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Raul Seixas e a nova Lei de improbidade administrativa

01/09/2024 às 11:58
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Raul Seixas criticava em suas músicas o gestor público que se beneficiava dos valores a serem aplicados à coletividade e buscava “facilidades” no exercício da gestão pública.

Em 21 de agosto de 2024, completamos 35 (trinta e cinco) anos em que o rei do rock´n roll brasileiro, Raul Seixas, o Maluco Beleza, pegou o trem das sete, o “último do sertão” e partiu definitivamente, mas deixando um grande legado, especialmente em suas canções reflexivas, recheadas com opiniões e críticas sociais, filosóficas e políticas.

Sendo assim, a marca registrada do cantor e compositor baiano sempre foi romper com paradigmas enraizados pela sociedade, como na música ouro de tolo, constante no seu álbum Krig-há Bandolo, do ano de 1973, em que, de forma altamente criativa, tece severas críticas aos hábitos e costumes tidos como padrões daquela época para uma vida e carreira de sucesso.

Em uma boa parte da sua obra, Raul demonstrava pessimismo em analisar a conduta humana, similar ao que preconizava Thomas Hobbes em sua obra Leviatã, onde consta a célebre frase “o homem é o lobo do homem”, entendendo uma certa tendência para a prática do mal, do ilegal, principalmente buscando beneficiar a si mesmo.

A música Cambalache, lançada no ano de 1987, constante no álbum Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, retrata muito bem essa situação de descrença no ser humano, conforme trecho que segue:

“Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei

Em 506 e em 2000 também

Que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados

Contentes e frustrados, valores, confusão

Mas que o século XX é uma praga

De maldade e lixo

Já não há quem negue

Vivemos atolados na lameira

E no mesmo lodo todos manuseados.”

Claramente que essa forma de pensar também acabaria por se misturar nas ações desenvolvidas pela administração pública, notadamente, por seus gestores, também explicitada na canção acima mencionada, senão vejamos:

“Século XX cambalache

Problemático e febril

O que não chora, não mama

Quem não rouba é um imbecil”

Efetivamente, Raul Seixas não acompanhou a edição da primeira legislação a tratar especificamente sobre a responsabilização dos agentes públicos ímprobos no desempenho de suas funções, qual seja, a Lei n. 8.429/1992, a qual tratou de dispor sobre as sanções aplicáveis nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional.

Importante destacar que a Lei 8.429/1992 sofreu profundas alterações promovidas pela Lei 14.230/2021, de modo que destacaremos algumas dessas principais mudanças e se o ilustre homenageado concordaria com as mesmas ou se insurgiria contra elas na “velocidade da luz”.

Com efeito, não podemos cravar com clareza solar qual seria a opinião atual de Raul sobre a nova Lei de Improbidade Administrativa, até por conta da debilidade do pensamento humano, que por muitas vezes vai se transformando com as experiências e sensações vividas, calcadas no pensamento de Heráclito de Éfeso (“Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”), materializado na música metamorfose ambulante, fruto da parceria com o escritor Paulo Coelho:

“Prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Eu quero dizer

Agora o oposto do que eu disse antes

Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante”

Mas podemos a partir de suas composições estabelecer a forma como normalmente se posicionava a respeito de situações assemelhadas voltadas ao combate à prática de atos irregulares que acabam por prejudicar toda a coletividade.

Sem dúvida alguma, uma das principais alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 na 8.429/1992 foi a inclusão do §2º ao art. 1º, tornando obrigatório para responsabilizar por atos de improbidade administrativa a configuração do dolo específico, ou seja, não basta a ação ou omissão irregular disposta nos tipos discriminados nos arts. 9º, 10 e 11, mas é necessário demonstrar que subjetivamente o agente tinha a intenção de se enriquecer ilicitamente, causar dano ao erário ou violar princípio da administração pública, o que normalmente não será de fácil comprovação.

Em preciosa lição sobre o dispositivo mencionado acima, João Paulo Mendes Gomes, em sua obra Improbidade Administrativa: Nova Lei Comentada, Editora Lumen Iuris, Rio de Janeiro, 2024, p. 8, elucida que

“Inovação trazida pela legislação editada no ano de 2021, estabelecendo que para haver responsabilização por ato de improbidade, o agente deverá possuir a vontade de praticar algum dos ilícitos relacionados nos arts. 9º, 10 e 11, ou seja, estamos diante da exigência de configuração do dolo específico.

