4. Licenciamento Ambiental Atual: Fraudes, "Subproteção Jurídica" e a Omissão do PL 2.159/2021
O debate sobre a flexibilização do licenciamento ambiental não pode ignorar as deficiências e vulnerabilidades do sistema atualmente em vigor. Longe de ser um modelo isento de falhas, o licenciamento ambiental brasileiro, mesmo sob as regras atuais, é permeado por fraudes e enfrenta o fenômeno da "subproteção jurídica" dos bens ambientais. O PL 2.159/2021, contudo, não apenas se omite em endereçar esses problemas crônicos, como também apresenta o risco de agravá-los.
4.1. Panorama das Fraudes no Sistema Vigente
Mesmo com a legislação atual, que prevê um processo de licenciamento mais detalhado, o número de fraudes é alarmante, especialmente em regiões de grande pressão sobre os recursos naturais, como a Amazônia Legal. As investigações conduzidas pela Polícia Federal e por órgãos de controle têm revelado esquemas complexos e disseminados:
Fraudes em Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) e Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV): Uma prática comum é a superestimativa de créditos florestais em inventários fraudulentos, com o objetivo de "lavar" madeira extraída ilegalmente de outras áreas, incluindo Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Documentos de Origem Florestal (DOF) e Guias Florestais (GF) são emitidos com base nesses créditos fictícios para conferir uma aparência de legalidade à madeira ilegal.
Fraudes no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e na Guia de Trânsito Animal (GTA): No setor pecuário, são frequentes as fraudes no CAR, com a declaração de perímetros falsos para ocultar desmatamentos ilegais, e na GTA, utilizada para "esquentar" gado proveniente de áreas embargadas ou desmatadas ilegalmente, por meio da triangulação com fazendas regulares.
Operações da Polícia Federal: Diversas operações da Polícia Federal trouxeram à luz a magnitude desses esquemas, que frequentemente envolvem a corrupção de agentes públicos, a falsificação de documentos e a atuação de organizações criminosas especializadas. A Operação Akuanduba, por exemplo, alcançou o alto escalão do governo federal por suspeita de facilitar o contrabando de madeira. A Operação Arquimedes desvendou a participação de servidores do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) em fraudes para beneficiar o setor madeireiro.
Essas fraudes demonstram que mesmo um sistema com exigências formais mais robustas é vulnerável. O PL 2.159/2021, ao simplificar excessivamente e reduzir o controle estatal prévio, não apenas falha em endereçar essas vulnerabilidades, mas cria novas e mais amplas avenidas para a legalização de atividades predatórias. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC), por exemplo, com sua natureza autodeclaratória e fiscalização por amostragem, pode se tornar um instrumento facilitador para a "auto-legalização" de práticas danosas, dificultando a detecção de fraudes que já ocorrem em larga escala.
4.2. A "Subproteção Jurídica" dos Bens Ambientais
O conceito de "subproteção jurídica", cunhado por Eliomar Pereira e Franco Perazzoni, descreve um fenômeno no qual as infrações ambientais, mesmo quando graves, são frequentemente tratadas como meras irregularidades administrativas, não recebendo a devida atenção e responsabilização na esfera penal. Isso resulta em uma "cifra negra" de impunidade, onde os verdadeiros causadores de danos ambientais significativos escapam das sanções criminais.
O PL 2.159/2021 tende a agravar essa subproteção. Ao simplificar drasticamente os procedimentos e, em muitos casos, dispensar o licenciamento, o projeto reduz as oportunidades para que os órgãos ambientais e o Ministério Público identifiquem e analisem, na fase prévia, os potenciais crimes ambientais associados a um empreendimento. A fiscalização por amostragem prevista para a LAC é um exemplo claro de como a capacidade de detecção de ilícitos será sistemicamente diminuída. Essa subproteção é um sintoma de uma falha mais profunda no sistema de justiça e fiscalização ambiental. O PL, ao invés de fortalecer os mecanismos de responsabilização, parece caminhar na direção oposta, o que pode levar a uma maior sensação de impunidade e, consequentemente, ao aumento da criminalidade ambiental, um ciclo vicioso já observado.
