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Novos poderes da Funai: o indigenista e o poder de polícia

21/02/2025 às 16:24
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A criação da carreira de indigenista fortalece a Funai, mas o poder de polícia do órgão levanta preocupações jurídicas. A ausência de previsão legal pode gerar abusos e conflitos administrativos?

Com grande preocupação, devemos comunicar novidades na legislação relacionada à política indigenista do governo: a criação da carreira de indigenista e o poder de polícia da Funai.

A primeira novidade está relacionada à Lei Federal nº 14.875, sancionada e publicada em 31 de maio de 2024, que criou as carreiras de Especialista em Indigenismo e de Técnico em Indigenismo na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

A nova lei estabelece que são atribuições do cargo de Especialista em Indigenismo a promoção e a defesa dos direitos assegurados pela legislação brasileira aos povos indígenas, bem como sua proteção e a melhoria de sua qualidade de vida; a realização de estudos voltados à demarcação, à regularização fundiária e à proteção dos territórios indígenas; o planejamento, a organização, a execução e a avaliação de atividades inerentes à proteção territorial, ambiental e cultural, além da defesa dos direitos dos povos indígenas, entre outras atribuições.

Ainda segundo a lei, são atribuições do cargo de Técnico em Indigenismo o planejamento, a organização, a execução e a avaliação de atividades relacionadas ao indigenismo, bem como o apoio técnico e administrativo especializado a essas atividades. Além disso, inclui a orientação e o controle de processos voltados à proteção e à defesa dos povos indígenas, entre outras atribuições.

A segunda novidade é o Decreto nº 12.373, de 31 de janeiro de 2025, que regulamenta o exercício do poder de polícia da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e levanta questões relevantes acerca dos potenciais riscos e possíveis excessos.

Do ponto de vista da constitucionalidade, a previsão de que a Funai exerça o poder de polícia sobre as terras indígenas encontra respaldo no princípio da proteção dos direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios, uma vez que a Constituição prevê a necessidade dessa garantia.

É importante lembrar que o chamado “indigenismo” é considerado um movimento político e social com o objetivo de promover e proteger os direitos das populações indígenas. Por isso, embora a especialização da Funai seja essencial para a proteção desses direitos, há preocupações quanto à imparcialidade na análise de processos de demarcação, que pode ser comprometida pelo evidente interesse no resultado desses processos.

O mesmo questionamento surgiria, em sentido oposto, caso a demarcação de terras e o poder de polícia estivessem sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura e Pecuária.


É importante comentar que, desde 2014, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Cível Originária (ACO) nº 2323, ajuizada pelo estado de Santa Catarina. O argumento central da ação é que não se pode aceitar a exclusividade da Funai na demarcação de terras indígenas devido a um possível conflito de interesses, uma vez que a instituição possui o dever legal de defender os interesses indígenas (art. 1º e incisos da Lei Federal nº 5.371/1967). Além disso, a Constituição Federal (art. 231) estabelece que compete “à União demarcá-las”, sem necessariamente atribuir essa função exclusivamente à Funai.

Nesse contexto, o decreto que concede poder de polícia à Funai apresenta riscos de interpretação e aplicação que podem resultar em abusos de poder. A concessão de poderes amplos à Funai, como a interdição de acessos, a retirada compulsória de terceiros e a apreensão ou destruição de bens utilizados em infrações — tudo isso de maneira cautelar e sem um devido processo administrativo — pode levar à supressão de direitos de terceiros e até a conflitos de competência com outros órgãos de segurança pública.

Além disso, há uma divergência conceitual sobre o que seriam “terras indígenas”. Para a Funai, até mesmo terras “em estudo” — ou seja, aquelas cujo processo de demarcação ainda não foi finalizado — já seriam consideradas terras indígenas, o que justificaria a atuação desse poder de polícia.

Durante a vigência da Instrução Normativa nº 09/2020 da Funai, o documento chamado Declaração de Reconhecimento de Limites só considerava como terras indígenas aquelas que possuíam limites homologados por decreto presidencial, que corresponde à última etapa do processo de demarcação.