A nosso ver, essas alterações que passaram a exigir a comprovação de dolo específico para fins de penalização por improbidade administrativa, possibilitarão uma grande impunidade, visto ser de difícil obtenção de material probatório para comprovar sua ocorrência.

Então, teremos situações em que restará demonstrada a ação ou omissão do agente, causando enriquecimento ilícito, danos ao erário ou mesmo violando princípios da administração, mas sem a comprovação de que agiu com intenção de obter a irregularidade, não poderá ser sancionado com as penas previstas na LIA.”

Neste sentido, verificamos que o dispositivo retro indicado criou enorme dificuldade em responsabilizar os agentes ímprobos, já havendo reflexo na jurisprudência recente, conforme decisão ilustrativa abaixo descrita:

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL DAS MISSÕES. DISPENSA DE LICITAÇÃO PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TÉCNICO-PROFISSIONAIS DE ASSESSORIA JURÍDICA JUNTO AO ENTE PÚBLICO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 10, VIII, DA LEI 8.429/92. NÃO COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO PATRIMONIAL EFETIVO AO ERÁRIO OU DO FIM DE OBTENÇÃO DE PROVEITO OU BENEFÍCIO PARA SI OU PARA TERCEIRO. EVENTUAL INABILIDADE ADMINISTRATIVA QUE NÃO AUTORIZA CONDENAÇÃO POR ATO ÍMPROBO. - A Lei nº 14.230/2021 promoveu modificações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), buscando aprimorar o combate à corrupção e evitar abusos ou interpretações excessivamente punitivas. A modalidade culposa foi extinta e o conceito de dolo recebeu interpretação autêntica, sendo definido como "a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente" (art. 1º, §2º, da Lei 8.429/1992). - Dessa forma, para que se configure a conduta de improbidade administrativa é necessária a perquirição do elemento volitivo do agente público e de terceiros (dolo) enquanto "fim ilícito", não sendo suficiente, para tanto, a irregularidade ou a ilegalidade do ato. Isso porque, conforme já era afirmado pela jurisprudência, “não se pode confundir ilegalidade com improbidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente" (REsp 827.445/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/02/2010, DJe 08/03/2010). - Imperioso consignar que a irregularidade da dispensa não acarreta, por si só, a prática de ato de improbidade. E, na espécie, o recorrente pressupõe a perda patrimonial efetiva sob a fundamentação de que os réus causaram danos ao erário em razão da contratação que foi feita por meio de dispensa de licitação. Todavia, não há nos autos documentos que demonstrem, de forma efetiva, o dano ao erário. - Nesse contexto examinando a prova documental dos autos, bem como as particularidades apresentadas pela prova oral, indicando que os recorridos efetivamente trabalharam juntamente ao Município, prestando os serviços para que foram contratados, destacando-se a inexistência de comprovação de prejuízo patrimonial efetivo ao erário e o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para terceiro, descabe falar em conduta ímproba por parte dos apelados/demandados. RECURSO DE APELAÇÃO DESPROVIDO.(Apelação Cível, Nº 50021403820218210029, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 25-04-2024).” GRIFO NOSSO

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Então, a alteração em discussão, de certo modo, favoreceu o agente que cometa irregularidades na esfera pública, que poderiam ser enquadradas como atos de improbidade administrativa, mas que não fique explicitada a figura do dolo específico, o que nos faz acreditar que Raul não concordaria com a mesma, pois, em suas canções, especialmente em “Aluga-se” criticava a atitude do gestor público em beneficiar-se dos valores a serem aplicados à coletividade e buscar “facilidades” no exercício da gestão pública, conforme trecho que segue:

“A solução pro nosso povo eu vou dá

Negócio bom assim ninguém nunca viu

Tá tudo pronto aqui, é só vim pegar

A solução é alugar o Brasil!

Nós não vamo paga nada

Nós não vamo paga nada

É tudo free!

Tá na hora, agora é free

Vamo embora dá lugar pros gringo entrar

Esse imóvel tá pra alugar

Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!”

