Sumário: Introdução. 1. O Princípio da Consunção. 2. A Classificação dos Crimes. 3. Crítica à Decisão do STF. Conclusão.
Introdução
O STF considerou “possível o concurso material pela prática dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (CP/1940, art. 359-L) e de golpe de Estado (CP/1940, art. 359-M), na medida em que são delitos autônomos e que demandam 'animus' distintos do sujeito ativo”.
A autonomia dos crimes e o distinto animus dos agentes são elementos importantes para a configuração do concurso material de infrações penais; no entanto, no momento da aplicação da pena é possível que se constate que aquilo que se apresentava como um concurso real de crimes seja apenas um concurso aparente de normas.
1. O Princípio da Consunção
Isso ocorre com frequência quando o fato se enquadra em mais de um tipo penal. Por exemplo, quando o agente, mediante artificio ou ardil induz a vítima em erro, obtendo para si ou para outrem vantagem ilícita em prejuízo alheio, crime de estelionato previsto no art. 171. do CP, e no mesmo ensejo, o agente falsifica documento, que é crime de falsidade ideológica previsto no art. 299. do CP, para enganar a vítima; ou quando o agente constrange alguém, mediante emprego de grave ameaça, a fazer algo que a lei não manda, cuja conduta se enquadra tanto no tipo de constrangimento ilegal, previsto no art. 146. do CP, como no tipo de ameaça, previsto no art. 147. do CP.
Nessas situações, o juiz não deve condenar o agente pelos dois crimes, que, de direito, não ocorreram. O Direito como sistema não admite antinomias e os conflitos aparentes são solucionados mediante a aplicação de determinados princípios.
Nos exemplos acima o dolo do agente era preordenado para um único crime; o estelionato no primeiro e o constrangimento ilegal no segundo e a falsidade ideológica e a ameaça foram os meios utilizados para o crime-fim, respectivamente.
Embora praticando fato que em si constitui crime autônomo, no figurado caso do estelionato o agente não se limitou falsificar o documento, assim como no exemplo do constrangimento ilegal não apenas ameaçou a vítima. O plano criminoso executado era outro e por isso o autor deve ser punido pelo crime mais grave, coincidente com o desígnio final.
A doutrina aponta haver uma relação de continente e conteúdo nesses casos regidos pelo princípio da consunção. O crime anterior é o meio normal ou necessário para a prática do posterior, ou o crime posterior está na mesma linha de atuação do fim a que se propôs o agente com o anterior (progressão criminosa com fato posterior não punível).
Dois outros princípios são utilizados na solução do problema: o da especialidade 1 e o da subsidiariedade 2, os quais não tem aplicação ao caso em exame.
Expostos os lineamentos básicos do princípio que ajuda a solucionar o chamado conflito aparente de normas penais, antes de examinar a decisão do STF, convém apontar a classificação dos tipos penais quanto aos seus aspectos essenciais, segundo o desenho positivado na lei penal nº 14.197/21, que introduziu novo Título no Código Penal brasileiro.
2. A Classificação dos Crimes
Previstos no Título XII – Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito – o crime do art. 359-L está no capítulo II – Dos Crimes Contra as Instituições Democráticas, com o subtítulo: Abolição violenta do Estado Democrático de Direito, enquanto o crime do art. 359-M, é epigrafado com o subtítulo: Golpe de Estado. E assim estão descritos no Código Penal:
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
O bem jurídico protegido nos referidos tipos penais é o Estado Democrático de Direito. O Estado de Direito brasileiro é democrático: todo o poder emana do povo e é por ele exercido, diretamente, ou por meio de representantes eleitos democraticamente (CF, art. 1º, Par. Único). Executivo, legislativo e o Judiciário são as instituições que expressam os poderes constitucionais.
No primeiro tipo o legislador especifica, como objeto da ação, as Instituições Democráticas, enquanto no segundo o objeto a ser atingido diretamente pelo agente é o Governo legitimamente constituído 3. Há entre ambos íntima relação semântica e teleológica: a proteção às Instituições Democráticas e ao governo legitimamente constituído estão numa relação de mútua interferência.