4.3. Impacto na Capacidade de Fiscalização do IBAMA e ICMBio
Os órgãos federais de fiscalização ambiental, como o IBAMA e o ICMBio, já enfrentam desafios estruturais significativos, incluindo um crônico déficit de pessoal, insuficiência de recursos materiais e financeiros, e pressões políticas que buscam cercear sua atuação. O histórico recente de desmonte e subsequente tentativa de reconstrução da capacidade de fiscalização ambiental, detalhado por Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, ilustra a vulnerabilidade dessas instituições.
O PL 2.159/2021, ao transferir grande parte das responsabilidades de licenciamento para estados e municípios – muitos dos quais carecem de estrutura técnica e financeira adequada – e ao reduzir o escopo de atuação federal em diversos casos, corre o risco de sobrecarregar entes despreparados e diminuir ainda mais a eficácia da fiscalização em âmbito nacional. A proposta de tornar não vinculantes os pareceres de órgãos como o ICMBio em determinados contextos de licenciamento também representa um enfraquecimento direto da proteção de áreas especialmente sensíveis, como as Unidades de Conservação. As operações da Polícia Federal demonstram a complexidade e a organização dos esquemas criminosos que atuam no setor ambiental, muitas vezes com o envolvimento de agentes públicos. A flexibilização do licenciamento, ao reduzir os rastros documentais e os pontos de controle que atualmente permitem a identificação dessas redes, pode dificultar significativamente futuras investigações, tornando mais árduo o trabalho de desbaratar esquemas de corrupção e crime organizado ambiental.
5. O PL 2.159/2021 como Fator de Recrudescimento da Criminalidade Ambiental e da Violência Socioambiental
A flexibilização do licenciamento ambiental proposta pelo PL 2.159/2021 não se limita a questões procedimentais ou burocráticas; ela tem o potencial de catalisar e agravar um cenário já crítico de criminalidade ambiental e violência socioambiental, especialmente na Amazônia.
5.1. Aumento do Risco de Desmatamento Ilegal e Grilagem de Terras na Amazônia
A Amazônia Legal tem sido palco de um aumento desenfreado de crimes ambientais, com destaque para o desmatamento e a extração ilegal de madeira e minérios, frequentemente associados à invasão de terras públicas (grilagem), lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e fraudes diversas. A grilagem, em particular, é um fenômeno complexo, intrinsecamente ligado à ausência ou fragilidade da presença estatal, à especulação fundiária e à expectativa de regularização futura de áreas ilegalmente ocupadas. A pressão política e econômica pela desafetação de áreas protegidas, como Unidades de Conservação e Terras Indígenas, intensifica o desmatamento e a consolidação de ocupações irregulares.
Nesse contexto, a flexibilização do licenciamento ambiental contida no PL 2.159/2021 pode atuar como um poderoso indutor de novas ondas de desmatamento e grilagem. Ao diminuir as exigências e o rigor do escrutínio sobre novos empreendimentos, especialmente em fronteiras agrícolas e áreas de intensa pressão sobre os recursos naturais, o projeto facilita a "limpeza" de áreas desmatadas ilegalmente e a subsequente tentativa de regularização de terras griladas. A proposta de dispensa de licenciamento para diversas atividades agropecuárias, por exemplo, é interpretada por muitos como um convite direto à expansão descontrolada sobre a floresta, removendo uma importante barreira de controle preventivo. O PL, ao enfraquecer o licenciamento, atua como um "acelerador de ilegalidades" preexistentes, pois remove barreiras que, mesmo imperfeitas, dificultavam a expansão e legalização de práticas predatórias.
5.2. Facilitação da "Lavagem" de Produtos Florestais e Minerais Ilegais
A Criminalidade Ambiental Organizada (CAO) tem demonstrado alta capacidade de adaptação e sofisticação, utilizando-se de fraudes em Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS), Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV), Documentos de Origem Florestal (DOF), Guias Florestais (GF) e outros documentos para "esquentar" madeira e minérios extraídos ilegalmente. Esses esquemas frequentemente contam com a cooptação de agentes públicos e a criação de empresas de fachada. Operações da Polícia Federal como Jurupari, Akuanduba, Arquimedes e Siroco têm consistentemente revelado a extensão e a complexidade dessas redes criminosas.