Reforçando esse pensamento, especialmente ao tratar sobre a frase “o dólar deles paga o nosso mingau”, constante na mesma canção, citamos Fábio Lins de Lessa Carvalho, em sua obra Raul Seixas e a Administração Pública, na qual realiza uma análise da relação da obra de Raulzito com o universo público, destacando que:

“A propósito, mingau aí tanto pode significar que o Estado brasileiro não conseguia sequer dar conta do básico (representado pelo alimento), como também pode remeter às propinas que os políticos passariam a ter acesso, com as inúmeras contratações vultuosas que passariam a ser realizadas no Estado por muitos chamado de neoliberal”

Uma outra mudança promovida pela Nova Lei de Improbidade Administrativa que também destacamos foi a de estabelecer relação numerus clausus das condutas ímprobas caracterizadas como de violação aos princípios da administração pública, situação que foi bastante aplaudida por boa parte da doutrina especializada, pois no formato anterior se possibilitava penalizar o que de alguma forma atentasse contra princípios, os quais possuem uma definição bastante aberta e muitas vezes se condenava gestores medianamente honestos, ferindo o espírito da lei.

No que se refere a essa importante mudança, José dos Santos Carvalho Filho, em sua obra Manual de Direito Administrativo, Atlas, 2024, p. 936, ressalta que

“Diversamente do que se passa com os casos de enriquecimento ilícito e de lesão ao erário, a violação a princípios sempre se configurou como aleatória, o que gerou algumas distorções na aplicação do dispositivo. A norma atual deu alguma concretude em direção a uma interpretação mais consentânea com o princípio da proporcionalidade ao estabelecer que a violação deve ser caracterizada pelas condutas dos incisos. Ou seja, a improbidade não pode ficar sujeita aos humores do administrador, mas, ao contrário, só se configura diante da violação concreta do tipo específico.”

Com efeito, essa se tratou de uma mudança positiva na nova legislação, de modo que provavelmente agradaria ao insigne Raul Seixas, pois se evitaria a condenação de administradores públicos minimamente honestos, pois ele também possuía positivismo em compreender que com a evolução da sociedade o mundo seria melhorado, que era uma de suas apostas, como bem demonstrou em sua música “a geração da luz”, trecho in verbis:

“Eu já ultrapassei a barreira do som

Fiz o que pude às vezes fora do tom

Mas a semente que eu ajudei a plantar já nasceu

Eu vou

Eu vou m'embora apostando em vocês

Meu testamento deixou minha lucidez

Vocês vão ver um mundo bem melhor que o meu”

Portanto, as mudanças legislativas na Lei de Improbidade Administrativa podem ser classificadas como positivas ou negativas, a depender da ótica interpretativa de quem as avalia, em consonância com mais um ensinamento do grande Raul, na música “Que luz é essa?”, senão vejamos:

“Não tem certo nem errado

Todo mundo tem razão

E que o ponto de vista

É que é o ponto da questão”

Desta forma, concluímos que a nova legislação trouxe alguns pontos de aperfeiçoamento, mas por outro lado acabou trazendo novas determinações que vão dificultar sobremaneira a responsabilização do mesmo, de modo que Raul provavelmente ao se referir a ela resumiria com base no preceito socrático basilar, muito presente em sua obra, como na frase “que o mel é doce é coisa que me nego afirmar, mas que parece doce, isso eu afirmo plenamente”, constante na música faça, fuce, force, que respeitosamente poderia ser alterada para “que a nova Lei de Improbidade Administrativa evoluiu normativamente é coisa que me nego a afirmar, mas que parece ter evoluído, eu afirmo plenamente”. “Fim de papo!”.


REFERÊNCIAS:

GOMES, João Paulo Mendes. Improbidade Administrativa: Nova Lei Comentada. Editora Lumen Iuris, Rio de Janeiro, 2024.

CARVALHO, Fábio Lins de Lessa. Raul Seixas e a Administração Pública. Editora Fórum, Belo Horizonte, 2022.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Editora Atlas, São Paulo, 2024.

MÚSICAS UTILIZADAS NA ELABORAÇÃO DO PRESENTE ARTIGO EM ORDEM ALFABÉTICA:

A geração da luz;

Aluga-se;

Cambalache;

Eu também vou reclamar;

Faça, fuce, force;

Que luz é essa?;

Metamorfose ambulante;

Ouro de tolo;

Trem das sete;

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Sobre o autor
João Paulo Mendes Gomes

Procurador do Município de Irecê/BA; Advogado; Professor Universitário; Especialista em Direito Público; Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, João Paulo Mendes. Raul Seixas e a nova Lei de improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7732, 1 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110631. Acesso em: 12 set. 2024.

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