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Procedimento de execução extrajudicial da garantia hipotecária.

Da constitucionalidade do procedimento à inovação da ata notarial de arrematação

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A Lei nº 14.711/2023 realmente inovou ao permitir ata notarial de arrematação como título para a transmissão imobiliária?

Resumo: O presente artigo é iniciado com uma breve noção basilar do tema proposto, a fim de que se teçam, posteriormente, os contornos necessários para o desenvolvimento dos tópicos mais aprofundados sobre direito notarial. Para melhor compreensão das características do instrumento notarial estudado, qual seja a ata notarial, são redigidos tópicos para explicar a teoria do fato jurídico sobre diferentes pontos de vista, bem como para elucidar o importante papel desenvolvido pelos notários no ordenamento jurídico pátrio. Mais adiante, também se aborda a discussão acerca da constitucionalidade do procedimento inicialmente trazido pelo Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, recentemente revogado e que hoje é objeto da Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Por fim, desenvolve-se o tópico atinente as características da ata notarial, elaborando-se breve explanação acerca da ata notarial no direito espanhol, no intuito de comparar a produção legislativa entre referido ordenamento e o brasileiro, para então discutir-se a inovação legislativa da ata notarial de arrematação.

Palavras-chave: Ata; Notarial; Hipoteca; Garantia; Propriedade; Imobiliário; Registro.

Sumário: 1. Introdução. 2. A vontade humana – possibilidades e limites. 2.1. Teoria do Fato Jurídico – breves considerações. 2.2. Do contrato como instrumento de circulação de riquezas. 2.3. Da formação e da exequibilidade do contrato. 2.4. Do fenômeno da desjudicialização. 2.5. O papel fundamental dos notários. 3. Do procedimento extrajudicial para leilão da garantia hipotecária. 3.1. Da constitucionalidade do procedimento. 4. Da ata notarial. 4.1. Da ata notarial no direito comparado. 4.1.1. Ata notarial de notoriedade. 4.1.2. Ata notarial de protocolização. 4.1.3. Ata notarial de depósito. 4.1.4. Ata notarial para aquisição da nacionalidade espanhola. 5. Da ata notarial de arrematação. 5.1. Da proposta de alteração da lei nº 14.711/2023. 6. Conclusão. 7. Referências.


Introdução

Tem-se discutido nos últimos meses a real contribuição trazida pela lei nº 14.711/2023 ao ordenamento jurídico brasileiro. Uma delas, frequentemente apontada em muitos periódicos, é referente a possibilidade de execução extrajudicial da garantia hipotecária imobiliária. Ocorre que, não obstante a crença de que tal hipótese tenha sido trazida pela referida lei, certo é que a execução extrajudicial da hipoteca já era prevista no decreto-lei nº 70/1966. Referido ato normativo, em período anterior ao ano de 2010, era visto como não recepcionado pela Constituição Federal de 1988, sob a alegação de violar direitos expressos na Constituição Federal de 1988.

Com a análise do assunto pelo Supremo Tribunal Federal em meados de 2010, o assunto veio a ser pacificado, tendo-se concluído pela constitucionalidade da execução da garantia hipotecária apenas no que se refere ao sistema financeiro de habitação. Levando-se em consideração a existência do referido decreto, questiona-se a afirmação de que a lei nº 14.711 de 2023 de fato inovou as disposições acerca da execução extrajudicial da garantia hipotecária. A priori, constata-se apenas a previsão de novos requisitos formais sobre o referido procedimento.

Contudo, indo mais a fundo na análise da nova legislação, determinados pontos devem ser mencionados. Primeiro, a aplicabilidade do referido procedimento passou a ser estendida à execução de tal garantia em contratos que não se relacionam com o sistema financeiro de habitação. Segundo, foram previstas novas possibilidades ao credor no caso de restar infrutífero o segundo leilão realizado para venda do bem hipotecado. Terceiro, a possibilidade de que, sendo frutífero o leilão realizado, o tabelião responsável pela realização do mencionado procedimento deverá lavrar a ata notarial de arrematação, e não mais a antiga carta de arrematação.

A pesquisa se desenvolve sobre uma análise do dispositivo do §11º do art. 9º da lei nº 14.711/2023. A mencionada norma afirma que a ata notarial de arrematação configura título hábil a ensejar a transmissão de propriedade do devedor hipotecário para o arrematante do bem. Objetiva-se testar a plausibilidade da inovação legislativa através de uma revisão bibliográfica, onde são separadas obras especializadas sobre o tema de direito notarial, sobretudo aquelas que são redigidas por juristas atuantes nesta área. A priori, a hipótese levantada é a de que a ata notarial não é instrumento apto a ensejar tal efeito jurídico. Esta conclusão é avaliada ao longo da análise do material que se utiliza, o que torna a presente pesquisa eminentemente quantitativa.