Ao reduzir a necessidade de um licenciamento prévio e detalhado, e ao permitir modalidades como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), o PL 2.159/2021 pode simplificar consideravelmente o processo de "lavagem" desses produtos ilícitos. A diminuição da análise documental e das vistorias prévias dificulta o rastreamento da origem ilegal dos recursos naturais e, consequentemente, o combate eficaz à CAO. Existe uma relação simbiótica entre a flexibilização do licenciamento e o fortalecimento da CAO. Esta se beneficia da redução da fiscalização e da burocracia para "lavar" seus produtos e expandir suas atividades, enquanto a pressão política por flexibilização muitas vezes é exercida por atores ligados a esses interesses ilícitos. A CAO prospera em ambientes com baixa governança e fiscalização deficiente, e o PL criaria tal ambiente.
5.3. Intensificação de Conflitos Socioambientais, Violência e Criminalização de Lideranças
A ausência de responsabilização efetiva por crimes ambientais é um fator que historicamente incentiva a violência e a violação de direitos humanos, especialmente contra povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais que dependem diretamente dos recursos naturais para sua sobrevivência e reprodução cultural. A disputa por terras e pelo controle dos recursos naturais é uma fonte crônica de conflitos em diversas regiões do Brasil, notadamente na Amazônia.
A flexibilização do licenciamento, ao facilitar a implantação de empreendimentos em territórios disputados ou de vital importância para comunidades locais sem a devida e aprofundada análise de impactos socioambientais – e, quando aplicável, sem a realização da consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da OIT – tem o potencial de acirrar esses conflitos, aumentar os índices de violência no campo e intensificar a pressão e a criminalização de defensores do meio ambiente e lideranças comunitárias. A restrição à participação da FUNAI nos processos de licenciamento e a desconsideração de territórios tradicionais ainda não formalizados pelo Estado são exemplos diretos de como o PL pode agravar a vulnerabilidade dessas populações. A violência socioambiental e a criminalização de lideranças não são meros "efeitos colaterais" da expansão de atividades econômicas, mas muitas vezes são estratégias deliberadas para silenciar a resistência e garantir o acesso a territórios e recursos. O PL 2.159/2021, ao diminuir a proteção legal e a participação social, pode inadvertidamente legitimar ou facilitar essas táticas, enfraquecendo a posição legal dessas comunidades.
5.4. O Exemplo do Licenciamento da BR-319 e os Riscos Associados
O processo de licenciamento ambiental para a repavimentação da Rodovia BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), já é emblemático dos riscos associados a grandes obras de infraestrutura na Amazônia. Estudos e análises técnicas apontam para um provável aumento significativo do desmatamento, da grilagem de terras e da criminalidade em geral em sua vasta área de influência, caso o projeto avance sem as devidas salvaguardas socioambientais. Se o PL 2.159/2021 estivesse em vigor, com seus mecanismos de licenciamento simplificado e especial (como a LAE), projetos de infraestrutura com o potencial de impacto da BR-319 poderiam ser licenciados de forma ainda mais expedita e com um escrutínio técnico e social consideravelmente menor. Isso potencializaria os impactos negativos já previstos, como a abertura de ramais ilegais, a invasão de áreas protegidas e o aumento da pressão sobre os recursos naturais e as comunidades locais.
6. Impactos no Comércio Internacional: O PL 2.159/2021 e a Incompatibilidade com o EUDR
A crescente preocupação global com as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade tem levado à adoção de legislações mais rigorosas por parte de importantes blocos econômicos e países importadores, visando a garantir a sustentabilidade das cadeias produtivas. Nesse contexto, o Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR) surge como um marco regulatório com potencial para impactar profundamente o comércio internacional brasileiro, especialmente de commodities agrícolas e florestais.
6.1. Análise do Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR)
O EUDR, formalmente conhecido como Regulamento (UE) 2023/1115, estabelece regras para coibir o desmatamento associado a produtos comercializados no mercado europeu. Ele proíbe a importação e a exportação de um conjunto específico de commodities – carne bovina, soja, cacau, café, madeira, óleo de palma, borracha e seus produtos derivados (como couro, papel, móveis e chocolate) – caso estes não sejam comprovadamente livres de desmatamento ocorrido após 31 de dezembro de 2020. Além disso, os produtos devem ter sido produzidos em conformidade com a legislação ambiental e de direitos humanos do país de origem.
