Poucos dias após o lançamento da Campanha da Fraternidade de 2008 (cujos tema e lema, "Fraternidade e defesa da vida – escolhe, pois, a vida", possuem inquestionáveis projeção e influência em relação a determinadas políticas públicas estatais, como aquelas pertinentes à distribuição de métodos contraceptivos, à pesquisa com células-tronco, ao aborto e à eutanásia), era também definido o tema para a XII Parada do Orgulho Gay (GLBT) de São Paulo, relativa ao ano de 2008: "Homofobia Mata – Por um Estado laico de fato".
É bom que se diga que a escolha do mencionado tema não apenas se reveste de total pertinência, dado o contexto em que inserida (ajuizamento, perante o Supremo Tribunal Federal, dias após, da ADPF 132, na qual se postula a aplicação, às uniões homoafetivas, do regime jurídico pertinente às uniões estáveis), mas, também, mostra-se capaz de suscitar relevantes questões constitucionais a respeito do papel que vem sendo desempenhado por determinadas entidades religiosas e pelos respectivos seguidores, no que concerne à difusão social de comportamentos fundados na discriminação de gênero e na homofobia.
Entretanto, para além disso, a vinculação feita pelo tema da XII Parada do Orgulho GLBT entre repúdio à homofobia e defesa intransigente do caráter laico do Estado desperta intrincadas indagações a respeito da postura que deve ser adotada pelo Estado, quando preceitos e dogmas de cunho moral e religioso (que devem ser respeitados e protegidos num Estado que se pretenda plural, democrático e inclusivo) se coloquem na contramão daqueles valores que, por sua centralidade, foram qualificados pela nota da fundamentalidade pela Constituição da República.
O assunto tem gerado polêmicas. O Professor Cass Sunstein, no capítulo intitulado Sex Equality versus Religion, de seu livro Designing Democracy – What Constitutions Do [01], faz o seguinte questionamento: "Conflitos entre igualdade sexual e instituições religiosas criam tensões severas numa democracia constitucional. Tais conflitos levantam uma óbvia questão: Está o governo permitido a controlar comportamentos discriminatórios pelas e dentro das instituições religiosas?". A essa pergunta, responde afirmativamente, chegando a sustentar que até mesmo normas internas das organizações religiosas, que confiram tratamento diferenciado a homens e mulheres, deveriam ser ajustadas aos parâmetros de igualdade de gênero ditados pela Constituição. Já Christopher Eisgruber, no capítulo Equal Liberty de seu livro Religious Freedom and the Constitution [02], afirma que as "Igrejas podem se recusar a utilizar mulheres como ministras ou padres, muito embora leis antidiscriminatórias proíbam tais diferenciações fundadas unicamente no sexo" (tradução livre).
Na Inglaterra (cidade de Somerset), a questão assumiu sensível polêmica quando um casal foi excluído da lista pública de pessoas habilitadas a prestarem apoio a jovens e crianças carentes, porque se recusou, com apoio em suas convicções cristãs, a educar os que estivessem sob seus cuidados, nas linhas do que estabelece Estatuto Inglês sobre a Igualdade (2006), especialmente no ponto em que tal diploma normativo proíbe toda e qualquer discriminação fundada na orientação sexual dos indivíduos. O casal preterido foi à imprensa para acusar as autoridades públicas de discriminá-lo unicamente em razão do conteúdo da fé cristã que adotava.
Pois bem, presentes todas essas questões, as perguntas essenciais que se colocam em tais hipóteses são: o fato de uma determinada religião alcançar a maioria dos cidadãos de determinado Estado autoriza a que o ente estatal, enquanto tal, torne seus, incorporando-os a seus atos oficiais e a suas políticas públicas, os pensamentos e as doutrinas pregados por tal organização? E mais: qual deve ser a postura do Estado, quando movimentos religiosos, apoiados em suas premissas de fé, pregarem condutas discriminatórias e preconceituosas que culminam por contrariar, de modo frontal, valores e preceitos que, por sua hierarquia constitucional, possuem inquestionável força normativa e subordinante?