Mas, a despeito dessa imbricação, os ilícitos penais possuem estruturas típicas próprias e cumprem funções especificas. É possível que se cometa o crime do art. 359-L -que admite graus de intensidade diversos - sem que, necessariamente, se configure o crime do art. 359-M do Código Penal. O contrário também parece possível quando se pensa em condutas especificas, dirigidas ao chefe do governo, por exemplo, coação física ou moral para obtenção de renúncia4.
Ambos exigem violência ou grave ameaça. No tipo do art. 359-L a elementar é descrita pela locução “com emprego de violência ou grave ameaça”, a permitir a ideia de que o alvo deve ser pessoa humana, enquanto o tipo do art. 359-M, utilizando a expressão “por meio de violência ou grave ameaça” parece não fazer referência a essa específica condição, a indicar que a violência pode ser exercida contra coisas e a grave ameaça a pessoas.
Observa-se que enquanto o tipo do art. 359-L traz o complemento de impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, o tipo do art. 359-M possui textura aberta o bastante para permitir punição de qualquer tentativa violenta de deposição do governo legitimamente constituído. São tipos penais de forma livre, ou seja, qualquer forma de ação pode ser típica.
Embora os tipos não exijam a ação de grupos de pessoas como agentes necessários, não se tratando, portanto, de crimes plurissubjetivos, parece que ações de um pequeno número de pessoas não será suficiente à configuração dos delitos5. E, ainda que nos preceitos primários não se exija ação organizada, é de se convir que só ações dotadas de algum poder de infundir medo por violência ou grave ameaça poderiam colocar em risco os bens jurídicos protegidos.
A experiência demonstra que crimes dessa natureza não são executados em curto espaço de tempo. Delitos de motivação política, embora sejam comuns (não especiais), não nascem na mente dos sujeitos de uma hora para outra e não se comete com movimentos isolados num único dia. Trata-se de um processo que deve contar com alguma liderança e planejamento, meios materiais e pessoas operacionalmente engajadas, naturalmente porque os rebeldes devem esperar reação das forças de segurança estatal.
Os tipos exigem intencionalidade de ataque ao núcleo essencial do Estado Democrático de Direito por meio de ações violentas ou ameaçadoras potencialmente suficientes para impedir ou restringir o funcionamento das instituições de cúpula que expressam a soberania popular.
A grave ameaça e/ou violência não depende do uso de armas, mas, como é lógico, tal tipo de sublevação com potencial para alcançar objetivos dessa magnitude não se compatibiliza com ações de pessoas desarmadas, sem meios ofensivos capazes de infundir medo às pessoas e expor a perigo os bens jurídicos protegidos.
O elemento subjetivo dos delitos é o dolo, isto é, o conhecimento (elemento cognitivo) da ilicitude do fato, e intenção de querer ou perseguir o resultado (elemento volitivo). O agente pode pretender um ou outro resultado isoladamente, mas pode também perseguir os dois objetivos num mesmo processo de sublevação violenta.
Ambos são tipos de perigo, pois não demandam resultado naturalístico separado das ações, exigindo apenas uma ameaça mais ou menos intensa ao bem jurídico. É irrelevante que o agente tenha alcançado ou não os objetivos de restringir ou impedir o funcionamento das instituições ou destituir o governo6.
São crimes de consumação antecipada, ou de empreendimento, nos quais a própria tentativa é suficiente para a configuração delitiva, de modo que neles não há falar em redução de pena, causas de justificação ou de desistência voluntária7.
3. A Crítica à Decisão do STF
No julgamento das Ações Penais 1183 e 1060 e das diversas outras que se seguiram, a Corte Suprema considerou que os réus cometeram, entre outros, os crimes dos arts. 359-L e 359-M do Código Penal e lhes impôs a somatória das penas por concurso material de infrações penais.
O voto do Ministro relator acentua que “os extremistas buscavam gerar o caos para obrigar as Forças Armadas, ante a interpretação deturpada do art. 142. da Constituição e do Decreto 3.897/2001, na edição de decreto para a garantia da lei e da ordem, com a assunção das funções dos Poderes constituídos”. E que “o insuflamento visava tanto à abolição violenta do Estado Democrático de Direito, quanto à deposição de governo legitimamente eleito, ou golpe de Estado, fato que denota desígnio criminoso autônomo na mesma empreitada criminosa”. (AP 1060-pag.67).
De acordo com essa compreensão, o projeto criminoso era constituído de duas etapas: 1) a criação do caos para que as Forças Armadas interviessem nas funções dos poderes constituídos, e; 2) assumindo as forças armadas, lograr-se o objetivo final de deposição do governo eleito e a tomada do poder.
Essa intencionalidade é explicitada no voto condutor:
O panorama exposto evidencia que os propósitos criminosos eram plenamente difundidos e conhecidos ex ante, tendo em vista que os manifestantes insuflavam as Forças Armadas à tomada violenta do poder.
A ação delituosa visava impedir, de forma contínua, o exercício dos Poderes Constitucionais e ocasionar a deposição do governo legitimamente constituído, com a indispensável participação do Exército Brasileiro a sair às ruas para estabelecer e consolidar o regime de exceção pretendido pelos acampados, tendo como pano de fundo uma suposta fraude eleitoral e o exercício arbitrário dos Poderes Constituídos (Ap 1060-pag. 35).
O Ministério Público narra que, além da abolição violenta do Estado Democrático de Direito, os manifestantes pretendiam a deposição, por meio da violência ou grave ameaça, do governo legitimamente constituído.
Isso porque do fluxo de mensagens e materiais difundidos das redes sociais fica claro que a intenção não era apenas impedir o exercício dos Poderes constituídos, mas a “tomada de poder”, em uma investida que “não teria dia para acabar”: (pag. 66).
Pois bem. Firmada a premissa de que os extremistas pretendiam, além da abolição do Estado Democrático de Direito, a deposição do governo legitimamente eleito, cumpria ao Tribunal, em atenção à exigência do princípio ne bis in idem, apontar os fundamentos que o levaram a aplicar cumulativamente as sanções dos crimes do art. 359-L e do art. 359-M do Código Penal. E isso, data venia, não se fez8.
A clara imbricação existente entre os referidos tipos penais, como se procurou demonstrar, os coloca numa posição dialógica ascendente, em que o primeiro aparece como linha de proteção ao segundo, ambos armados à defesa do Estado Democrático de Direito.
O papel instrumental do tipo do art. 359-L – admitido pelo acórdão – é elemento substancial na análise da questão. Ao atacarem violentamente as a sede dos três poderes, os réus romperam a primeira linha e puseram em perigo o governo legitimamente constituído, que sucumbiria, de acordo com o planejado, após a intervenção das forças armadas, conforme dito pelo Tribunal. Exauriram com atos materiais gravíssimos o primeiro tipo e consumaram o tipo de fundo, ainda que não lograssem tomar o poder, por razões alheias às suas vontades.
Por isso o acórdão, corretamente, condenou-os pelo crime de golpe de Estado. A intensidade e as características da destruição à sede dos três poderes e o comprovado propósito de, com o apoio das forças armadas, restituir ao poder o ex-presidente vencido nas eleições de 2022, é prova viva da intencionalidade golpista que animava os agentes desde as origens das manifestações públicas.
Os extremistas, à semelhança do que se faz em táticas de guerrilha, lançaram uma primeira linha de assalto “contra o inimigo”, para, instalado o caos generalizado, poderem desfechar os atos finais do golpe9. A entrada das forças armadas em cena, consequência natural para restituição da lei e da ordem, dependia de decreto presidencial, e, como o governo empossado não o fez, o propósito golpista acabou frustrado!