De forma a contextualizar e complementar a discussão levantada, dados estatísticos e decisões jurisprudenciais são mencionadas em partes específicas do texto. O uso de tais métodos, contudo, é restrito a determinados tópicos do trabalho, como na introdução dos motivos que acarretaram o fenômeno da desjudicialização e no questionamento da constitucionalidade do procedimento executório extrajudicial da garantia hipotecária.

No terceiro capítulo adentra-se na análise das peculiaridades da ata notarial. A fim de que se compare a evolução do assunto em países de tradição notarial semelhante ao Brasil, são redigidas breves considerações sobre algumas espécies de ata vigentes no direito espanhol.

Por fim, no último tópico elabora-se proposta de lege-ferenda para o texto do supramencionado dispositivo da lei nº 14.711/2023, a fim de que se corrija a inadequação observada na conclusão do trabalho.


2. A vontade humana – possibilidades e limites

2.1. Teoria do Fato Jurídico – Breves Considerações

De acordo com a teoria do fato jurídico criada por Pontes de Miranda, o fato jurídico pode decorrer de eventos da natureza ou da vontade humana. Fala-se, respectivamente, dos fatos naturais e dos atos jurídicos em sentido amplo. Ambas as classificações se subdividem em razão de um critério em comum, qual seja, a presença de vontade humana para sua formação.

Os fatos naturais, também chamados de “fatos jurídicos stricto sensu”, são classificados em ordinários e extraordinários. Fato natural ordinário é o acontecimento comum e esperado, como o nascimento e a morte de seres humanos. Fato natural extraordinário, por sua vez, pode ser entendido como aquele marcado por sua imprevisibilidade ou inevitabilidade, como um terremoto, por exemplo.

Tratando-se dos atos jurídicos em sentido amplo, estes se ramificam em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico. O primeiro pode ser compreendido como o ato que, apesar de contar com a existência da vontade humana para a prática do ato jurídico, possui efeitos preestabelecidos pela legislação. O segundo é caracterizado pela possibilidade de produção de efeitos jurídicos escolhidos pelas partes, através da regulamentação de seus interesses1.

Mostra-se necessário ultrapassar, todavia, o mero critério de subsunção de situações cotidianas à classificação acima mencionada. Busca-se atingir uma funcionalidade da teoria do fato jurídico, e não apenas sua classificação estrutural, dado que esta nem sempre poderá adequar-se plenamente ao fenômeno jurídico estudado. Para tanto, cabe destacar a utilidade da teoria tridimensional do direito de Miguel Reale na construção de tal pensamento2. O fenômeno jurídico, antes de virar propriamente norma, passa por uma valoração humana que é influenciada pela cultura jurídica de um dado ordenamento. Tal valoração, todavia, deve ser feita com cautela, dado que, do contrário, pode ensejar na criação de uma norma desarrazoada e desproporcional. O pensamento supramencionado será essencial para a compreensão das informações que serão a seguir elencadas. Vejamos.

2.2. Do contrato como instrumento de circulação de riquezas

Inegável que o contrato é o meio e a forma para se regulamentar a circulação de riquezas em uma sociedade capitalista. Sob o fundamento do que se entendia por “autonomia da vontade”, o contrato se mostrou como uma importante ferramenta para a burguesia que buscava romper com o regime intervencionista e feudal do antigo regime. Entre as reivindicações daquela classe social, menciona-se à defesa da plena liberdade de contratar entre os cidadãos, baseada na concepção de igualdade formal entre todos os sujeitos, compreensão essa que afastava o Estado de intervir nas relações sociais.

O pensamento mencionado, contudo, vem a ser alterado em razão do desenvolvimento tecnológico e industrial. Tal avanço implica em uma grande mobilização de pessoas para os centros urbanos. Cria-se verdadeiro padrão de vida moderno, onde deve-se produzir e ofertar ao máximo bens e consumos para um mercado em expansão, criando-se uma sociedade massificada. Em contrapartida, torna-se clara a vulnerabilidade que atinge parcela da população mundial em virtude desta nova forma das relações econômicas.

Mencionada percepção de vulnerabilidade influencia e muito na releitura da função do contrato e dos limites da autonomia da vontade perante a sociedade. Os dois elementos não perdem importância para a circulação econômica, apenas passam por uma reconstrução, processo esse que faz surgir o conceito de “autonomia privada”. A liberdade de contratar e pactuar não é extinta, apenas deve obedecer, a partir deste novo entendimento, aos princípios constitucionais que estão emergindo de um novo contexto social, como dignidade da pessoa humana, igualdade, solidariedade social, justiça social, eticidade, socialidade, operabilidade e boa-fé objetiva. Cria-se a função social do contrato.

2.3. Da formação e da exequibilidade do contrato

Para a formação de um contrato, são necessárias duas ou mais declarações de vontade. A declaração inicial, conhecida como proposta, faz surgir a intenção de se formular o contrato, enquanto a aceitação resulta na formação do vínculo contratual. Definida a obrigação com clareza, obtém-se maior segurança para os direitos ali contidos. Para tanto, necessário que o título possua certeza, quando este indica em seu corpo a natureza da prestação, seu objeto e a identificação dos sujeitos, e liquidez, quando o título demonstra com exatidão a quantidade de bens devidos. Pode o credor, ainda, valer-se de uma garantia contratual, consubstanciada em algum bem de propriedade do devedor, ou outro ativo de natureza diversa. Não estando sujeito a condição suspensiva ou a termo, e versando sobre obrigação admitida pelo ordenamento, uma vez inadimplido o contrato, este será plenamente executável perante o devedor. Mas por qual via o credor poderá buscar a satisfação do seu direito? Existem duas possibilidades facultativas, optar pela via extrajudicial, valendo-se do procedimento que se analisa, ou escolher a judicialização do pleito.

2.4. Do fenômeno da desjudicialização

A morosidade do Poder Judiciário brasileiro em prestar a tutela jurisdicional para os respectivos demandantes é fato inegável para todos aqueles que a necessitam. Conforme relatório justiça em números elaborado pelo CNJ em 2023, ano base 2022, o Judiciário brasileiro finalizou o ano de 2022 com 81,4 milhões de processos em tramitação, aguardando uma solução definitiva. Deste montante, 7.243.237 versaram sobre direito civil em varas comuns. Dentro desse valor, 3.999.535 processos versaram sobre o tema contratos e direito das obrigações3, assunto relacionado à análise feita no presente trabalho. Nem todos esses versarão obrigatoriamente sobre o tema da execução extrajudicial da garantia hipotecária, de fato. Deve-se apenas perceber que a sobrecarga de trabalho existe, e é um fato considerado para o corpo do presente estudo.

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Tal morosidade pode ser vista como consequência de alguns fatos. Inegáveis são os benefícios trazidos pelo ordenamento jurídico após o advento da Constituição da República de 1988. Mencionam-se alguns destes: o acesso à justiça para as classes sociais mais baixas foi ampliado; houve simplificação e modificação do processos nas áreas cível, penal e trabalhista; foi instituída a assistência judiciária gratuita e integral aos que dela necessitarem4; foram criados os juizados especiais, com a finalidade de processarem e julgarem causas cíveis de menor complexidade, bem como infrações penais de menor potencial ofensivo; criou-se a possibilidade de representação jurídica por entidades organizadas em causas coletivas e a elevação da Defensoria Pública ao status de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, sendo-lhe atribuída a orientação e representação jurídica das pessoas necessitadas.

Não se nega a importância da garantia de direitos e de instrumentos que possibilitem a defesa destes por seus titulares. Antes visto como um Poder ofuscado pela atuação dos demais, o Poder Judiciário passa a obter uma crescente visibilidade social e política5. Deve-se reconhecer, entretanto, que ainda que se criem inúmeras formas de se prestar a tutela jurisdicional aos cidadãos, todas essas novas possibilidades foram em grande parte direcionadas a um só lugar, qual seja o Judiciário. Os fatos acima elencados, ainda que pensados sob um ponto de vista social, acabaram por trazer uma litigiosidade difícil de ser suportada.

Em razão dos fatos expostos, surge uma nova reivindicação: a necessidade de desjudicialização. Fala-se na busca por vias extrajudiciais alternativas para a resolução de demandas relacionadas à jurisdição voluntária, de maneira que possam ser solucionadas, a princípio, fora do Judiciário. Cita-se, como exemplo, a lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que conferiu aos cartórios a atribuição de lavrar escrituras de inventário, partilha, separação e divórcio. Questiona-se, todavia, a utilização de referido critério na tentativa de melhorar o cenário do mencionado poder.

Eis o conceito que prevalece majoritariamente na doutrina brasileira acerca do que seja “jurisdição voluntária”. Esta não é jurisdição, visto que não há contraposição de interesses. Por consequência, não existem partes, mas apenas interessados. Também não se pode falar em substitutividade em tais demandas, visto que o magistrado apenas adapta a vontade dos interessados às regras do ordenamento. Sem os requisitos vistos como essenciais para caracterizar a jurisdição, não se pode falar sequer em ação ou processo, mas apenas em requerimento e procedimento. Por todos os motivos elencados que referida jurisdição é vista como mera administração pública de interesses privados feita pelo Poder Judiciário.

Necessário, contudo, questionar a aplicabilidade deste entendimento. Tal ato é realizado por doutrinadores como Calmon de Passos, Ovídio Baptista e Leonardo Greco6. Eis as considerações que devem ser mencionadas. Primeiro, não se pode falar na inexistência de litigiosidade em demandas de jurisdição voluntária. Estas são potencialmente conflituosas, como no caso de uma ação de interdição. Pode-se falar, ainda, na condenação em honorários advocatícios sucumbenciais, quando existir resistência à pretensão constante na petição inicial7.

Sobre a configuração do processo em uma demanda de jurisdição voluntária. O termo “processo” pode ser entendido como o método que o direito utiliza para produzir normas jurídicas, seja ele de natureza legislativa, administrativa ou jurisdicional. Nesse sentido, importa perceber que a jurisdição voluntária é exercida por meio de atos processuais, como petição inicial, sentença e apelação. Devem ainda serem observados o contraditório e ampla defesa, direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988.

Dando-se prosseguimento, importa abordar também o tópico atinente à produção de coisa julgada material por demandas de jurisdição voluntária. Ainda que algumas ações de tal natureza possam tramitar extrajudicialmente, certo é que, uma vez proposta e julgada a ação perante o Judiciário, sua solução por uma sentença de mérito trará a indiscutibilidade da decisão exarada, que somente poderá ser desconstituída mediante ação rescisória. Cita-se o exemplo do divórcio ou arrolamento consensuais8. Todos os mencionados fatos indicam a possibilidade de produção dos efeitos da coisa julgada material em ações de jurisdição voluntária.

Por fim, uma última observação. Esta não é uma atividade administrativa pura, haja vista que, além de não haver hierarquia entre os órgãos competentes para apreciar as respectivas demandas, seus atos não possuem características do ato administrativo, como a superioridade da Administração sobre o particular, por exemplo. Importa mencionar, ademais, que dos atos realizados em processos de jurisdição voluntária seguem especificidades típicas do sistema judicial.

Nota-se, portanto, que a definição de quais demandas sejam de jurisdição voluntária e de quais não são depende muito mais de opções de política legislativa, do que propriamente um conceito teórico. Existem temas que podem ser abordados por mecanismos extrajudiciais e outros que devem passar obrigatoriamente pelo crivo do Judiciário. Tais afirmações levam a crer que a possibilidade de autocomposição em determinados assuntos, desde que devidamente regulada para preservar direitos fundamentais de ambas as partes, possui maior aplicabilidade quando da análise da desjudicialização de demandas, do que falar-se na utilização do critério pouco preciso da opção por ações de jurisdição voluntária.

2.5. O papel fundamental dos notários

Necessário tecer algumas considerações sobre a importância do notariado em nosso ordenamento jurídico. Seu surgimento está relacionado à necessidade humana básica de garantir segurança jurídica em suas relações sociais. Desde muito tempo, determinadas pessoas eram designadas para redigir instrumentos particulares, armazenar documentos para fins de prova e colaborar para a produção do conhecimento jurídico.

Sabe-se que o notariado foi inserido no Brasil por meio do processo de colonização portuguesa. Este já era uma instituição enraizada na sociedade lusitana desde o reinado de D. Afonso II, entre os anos de 1211 e 12239. Contudo, os primeiros documentos que vieram a regulamentar a profissão nestas terras datam de 1305 e 1340. Entre as regras previstas, citam-se, por exemplo, a vedação ao acúmulo de funções pelos notários, que não poderiam exercer a advocacia ou magistratura, a taxação do preço de seus serviços e a necessidade de que, para ter acesso à função, possuísse idoneidade moral, contraísse matrimônio, e anos mais tarde a necessidade de demonstrar conhecimento jurídico.

Ainda que se buscasse a aplicação das ordenações portuguesas no Brasil, o ambiente fático e jurídico brasileiro no início do período colonial deve ser considerado para entender o desenvolvimento do papel exercido pelo notário em nossa sociedade. Considerando-se a inexistência de centros urbanos consolidados e a insegura e fragmentada ordem jurídica predominante no século XVII, percebe-se que estes profissionais foram incumbidos de contribuir para a criação do direito local e de difundir uma cultura jurídica para fins de possibilitar a subsistência dos cidadãos e prevenir possíveis litígios. Não obstante terem se tornado um importante poder institucional local, a regulamentação do notariado permaneceu por anos a fio sendo realizada à nível estadual, o que ensejou na multiplicidade de regras sobre suas finalidades, atribuições e características da função.

Sua regulamentação à nível federal surgiu inicialmente com o caput do art. 236. da Constituição da República de 1988. Passados seis anos, a lei nº 8.935 de 1994, conhecida como estatuto dos notários e registradores, seria editada.

Pois bem. Adentra-se ao dispositivo constitucional. Atualmente, uma vez confrontada a diversidade de atividades que devem ser executadas pelo Poder Público a fim de que se alcance o interesse coletivo, necessário que o Estado transfira a outros entes algumas competências, ante a impossibilidade de realizar todas as atribuições de maneira satisfatória. O termo “delegação”, constante no caput do art. 236. da referida carta, é utilizado para se referir ao instituto da descentralização do direito administrativo. De acordo com Di Pietro10, esta pode ser entendida como a transferência de competências de uma para outra pessoa, seja ela física ou jurídica. O Estado irá atuar de forma indireta, exercendo controle sobre as atividades da pessoa delegada, que deverá manter autonomia no exercício da atribuição. Esta decisão deve partir do próprio órgão delegante, será temporária e deverá especificar a sua duração, as matérias e poderes delegados, limites da atuação do delegado e os objetivos da delegação. A autoridade delegante poderá revogar esta decisão a qualquer tempo.

O termo utilizado no dispositivo, entretanto, difere em características substanciais do citado instituto. Primeiro, a decisão sobre delegar o serviço público notarial parte do constituinte originário, que transfere definitivamente a execução da competência do Estado, que permanece titular do poder, para o notário. Referida transferência extingue-se apenas pela morte, aposentadoria facultativa, invalidez, renúncia ou perda da delegação por falta disciplinar. Deve-se mencionar, ainda, a necessidade de cumprimento de alguns requisitos para assumir a função, como a necessidade de bacharelado em direito e a aprovação em concurso de provas e títulos.

Realizada a supramencionada análise, necessário complementá-la com o que dispõe o caput do art. 3º da lei 8.935/1994.Da análise do texto normativo se constata que o notário, tabelião e oficial de registro são vistos como profissionais do direito dotados de fé pública. Significa dizer que possuem uma natureza bifronte, dado que são, ao mesmo tempo, agentes públicos e profissionais liberais. Como agentes públicos, são investidos do poder de conferir a presunção legal de veracidade e legitimidade inerente à fé pública delegada aos documentos submetidos à sua análise, assegurando ainda o seu arquivamento e conservação. Não são propriamente funcionários públicos, mas sim particulares que desenvolvem uma função pública, e que por essa razão se submetem ao regime de direito público, seja no que se refere a forma de acesso à tal função, realizada por concurso público de provas e títulos, seja pelo fato de estarem submissos à fiscalização e poder disciplinar do Judiciário.

Por sua vez, tais profissionais também são vistos como de natureza liberal. São incumbidos de assessorar juridicamente todos que reclamarem seu auxílio, prestando verdadeiro serviço intelectual de forma independente sob iniciativa privada, assumindo os riscos da atividade. Possuem autonomia técnica e discricionariedade administrativa para organizar o desempenho de seu labor11.

Nota-se uma dualidade de interesses. De um lado, constata-se o direito de liberdade de profissão por parte do notário. De outro lado, há o interesse público em razão da relevância social da função exercida, interesse esse que prevalece sobre o primeiro, mas sem mitigá-lo. Referida preponderância enseja apenas na regulamentação estatal sobre o exercício da referida profissão.

Entende-se, portanto, que o notário trazido pelo ordenamento jurídico pós 1988 é um tertium genus 12. Não pode ser caracterizado como funcionário público em sentido estrito, nem como profissional liberal do direito propriamente, mas sim ambos de forma simultânea. O modelo trazido pelo ordenamento jurídico pode ser visto como de modelo latino, já que decorre da influência trazida pela cultura e tradição jurídica romano-germânica, fatores que resultam na elaboração de normas garantidoras de estabilidade das relações sociais e da conservação dos atos notariais e documentos das partes. Com base em todo o exposto, o notário, tabelião ou oficial de registro é conceituado como o particular responsável por executar uma função pública que compreende os atos de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os respectivos documentos para atingir licitamente tal fim.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTO, Paulo Eduardo Melo Cavalcante Espírito. Procedimento de execução extrajudicial da garantia hipotecária.: Da constitucionalidade do procedimento à inovação da ata notarial de arrematação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7967, 24 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113653. Acesso em: 5 dez. 2025.

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