Essa instrução normativa de 2020 foi revogada em 9 de agosto de 2023, durante a nova gestão da Funai, por meio da Instrução Normativa nº 30/2023. Com essa mudança, passou-se a restringir a posse e a propriedade de imóveis ainda não homologados como terras indígenas, gerando as já conhecidas sobreposições no Cadastro Ambiental Rural, impedimentos para certificação de georreferenciamento, bloqueios de crédito bancário e dificuldades na comercialização de propriedades. Agora, soma-se a esses efeitos um questionável e parcial poder de polícia sobre essas áreas.

Em outras palavras, a Funai poderá adentrar em imóveis particulares e aplicar medidas cautelares, como a interdição de acessos, a retirada compulsória de pessoas e a apreensão ou destruição de bens — tudo isso sem critérios objetivos definidos na legislação. Essa situação já representa um risco de arbitrariedades, especialmente em contextos de disputas fundiárias.

Além disso, a implementação das medidas previstas no decreto depende da atuação de agentes da Funai, que não possuem atribuição policial propriamente dita. A necessidade de colaboração com órgãos de segurança pública, como a Polícia Federal e as Forças Armadas, pode levantar questionamentos sobre a autonomia da fundação e a efetividade de suas ações.

Outro ponto crítico refere-se à previsão de sanções para a utilização imprópria da imagem dos povos indígenas sem a devida autorização. Embora a proteção cultural seja um direito fundamental, a definição vaga do que constitui uso impróprio pode gerar insegurança jurídica e restringir indevidamente a liberdade de expressão e de imprensa, além de possibilitar interpretações excessivamente restritivas ou subjetivas por parte da Funai.

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Por fim, o decreto também levanta preocupações quanto à ausência de previsão expressa de mecanismos de controle e revisão das decisões tomadas no exercício do poder de polícia. A existência de instâncias para impugnar atos da Funai é essencial para evitar excessos e garantir que a aplicação das medidas respeite os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e da proporcionalidade.

Portanto, o risco é que a sobreposição de interesses comprometa a isenção, resultando em conflitos administrativos e questionamentos judiciais sobre as decisões tomadas. A falta de mecanismos de controle e transparência pode comprometer a legalidade e a imparcialidade das ações da Funai.


Cabe também um comentário final no sentido de que, embora seja possível ao Presidente da República expedir decretos para regulamentar leis, nos termos do artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, desta vez houve extrapolação do poder regulamentar, dada a completa ausência de delegação expressa de poder de polícia administrativa à Funai.

A imposição de sanções, a apreensão de bens ou a retirada compulsória de terceiros, sem a intermediação de outros órgãos, não está prevista nas leis que a Presidência da República tentou regulamentar por decreto, ou seja, as Leis nº 5.371/1967, nº 6.001/1973 e nº 14.701/2023.

O chamado poder de polícia compreende a possibilidade de restringir direitos individuais para garantir o interesse público, sendo necessária previsão expressa em lei formal, conforme o princípio da reserva legal.

A Lei nº 5.371/1967 criou a Fundação Nacional do Índio (Funai) e estabeleceu suas atribuições gerais como órgão de administração indireta vinculado ao Ministério do Interior (atualmente sob a estrutura do Ministério dos Povos Indígenas), com o objetivo de proteger e promover os direitos dos indígenas, sem mencionar expressamente o poder de polícia administrativa.

Em outras palavras, essa lei não confere à Funai poder de polícia administrativa, sendo necessária uma base legal mais específica, o que pressupõe a atuação da Polícia Federal.

O mesmo vício legal ocorre na tentativa de regulamentação por meio da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e da Lei nº 14.701/2023 (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas). Esta última, em seu artigo 6º, reforça que a proteção das terras indígenas deve ser realizada em cooperação com órgãos estatais competentes para fiscalização e repressão, como a Polícia Federal e o Ibama.

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Sobre o autor
Pedro Puttini Mendes

Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural. PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Pedro Puttini. Novos poderes da Funai: o indigenista e o poder de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7905, 21 fev. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112894. Acesso em: 5 dez. 2025.

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