  • Não estaria essa medida infringindo o princípio da Lei n. 11.340/2006 que, em seu art. 3.º, assegura à mulher o direito à convivência familiar?

  • Como teria a autoridade tomado conhecimento dessa vontade?

  • Seria o caso de marido e esposa, após aquele agredir esta, ferindo-a levemente, reconciliados, resolverem fazer uma viagem para comemorar uma segunda lua-de-mel, chegando a renúncia tácita aos ouvidos da autoridade policial, que notificaria a vítima para, perante o Juiz, torná-la expressa e judicial?

    Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
    Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos
  • Sob outro aspecto, incondicionada que fosse a ação penal, como ficaria o princípio de que a iniciativa da persecução criminal só pertence ao Estado?

  • E se, condicionada a ação penal, o que realmente é, sabendo a autoridade que a vítima, agredida e ferida levemente pelo marido no ambiente doméstico ou familiar, não deseja qualquer procedimento criminal contra ele, poderia notificá-la para que, em juízo, afirmasse formalmente essa ausência de intenção?

  • Subordinada a ação penal à representação, como seria possível à autoridade tirar a vítima do seu lar para, no fórum, explicar ao Juiz que não intencionava exercer esse direito? Como a vítima explicaria ao marido essa visita ao fórum? Se o fato fosse de conhecimento somente de familiares, seria justo que a vítima, em juízo, viesse a consignar em documento sua intenção, deixando prova de que havia sido agredida?

É contraditório afirmar, em face do art. 41 da lei nova, que a ação penal é incondicionada, e, ao mesmo tempo, defender, perante o art. 16, que não se pode interpretar a expressão renúncia no sentido de desistência da representação.

  • Adotada a tese da ação penal pública incondicionada, como falar em renúncia ou retratação da representação?

Nela não há representação! Ora, se se entende que inexiste representação, como discutir a existência de renúncia ou retratação?

  • Adotando a segunda posição, não estaríamos aplicando indevidamente a interpretação extensiva?

Não. Nela não se despreza o dado interpretado, o qual subsiste como elemento ou circunstância do tipo, estendendo-se o conceito até o limite pretendido pelo espírito da lei.

  • Acatada a segunda orientação, não haveria o obstáculo da proibição da analogia in malam partem?

Para que se busque o recurso à analogia, são necessárias as seguintes condições: 1.ª) a questão em pauta não deve ter sido disciplinada pela lei; 2.ª) o legislador, contudo, regulamentou caso semelhante; 3.ª) existem pontos comuns entre as duas situações. Na hipótese em tela, a Lei n. 11.340/2006 previu o tema da desistência da representação. Logo, não é necessário trazer à baila o instituto da analogia.

  • Perfilhada a segunda orientação, a tese não estaria, supondo uma eventual dúvida de interpretação, violando o in dubio pro reo?

Cremos que não. Em primeiro lugar, o princípio só é invocado quando há dúvida quanto à intenção da lei, o que inexiste na hipótese. Além disso, não se cuida de apreciar uma orientação que seja favorável ou não à mulher ou ao agressor, mas de reconhecer uma orientação que seja a mais protetora da harmonia doméstica, familiar ou íntima.

De modo geral, quando a pesquisa da vontade da lei por intermédio da análise gramatical não basta para se encontrar a compreensão pretendida, é preciso usar a interpretação teleológica, que compreende o exame dos motivos, as necessidades que orientaram o legislador, o princípio que o inspirou (ratio legis), a finalidade (a vis legis) e, por último, as circunstâncias do momento (a occasio legis). A interpretação não deve se afastar da visão de todo o sistema. Para a apreensão do significado da norma, é necessário indagar qual a sua finalidade: a ratio legis.

A interpretação não deve se afastar da visão de todo o sistema. E este indica que a vontade da lei foi a de empregar a expressão renúncia no sentido de desistência da representação já manifestada.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Damásio E. de Jesus

advogado em São Paulo, autor de diversas obras, presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Damásio .. A questão da renúncia à representação na ação penal pública por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica ou familiar contra a mulher.: Lei nº 11.340/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1670, 27 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10888. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado em www.damasio.com.br, reproduzido mediante permissão.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos