Resumo: O presente trabalho analisa a aplicação do instituto da onerosidade excessiva nos contratos em contextos de crise econômica, à luz do Direito Civil brasileiro. A pesquisa tem como objetivo principal compreender como os contratos, quando afetados por eventos imprevisíveis e extraordinários, podem ser revisados judicial ou extrajudicialmente a fim de restaurar o equilíbrio entre as partes, observando-se os princípios da boa-fé, função social do contrato e segurança jurídica. Inicialmente, o estudo apresenta os fundamentos teóricos dos contratos, sua evolução histórica e os elementos essenciais que sustentam a relação contratual. Em seguida, aprofunda a análise sobre a onerosidade excessiva, seus requisitos jurídicos e as situações de crise econômica que justificam a intervenção do Judiciário, com base nos artigos 317 e 478 do Código Civil. Também são discutidas as cláusulas contratuais mais sensíveis a desequilíbrios e as decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça, especialmente durante a pandemia da covid-19. Por fim, o trabalho propõe soluções práticas para os conflitos decorrentes da onerosidade excessiva, destacando a importância dos mecanismos extrajudiciais — como negociação, mediação e arbitragem — e a adoção de cláusulas de hardship e previsões contratuais preventivas. A metodologia adotada foi qualitativa, com base em revisão bibliográfica e análise doutrinária e jurisprudencial. Conclui-se que a onerosidade excessiva deve ser interpretada com cautela, de forma contextualizada e fundamentada, visando o equilíbrio contratual sem prejuízo da segurança jurídica. Recomenda-se, ainda, o aprimoramento legislativo e a uniformização jurisprudencial como meios eficazes para prevenir litígios e promover a justiça nas relações obrigacionais.
Palavras-chave: onerosidade excessiva. contratos. crise econômica. revisão contratual. Direito Civil.
INTRODUÇÃO
Os contratos, ao longo da história, têm representado instrumentos fundamentais para a organização das relações privadas, pautando-se em princípios como a autonomia da vontade, a segurança jurídica e a boa-fé. No entanto, diante de eventos extraordinários e imprevisíveis, como crises econômicas, pandemias ou guerras, podem sofrer desequilíbrios que comprometem a execução equitativa das obrigações entre as partes. Neste cenário, emerge o instituto da onerosidade excessiva como mecanismo jurídico que visa restabelecer a justiça contratual, possibilitando a revisão ou até a resolução de contratos que se tornaram demasiadamente onerosos para uma das partes, rompendo o equilíbrio originalmente pactuado. A relevância deste tema tem ganhado destaque especialmente após a crise sanitária mundial provocada pela pandemia da covid-19, que desencadeou instabilidades econômicas severas, impactando diretamente a capacidade de cumprimento de diversas obrigações contratuais. A atual conjuntura econômica brasileira, marcada por inflação, aumento do desemprego e instabilidade política, reforça a necessidade de refletir sobre os limites da rigidez contratual e sobre a aplicação mais sensível dos princípios contratuais clássicos frente às novas realidades sociais. Dessa forma, a presente pesquisa justifica-se pela necessidade de compreender como o ordenamento jurídico brasileiro tem tratado a onerosidade excessiva em tempos de crise, buscando assegurar a função social dos contratos e a equidade nas relações jurídicas.
Diante disso, o problema de pesquisa que se propõe a investigar é: como a onerosidade excessiva pode ser aplicada na revisão dos contratos durante períodos de crise econômica, e quais as possibilidades de intervenção do Judiciário para garantir a equidade nas relações contratuais, respeitando a autonomia da vontade das partes e a função social do contrato? Essa indagação busca esclarecer os critérios jurídicos e doutrinários que legitimam a revisão contratual e as formas pelas quais essa intervenção pode se dar sem comprometer a segurança jurídica.
Embora não haja uma hipótese única a ser testada, parte-se do entendimento de que a aplicação do instituto da onerosidade excessiva deve estar condicionada a uma análise contextual, que considere a gravidade da crise, o impacto real sobre a parte onerada e a necessidade de preservar a função social e a boa-fé contratual como fundamentos para a intervenção judicial ou extrajudicial. Presume-se, ainda, que o Judiciário brasileiro tem demonstrado, por meio da jurisprudência recente, uma postura cada vez mais cautelosa e contextual na análise desses casos.
O objetivo geral deste trabalho é analisar a aplicação do instituto da onerosidade excessiva nos contratos em tempos de crise econômica, investigando as possibilidades de revisão contratual à luz do direito civil brasileiro e das decisões judiciais. Como objetivos específicos, propõe-se: a) apresentar o conceito jurídico de onerosidade excessiva e sua base legal; b) examinar a correlação entre instabilidades econômicas e o desequilíbrio contratual; c) analisar decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema; d) discutir alternativas extrajudiciais para a recomposição do equilíbrio contratual; e) avaliar as implicações sociais e econômicas da revisão contratual por onerosidade excessiva.
Para alcançar esses objetivos, adotar-se-á uma metodologia baseada em pesquisa bibliográfica e qualitativa, com consulta a obras doutrinárias, artigos científicos, legislação aplicável e jurisprudência dos tribunais superiores, especialmente o STJ. A análise será realizada de maneira crítica, buscando compreender tanto os fundamentos teóricos quanto os aspectos práticos da aplicação do instituto em cenários de crise.
A estrutura deste trabalho está dividida em três capítulos, além desta introdução e das considerações finais. No Capítulo 1, será apresentada a teoria geral dos contratos, com enfoque nos princípios fundamentais e na evolução do pensamento contratual no direito civil brasileiro. O Capítulo 2 tratará especificamente da onerosidade excessiva, com análise das cláusulas contratuais que exigem maior atenção, das consequências econômicas e políticas que afetam a relação contratual e da jurisprudência atualizada. Por fim, o Capítulo 3 abordará as possibilidades práticas de enfrentamento da onerosidade, com destaque para a atuação do Judiciário e para os mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos, como mediação e arbitragem.
1. CONTRATOS NO DIREITO CIVIL: FUNDAMENTOS GERAIS
1.1. CONCEITO E ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CONTRATO
O contrato, no âmbito do Direito Civil, é tradicionalmente definido como um acordo de vontades entre duas ou mais partes com o objetivo de criar, modificar ou extinguir obrigações. Trata-se de um dos instrumentos mais importantes para a regulação das relações privadas, servindo como expressão da autonomia da vontade e da liberdade individual dos contratantes. No ordenamento jurídico brasileiro, os contratos são regidos principalmente pelas disposições do Código Civil de 2002, que substituiu o antigo Código de 1916 com o objetivo de incorporar princípios contemporâneos e garantir maior equilíbrio nas relações contratuais (Ribeiro; Aylon, 2019).
Para que um contrato seja juridicamente válido, é necessário o preenchimento de alguns elementos essenciais. O artigo 104 do Código Civil estabelece os requisitos de validade dos negócios jurídicos, que também se aplicam aos contratos: (a) agente capaz; (b) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (c) forma prescrita ou não defesa em lei. Além desses, os contratos pressupõem a existência de consentimento mútuo entre as partes, ou seja, o encontro de vontades com vistas a um fim comum. O contrato pode ser expresso ou tácito, verbal ou escrito, dependendo da exigência legal e da natureza da obrigação assumida (Petersen Neto, 2018).
Além dos elementos essenciais, o contrato possui elementos acidentais, como condição, termo e encargo, que não são indispensáveis, mas podem ser inseridos pelas partes para modular os efeitos da obrigação. Os contratos também se classificam em diversos tipos, como unilaterais ou bilaterais, onerosos ou gratuitos, comutativos ou aleatórios, típicos ou atípicos. Essa classificação influencia diretamente na interpretação e execução das cláusulas pactuadas, sendo fundamental para a análise jurídica das situações em que se busca a revisão contratual por onerosidade excessiva (Ferreira, 2015).
1.2. PRINCÍPIOS CONTRATUAIS: AUTONOMIA DA VONTADE, FUNÇÃO SOCIAL E BOA-FÉ OBJETIVA
Os contratos são construídos sobre pilares principiológicos que orientam sua formação, interpretação e execução. Entre os princípios mais relevantes estão a autonomia da vontade, a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Esses princípios estão consagrados tanto na doutrina quanto no Código Civil de 2002 e refletem a evolução do direito contratual em direção a uma perspectiva mais solidária e equilibrada (Konder, 2016).
A autonomia da vontade é um princípio clássico do direito contratual, herdado do liberalismo jurídico do século XIX. Refere-se à liberdade das partes de contratar e de estipular livremente o conteúdo do contrato, dentro dos limites da lei. Entretanto, no contexto do Estado Democrático de Direito e da constitucionalização do direito civil, essa autonomia não é mais absoluta. A intervenção estatal passou a ser admitida para corrigir desequilíbrios e proteger partes vulneráveis, especialmente em tempos de crise econômica, quando a igualdade formal entre as partes pode ser comprometida (Silva, 2023).
Nesse contexto, destaca-se o princípio da função social do contrato, positivado no artigo 421 do Código Civil. Tal princípio impõe que o contrato não deve servir apenas aos interesses privados das partes, mas deve também observar os interesses coletivos, promovendo justiça social e respeito à dignidade da pessoa humana. Ele serve como critério de controle da validade e da eficácia dos contratos, permitindo a revisão de cláusulas que contrariem a equidade ou gerem abusos (Tomasevicius Filho, 2005).
Por fim, a boa-fé objetiva, prevista no artigo 422 do Código Civil, exige das partes um comportamento leal, honesto e colaborativo em todas as fases do contrato (negociação, execução e eventual encerramento). Esse princípio é fundamental para o reconhecimento da onerosidade excessiva, pois permite que o Judiciário avalie o comportamento das partes diante de eventos supervenientes que alteram significativamente as condições contratuais. A violação à boa-fé pode justificar a intervenção judicial, tanto para proteger a parte vulnerável quanto para evitar enriquecimento sem causa.
1.3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA CONTRATUAL NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
A teoria contratual no Brasil acompanhou as principais fases do pensamento jurídico ocidental, partindo de uma concepção liberal e individualista, influenciada pelo Código Napoleônico, até alcançar uma abordagem mais social e constitucionalizada com o advento do Código Civil de 2002. Essa evolução histórica é essencial para compreender o atual tratamento jurídico da onerosidade excessiva e a possibilidade de revisão contratual (Silva; Silva, 2012).
Durante o período do Código Civil de 1916, os contratos eram regidos pelo dogma da intangibilidade e da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda), o que refletia a influência do liberalismo econômico e jurídico. A autonomia da vontade era quase ilimitada, e a intervenção estatal era mínima, mesmo em situações de desequilíbrio contratual. A ideia predominante era a de que os contratos deviam ser cumpridos integralmente, independentemente de mudanças no contexto econômico ou social (Henrique; Bergamim, 2018).
Com o passar do tempo, especialmente após as crises econômicas do século XX e os avanços do constitucionalismo social, o direito civil começou a incorporar valores voltados à justiça contratual. No Brasil, esse movimento culminou com o Código Civil de 2002, que trouxe inovações relevantes ao prever a possibilidade de revisão ou resolução contratual diante de fatos supervenientes que tornem a prestação de uma das partes excessivamente onerosa. Essa transformação demonstra uma transição do modelo clássico para um modelo mais humanizado e funcionalista, em que se busca equilibrar os interesses individuais com os valores sociais e coletivos (Leal; Albuquerque Júnior, 2013).
Assim, a revisão contratual por onerosidade excessiva deixou de ser uma exceção extremamente restrita para se tornar uma ferramenta legítima de proteção da parte prejudicada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Essa mudança de paradigma também se reflete na jurisprudência dos tribunais superiores, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tem se debruçado com frequência sobre casos envolvendo crises econômicas, variações cambiais, pandemias e outros fatores que afetam a execução dos contratos.
1.4. REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO CIVIL: FUNDAMENTOS E LIMITES
A possibilidade de revisão contratual está prevista expressamente no Código Civil de 2002, representando um avanço em relação ao antigo regime jurídico. Os artigos 317 e 478 estabelecem as hipóteses em que é admissível a intervenção judicial para restaurar o equilíbrio contratual. Esses dispositivos refletem a incorporação da teoria da imprevisão, segundo a qual é possível alterar ou extinguir obrigações contratuais em razão de acontecimentos extraordinários que tornem a prestação excessivamente onerosa para uma das partes (Heinen; Soares, 2021).
O artigo 317 do Código Civil dispõe que o juiz poderá corrigir o valor da prestação devida, a pedido da parte, quando sobrevier desproporção manifesta em razão de motivos imprevisíveis. Já o artigo 478 permite ao devedor pleitear a resolução do contrato quando sua prestação se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra parte, desde que a relação contratual seja de execução continuada ou diferida (Heinen; Soares, 2021).
Esses dispositivos, porém, não conferem uma autorização genérica e irrestrita para a revisão de qualquer contrato afetado por dificuldades econômicas. A jurisprudência do STJ tem ressaltado que a aplicação da teoria da imprevisão exige a comprovação de três requisitos fundamentais: (i) fato superveniente; (ii) imprevisibilidade do evento; e (iii) onerosidade excessiva concreta e desequilibradora da relação. Além disso, a análise deve ser feita caso a caso, considerando a natureza do contrato, o comportamento das partes e a efetiva ruptura da base objetiva do negócio jurídico (Heinen; Soares, 2021).
Durante a pandemia da covid-19, por exemplo, o STJ enfrentou diversos casos envolvendo pedidos de revisão de contratos educacionais, locações e contratos de prestação de serviços. Em muitos casos, o tribunal reconheceu que a pandemia, embora imprevisível, não gerou automaticamente o direito à revisão contratual, sendo necessário demonstrar desequilíbrio substancial e específico. Um dos casos paradigmáticos é o REsp 1.998.206/DF, julgado pela Quarta Turma, que reafirmou a exigência de demonstração objetiva da onerosidade e rejeitou o pedido de redução de mensalidades escolares com base apenas na migração para o ensino remoto (Heinen; Soares, 2021).
Portanto, os fundamentos legais da revisão contratual se encontram firmemente estabelecidos, mas sua aplicação prática exige prudência e fundamentação técnica. A atuação do Judiciário deve buscar o reequilíbrio sem comprometer a segurança jurídica e a previsibilidade das relações contratuais, respeitando os limites impostos pelos próprios princípios que regem o direito contratual contemporâneo.
2. A ONEROSIDADE EXCESSIVA E O IMPACTO DAS CRISES ECONÔMICAS NOS CONTRATOS
2.1. DEFINIÇÃO E REQUISITOS DA ONEROSIDADE EXCESSIVA
A onerosidade excessiva é um instituto jurídico que se aplica nas relações contratuais para proteger uma das partes quando, por fatos supervenientes e imprevisíveis, a prestação devida se torna excessivamente onerosa, gerando um desequilíbrio que compromete a base objetiva do negócio. Trata-se de um desdobramento da teoria da imprevisão, cuja origem remonta ao Direito Romano e que, no ordenamento jurídico brasileiro, ganhou força com o Código Civil de 2002. O instituto visa evitar que o cumprimento do contrato se torne injusto, em virtude de acontecimentos extraordinários que alterem significativamente as condições originalmente pactuadas (Ferraz, 2016).
A doutrina e a jurisprudência apontam alguns requisitos essenciais para a caracterização da onerosidade excessiva. O primeiro é a ocorrência de um evento extraordinário e imprevisível, ou seja, uma situação fora da normalidade que não poderia ter sido antevista pelas partes no momento da celebração do contrato. O segundo é que esse evento gere uma onerosidade excessiva para uma das partes, rompendo a equivalência entre as prestações. O terceiro requisito é a vantagem extrema para a parte contrária, o que evidencia o desequilíbrio contratual. Por fim, é necessário que se trate de contratos de execução continuada ou diferida, nos quais os efeitos se projetam no tempo (Ferraz, 2016).
Importante destacar que a onerosidade excessiva não se confunde com o simples inadimplemento por dificuldades financeiras comuns, tampouco com variações previsíveis do mercado. A sua aplicação exige a comprovação de que o evento superveniente causou um impacto real e substancial, tornando o contrato extremamente oneroso, sem que isso resulte de má-fé ou má gestão por parte do devedor. A jurisprudência tem sido rigorosa quanto à demonstração desses elementos, de modo a garantir que a revisão contratual não se torne um instrumento de enriquecimento sem causa ou de desestabilização da segurança jurídica (Ferraz, 2016).
2.2. OS ARTIGOS 317 E 478 DO CÓDIGO CIVIL
A base legal da revisão contratual por onerosidade excessiva encontra respaldo nos artigos 317 e 478 do Código Civil brasileiro. Ambos os dispositivos foram elaborados com o objetivo de proporcionar meios legais para o reequilíbrio dos contratos afetados por fatos supervenientes e imprevisíveis que comprometam a relação sinalagmática entre as partes (Lotufo, 2015).
O artigo 317 dispõe que, “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”. Esse artigo permite ao juiz ajustar o valor da obrigação contratual, restabelecendo o equilíbrio entre as partes sem que, necessariamente, o contrato seja resolvido. Aplica-se sobretudo aos contratos com prestação em dinheiro, em que a desvalorização da moeda ou a inflação podem tornar a obrigação injusta para o devedor (Lotufo, 2015).
Já o artigo 478 trata da resolução contratual por onerosidade excessiva, estabelecendo que “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. Nesse caso, o contrato pode ser desfeito, caso a manutenção do vínculo seja inviável diante do desequilíbrio causado por eventos externos (Lotufo, 2015).
Esses dispositivos refletem a evolução do direito contratual, que passou a reconhecer a necessidade de flexibilização da rigidez das obrigações contratuais em situações excepcionais. Eles também se harmonizam com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social dos contratos, promovendo uma justiça contratual mais compatível com as transformações econômicas e sociais da realidade contemporânea (Lotufo, 2015).
2.3. CLÁUSULAS CONTRATUAIS SENSÍVEIS: CUIDADOS PARA EVITAR ABUSOS
Em um cenário de instabilidade econômica, torna-se essencial a atenção à redação das cláusulas contratuais, especialmente aquelas que tratam de reajustes, penalidades, garantias e condições de rescisão. Cláusulas mal elaboradas ou desproporcionais podem intensificar os efeitos da onerosidade excessiva e dificultar uma solução equilibrada em caso de crise (Yamaji, 2019).
Dentre as cláusulas sensíveis, destaca-se a cláusula penal, que impõe multas pelo descumprimento contratual. Quando aplicadas de forma rígida em momentos de crise, essas penalidades podem agravar ainda mais a situação da parte vulnerável. Os tribunais, contudo, já reconhecem a possibilidade de redução equitativa das penalidades contratuais, conforme previsto no artigo 413 do Código Civil (Yamaji, 2019).
Outra cláusula de grande relevância é a de reajuste monetário, especialmente em contratos de longa duração. A indexação automática por índices econômicos sem cláusula de renegociação pode levar a aumentos desproporcionais que não refletem a realidade financeira do contratante. Por isso, recomenda-se a inclusão de cláusulas de hardship, que preveem a renegociação do contrato em caso de mudanças drásticas nas condições econômicas (Yamaji, 2019).
As cláusulas resolutivas expressas, que determinam a extinção automática do contrato em caso de inadimplemento, também requerem atenção. Em períodos de crise, o inadimplemento pode ocorrer por motivos alheios à vontade do devedor, de modo que uma resolução automática pode ser considerada abusiva, principalmente em contratos de consumo ou com partes hipossuficientes (Yamaji, 2019).
Assim, a elaboração contratual deve ser cuidadosa, prevendo mecanismos de flexibilidade e renegociação que permitam a adaptação do contrato à realidade mutável da economia. A previsibilidade e a boa-fé devem guiar a construção de cláusulas que, sem comprometer a segurança jurídica, permitam o reequilíbrio em contextos excepcionais.
2.4. CRISES ECONÔMICAS E O DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL: CONTEXTO POLÍTICO E FINANCEIRO
As crises econômicas constituem um dos principais fatores capazes de gerar desequilíbrio contratual e ensejar a aplicação da teoria da onerosidade excessiva. No contexto brasileiro, eventos como o Plano Collor, a crise de 2008, a recessão de 2015-2016, a pandemia da covid-19 e a alta inflacionária recente agravada por fatores geopolíticos internacionais (como a guerra na Ucrânia) impactaram diretamente a capacidade de adimplemento contratual de empresas e indivíduos (Sales, 2020).
Esses períodos de instabilidade afetam não apenas a renda das famílias e o faturamento das empresas, mas também provocam a elevação dos custos operacionais, a escassez de crédito e a desvalorização da moeda. Em contratos de execução continuada, como financiamentos, locações comerciais, prestação de serviços educacionais e contratos de fornecimento, esses efeitos se manifestam com mais intensidade, gerando pedidos de revisão ou resolução contratual com base na teoria da imprevisão (Sales, 2020).
Além disso, o contexto político e institucional influencia diretamente o cenário econômico. Instabilidade política, mudanças legislativas abruptas e crises de confiança nas instituições públicas repercutem no mercado, afetando a previsibilidade contratual. Por essa razão, a análise da onerosidade excessiva deve considerar não apenas os indicadores econômicos objetivos, como inflação e desemprego, mas também o ambiente político e jurídico em que se insere a relação contratual (Sales, 2020).
O desequilíbrio provocado por crises econômicas não afeta igualmente todos os setores. Enquanto alguns segmentos conseguem adaptar-se ou até lucrar com as mudanças de mercado, outros enfrentam prejuízos severos. Por isso, a jurisprudência tende a adotar uma postura casuística, exigindo a comprovação concreta do impacto da crise sobre o contrato específico. Essa exigência reforça a importância da contextualização econômico-financeira nos pedidos de revisão contratual (Sales, 2020).
2.5. JURISPRUDÊNCIA RECENTE: ANÁLISE CRÍTICA DE DECISÕES DO STJ
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem desempenhado papel central na delimitação da aplicação da onerosidade excessiva, especialmente em contextos de crise. Um dos casos mais emblemáticos foi o REsp 1.998.206/DF, julgado em 2022, que tratou da possibilidade de revisão contratual por parte de consumidores de instituições de ensino que migraram para o ensino remoto durante a pandemia de covid-19. Na ocasião, o STJ entendeu que a mera mudança da forma de prestação do serviço, por si só, não configurava desequilíbrio contratual suficiente para justificar a revisão da mensalidade, rejeitando o pedido com base na ausência de comprovação de onerosidade excessiva concreta (Beck, 2023).
Essa decisão revela a postura restritiva e técnica adotada pelo STJ, que exige demonstração objetiva do prejuízo e da alteração substancial das bases do contrato. O tribunal
tem reiterado que a pandemia ou a crise econômica não são, por si sós, justificativas automáticas para a revisão contratual, devendo cada caso ser analisado individualmente, com base em provas documentais e periciais (Beck, 2023).
Outros precedentes igualmente relevantes envolvem contratos de locação comercial. Em muitos deles, o STJ reconheceu a possibilidade de redução temporária do valor do aluguel, especialmente nos casos em que o locatário demonstrou significativa queda no faturamento em razão de medidas restritivas impostas pelo poder público. Nesses casos, a jurisprudência tem valorizado os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, promovendo o reequilíbrio contratual por meio da mediação judicial ou da aplicação analógica dos artigos 317 e 478 (Beck, 2023).
Além da pandemia, o STJ tem enfrentado casos decorrentes de inflação acelerada, desvalorização cambial e conflitos geopolíticos, que afetam contratos de importação, exportação e fornecimento. As decisões mais recentes apontam para uma tendência de valorização da prova do impacto econômico direto sobre o contrato, com cautela quanto à revisão ampla e genérica dos ajustes firmados (Beck, 2023).
Em síntese, a jurisprudência do STJ tem buscado equilibrar dois valores fundamentais: a proteção da parte onerada diante de acontecimentos imprevisíveis e a preservação da segurança jurídica e da força obrigatória dos contratos. Essa dualidade exige dos operadores do Direito uma análise técnica rigorosa e contextualizada para fundamentar adequadamente os pedidos de revisão ou resolução contratual em tempos de crise.