Para tanto, o EUDR impõe aos operadores e comerciantes robustas obrigações de devida diligência (due diligence), que incluem a coleta de informações detalhadas sobre a cadeia de suprimentos e a avaliação e mitigação de riscos de não conformidade. Um elemento central é a exigência de rastreabilidade precisa da origem geográfica dos produtos, por meio de coordenadas de geolocalização das parcelas de terra onde as commodities foram produzidas.
6.2. Incompatibilidade entre o PL 2.159/2021 e o EUDR
A aprovação do PL 2.159/2021, com a consequente flexibilização do licenciamento ambiental brasileiro, cria um cenário de profunda incompatibilidade com as exigências do EUDR. Se o sistema de controle ambiental interno é enfraquecido, a capacidade do Brasil de demonstrar e garantir a legalidade e a sustentabilidade de sua produção fica severamente comprometida.
Dificuldade na Comprovação de Conformidade: Ao reduzir o rigor das análises de impacto ambiental, dispensar licenças para setores-chave como a agropecuária, e permitir o autolicenciamento em larga escala através da LAC, o PL 2.159/2021 dificulta enormemente a comprovação de que os produtos brasileiros estão em conformidade com os critérios do EUDR. A credibilidade das declarações de "desmatamento zero" e "produção legal" é minada quando o próprio sistema nacional de licenciamento é flexibilizado a ponto de não garantir tais atributos.
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Obstáculos à Rastreabilidade: O Brasil já enfrenta desafios significativos na rastreabilidade de cadeias produtivas complexas, como a da carne bovina. Práticas como a "lavagem de gado" (transferência de animais de áreas ilegais para propriedades regulares antes do abate) e a falta de controle efetivo sobre fornecedores indiretos (fazendas de cria e recria) são problemas persistentes que dificultam a garantia de uma cadeia livre de desmatamento. O PL 2.159/2021, ao invés de propor mecanismos para fortalecer o rastreamento e o controle, caminha na direção oposta, enfraquecendo os já combalidos sistemas de monitoramento e fiscalização. A lógica do PL 2.159/2021 é diametralmente oposta à do EUDR e a outras tendências globais de responsabilidade na cadeia de suprimentos. Enquanto o mundo avança para maior rigor e transparência, o PL propõe menos controle e mais opacidade, criando um descompasso que tornará extremamente difícil para os produtores brasileiros atenderem às exigências europeias.
6.3. Riscos para o Comércio Brasileiro
As consequências da aprovação do PL 2.159/2021 para o comércio internacional brasileiro podem ser severas:
Restrições e Perda de Mercados: A incapacidade de atender aos requisitos do EUDR pode levar à imposição de barreiras comerciais significativas e à perda de acesso ao importante mercado da União Europeia para as commodities afetadas. Outros mercados com crescentes exigências socioambientais podem seguir o exemplo da UE, ampliando as restrições.
Danos à Reputação Internacional: A imagem do Brasil como um fornecedor confiável de produtos agrícolas e florestais sustentáveis seria gravemente prejudicada. Esse dano reputacional pode afetar não apenas os setores diretamente cobertos pelo EUDR, mas a percepção geral dos produtos brasileiros no mercado global. A aprovação do PL pode ter um efeito cascata negativo, influenciando outros mercados e investidores que utilizam os padrões europeus como referência. O alerta da Transparência Internacional sobre o PL ser uma "porta aberta para a corrupção" reforça essa preocupação com a imagem do país.
Comprometimento de Acordos Comerciais: O enfraquecimento da legislação e da governança ambiental brasileira pode comprometer a ratificação e a implementação de acordos comerciais importantes, como o Acordo Mercosul-União Europeia, que contém cláusulas ambientais e de desenvolvimento sustentável.
6.4. Desafios Específicos para a Cadeia da Carne Bovina
A cadeia da carne bovina brasileira, um dos principais alvos do EUDR, enfrenta desafios particulares para se adequar às novas exigências:
Rastreabilidade Limitada: Conforme apontado, apenas uma pequena porcentagem do rebanho bovino brasileiro (cerca de 2%) é atualmente rastreável desde a origem até o abate, segundo dados do Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov).
Sistemas de Controle Fragmentados: Os sistemas de controle fundiário (registros de propriedade), ambiental (Cadastro Ambiental Rural - CAR), de defesa sanitária (Guias de Trânsito Animal - GTA) e fiscal (notas fiscais) operam de forma desarticulada, em plataformas separadas e não integradas, impedindo uma visão sistêmica e integrada da cadeia produtiva.