Os réus atuaram efetivamente para depor o governo legitimamente constituído e nessa condição deveriam ser punidos pelo crime mais grave. O STF, no entanto, condenou-os pelos dois crimes, o que, sob o ponto de vista estritamente técnico, não é admissível nas concretas circunstâncias dos fatos, gerando penas desproporcionais10.
O crime previsto no art. 359-L foi claramente o meio utilizado pelos réus para a prática do crime de golpe de Estado, previsto no art. 359-M do Código Penal. Funcionou como fase de realização do crime a que os agentes se propuseram efetivamente.
A norma penal do art. 359-M, mais ampla, punindo comportamento penal mais desvalorado, consome, absorve a do art. 359-L, menos abrangente. A esse respeito, a didática lição de Bitencourt:
"pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal (etapa) de preparação ou execução de outro crime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta. Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração. Por isso, o crime consumado absorve o crime tentado, o crime de perigo é absorvido pelo crime de dano. A norma consuntiva constitui fase mais avançada na realização da ofensa a um bem jurídico, aplicando-se o princípio major absorbet minorem. Assim, as lesões corporais que determinam a morte são absorvidas pela tipificação do homicídio, ou o furto com arrombamento em casa habitada absorve os crimes de dano e de violação de domicílio etc. A norma consuntiva exclui a aplicação da norma consunta, por abranger o delito definido por esta"
(Tratado de direito penal. Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 135-136).
Nessa situação, parcela dos conteúdos dos delitos se interceptam e se cobrem mutuamente. O fato previsto no primeiro tipo – tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, ficou compreendido no segundo mais abrangente tentar, mediante violência ou grave ameaça, depor o governo legitimamente constituído 11 .
Figueiredo Dias ensina que entre os sentidos de delitos coexistentes se verifica uma conexão objetiva ou subjetiva que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante:
“...situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícitos coexistentes uma conexão objectiva ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes constantes do art. 77º seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional.
(Figueiredo Dias, Jorge. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed. Portuguesa, Coimbra Editora, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007, p. 1015).
Essa dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares, prossegue o autor português, “pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espaço-temporal, intercedente entre várias realizações típicas singulares homogêneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global.” (op. cit. p. 1015).
A unidade de sentido social do acontecimento ilícito global e a unidade de desígnio criminoso dos extremistas aparecem amplamente retratados nos fatos admitidos pelos acórdãos da Suprema Corte.
O sentido social do acontecimento dominante no caso, não é outro senão o golpe de Estado12. As características dos acontecimentos, que em outro cenário obrigaria punir os agentes por infração autônoma ao art. 359-L do Código Penal, no caso revelam a idoneidade dos meios e reforçam a certeza do intento final dos extremistas.
E nem seria necessário falar da conexão espaço-temporal entre as realizações típicas. Os ataques multitudinários se desencadearam ao mesmo tempo, quase simultaneamente, nas contiguas sedes dos poderes, sob idêntico modus operandi.
A nenhum espectador mediano convence que um evento de tal magnitude, que demandou divisão de funções e tarefas estruturadas, logística e recursos econômico-financeiros nada desprezíveis, para que milhares de pessoas viessem de diversas regiões do país até a capital federal, que culminou com uma profanação da sede dos três poderes, fosse colocado em marcha apenas para restringir ou impedir o funcionamento dos poderes, sem outras consequências, como atos de protesto13.
O fato de a PGR ter, mais recentemente, denunciado 34 (trinta e quatro) pessoas por integrarem organização criminosa com o objetivo de praticar um golpe de Estado e a ruptura do Estado Democrático de Direito, e de o STF ter recebido, à unanimidade de votos14, denúncia contra oito integrantes, civis e militares, da mais alta cúpula do governo passado, entre eles o próprio ex-presidente, na qual se aponta a existência até de um plano para ceifar a vida do atual presidente, de seu vice e do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, no entanto, só confirmam o que sempre esteve na mente dos extremistas.