A resposta a ser dada à primeira indagação deve apoiar-se na constatação de que qualquer alegação fundada no caráter majoritário de determinado pensamento religioso jamais se revelará apta a afastar as imposições derivadas da cláusula da separação Estado-Igreja, pois o ente estatal, precisamente porque constitucionalmente vinculado ao dever de proteção e defesa dos direitos fundamentais de todos (e não apenas da maioria) jamais poderá apresentar padrões de conduta que, em tema de opções religiosas, enviem aos indivíduos a subalterna mensagem de que, sob a perspectiva do poder público, existem cidadãos de primeira classe (que têm o privilégio de ver suas crenças homenageadas e acolhidas pelos órgãos estatais) e cidadãos de classes inferiores (que precisam compulsoriamente acolher e cumprir determinações públicas, que nada mais fazem do que conferir a chancela de "oficial" a pensamentos religiosos com os quais intimamente não se concorda). Sem contar que a consagração constitucional de direitos fundamentais está a desempenhar função tipicamente contramajoritária, impedindo que determinados valores ou que grupos minoritários e vulneráveis sejam atingido pela atuação de maiorias muitas vezes eventuais ou opressoras.
Já no que atine à segunda indagação, cumpre ter presente a afirmativa corretamente feita pela Suprema Corte Americana, no caso Palmore v. Sidoti, no sentido de que "A Constituição não pode controlar preconceitos sociais, mas também não pode tolerá-los. Preconceitos individuais e particulares podem muitas vezes se encontrar além do alcance da lei, mas a lei jamais poderá, direta ou indiretamente, conferir-lhes qualquer efeito".
Em verdade, tradição, princípios religiosos, valores morais ou éticos, muito embora relevantes numa comunidade, jamais poderão se traduzir numa "razão constitucional adequada", apta a legitimar a restrição a direitos fundamentais individuais. Como bem afirmado pela Suprema Corte de Massachusetts, no julgamento do histórico caso Goodridge et al. v. Depart. of Public Health et. al., em que se reconheceu a inconstitucionalidade de qualquer ato voltado à exclusão, a casais homossexuais, dos benefícios, proteções e obrigações legais derivadas do casamento civil, " O casamento é uma instituição social vital. Representa o compromisso e amor e de apoio recíproco entre duas pessoas; e confere estabilidade à sociedade. Para aqueles que optam por ser casarem, e para seus filhos, o casamento proporciona uma abundância de benefícios legais, financeiros e sociais. E, na mesma medida, ele impõe pesadas obrigações legais, financeiras e sociais. A questão aqui colocada refere-se à compatibilidade com a Constituição Estadual de comportamentos do poder público voltados à negativa da proteção, dos benefícios e das obrigações conferidas ao casamento civil a duas pessoas do mesmo sexo que desejam se casar. Nós concluímos que tais comportamentos são inconstitucionais. A Constituição afirma o direito de todos à dignidade e à igualdade. Ela proíbe a criação de cidadãos de segunda-classe ou de classe inferior. Para chegar a esta conclusão, é de ser conferida total deferência e integral respeito aos argumentos de cunho moral trazidos pelas autoridades públicas. Tais argumentos, porém, falharam na identificação de qualquer razão constitucional adequada que justifique a negativa do acesso ao casamento civil, a casais do mesmo sexo. (...) Nós reconhecemos que há uma tradicional visão legal no sentido de que o termo casamento significa a união legal de um homem a uma mulher. Tradição e história, contudo, não interferem na questão constitucional em causa" (tradução livre).
A intransigente defesa, portanto, do regime de separação Estado-Igreja (lema da Parada GLBT 2008), traz como conseqüência inevitável a adoção de um posicionamento que rejeita qualquer grau de permeabilidade estatal ao pensamento religioso que resulte na adoção de políticas públicas que consagrem ou tornem impositiva uma específica verdade religiosa, em detrimento de todas as demais existentes no corpo social. Este repúdio a qualquer ato estatal caracterizador de verdadeira "escolha religiosa" tanto mais se acentua quando o resultado de tal eleição for a implementação, pelo Estado, de práticas ou condutas omissivas que, por sua natureza sectária e discriminatória, culminam por violar, frontalmente, normas e valores que são centrais ao estatuto fundamental das liberdades públicas, além de fundantes do próprio ordenamento jurídico-constitucional, como o são os valores da liberdade e da igual dignidade de todos.
Notas
01 SUNSTEIN, Cass. Designing democracy: what Constitutions do. New York: Oxford University Press, 2001. p. 210-211.
02 EISGRUBER, Christopher L. Religious Freedom and the Constitution. Massachusetts: Harvard University Press, 2007. p. 51.