Insegurança Fundiária: A persistência de áreas de produção sem regularização fundiária completa dificulta ou impossibilita a comprovação da origem lícita dos rebanhos. Isso é particularmente crítico dado que a pecuária é responsável por aproximadamente 75% do desmatamento em terras públicas na Amazônia.
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Antinomia entre Desmatamento Legal e Ilegal: O EUDR não faz distinção entre desmatamento considerado legal pela legislação brasileira (por exemplo, supressão autorizada em Reserva Legal ou Áreas de Preservação Permanente, conforme a Lei nº 12.651/2012) e o desmatamento ilegal, caso tenha ocorrido após 31 de dezembro de 2020. Essa abordagem tem gerado tensões políticas e indica potenciais conflitos jurídicos.
A pressão interna por flexibilização ambiental, materializada no PL 2.159/2021, ignora os custos econômicos de longo prazo (perda de mercados, sanções, danos à reputação) em prol de ganhos de curto prazo para setores específicos. Isso revela uma visão míope sobre o desenvolvimento sustentável e a inserção competitiva do Brasil no cenário global, que demanda cada vez mais responsabilidade socioambiental.
A tabela abaixo demonstra o confronto entre as propostas do PL e as exigências do EUDR:
Tabela 2: Confronto entre as Flexibilizações do PL 2.159/2021 e as Exigências do EUDR
Ponto de Flexibilização do PL 2.159/2021 |
Exigência Correspondente do EUDR |
Análise de Incompatibilidade/Risco |
Expansão da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) |
Obrigações de devida diligência robusta; comprovação de origem geográfica precisa e de produção em conformidade com a lei local. |
A natureza autodeclaratória da LAC e a fiscalização por amostragem dificultam a verificação independente da due diligence e a garantia de conformidade com a legislação de origem, especialmente para áreas de médio impacto. |
Dispensa de Licenciamento para Atividades Agropecuárias |
Comprovação de não desmatamento após 31/12/2020 e produção legal para commodities como carne bovina e soja. |
A dispensa impede a análise prévia de risco de desmatamento e dificulta a comprovação da origem legal e livre de desmatamento dos produtos agropecuários, essenciais para o EUDR. |
Criação da Licença Ambiental Especial (LAE) para projetos "estratégicos" |
Produção em conformidade com a legislação do país de origem; mitigação de riscos. |
A LAE, ao permitir aprovação política acelerada, pode chancelar projetos em áreas de alto risco de desmatamento ou com outros passivos ambientais, sem a devida análise técnica, comprometendo a conformidade com o EUDR. |
Enfraquecimento do papel de órgãos ambientais e de controle |
Necessidade de sistemas de controle e fiscalização eficazes no país de origem para validar as declarações de due diligence. |
A redução da capacidade de fiscalização e do rigor técnico dos órgãos ambientais brasileiros mina a credibilidade das informações fornecidas aos importadores europeus. |
Restrição à participação da FUNAI e desconsideração de territórios tradicionais não formalizados |
Conformidade com a legislação de direitos humanos do país de origem. |
Ignorar direitos de povos indígenas em terras não homologadas pode configurar violação da legislação nacional e de convenções internacionais (OIT 169), gerando não conformidade com o EUDR. |
7. Considerações Finais
O Projeto de Lei nº 2.159/2021, sob a égide da simplificação e modernização do licenciamento ambiental, propõe, na realidade, um profundo e perigoso retrocesso no sistema de proteção ambiental brasileiro. A análise crítica de suas principais alterações revela não apenas vícios de inconstitucionalidade flagrantes, por afronta direta ao artigo 225 da Constituição Federal e aos princípios da vedação ao retrocesso, da precaução e da prevenção, mas também uma alarmante desconexão com a complexa realidade das fraudes e da criminalidade que já assolam o setor ambiental.
Longe de aprimorar o controle, o PL 2.159/2021, com mecanismos como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) ampliada, a dispensa de licenciamento para atividades de significativo impacto e a criação de licenças especiais de cunho político, tende a agravar a "subproteção jurídica" dos bens ambientais. Ao reduzir o escrutínio estatal prévio e a participação social, o projeto cria um ambiente fértil para a expansão do desmatamento ilegal, da grilagem de terras e da "lavagem" de produtos oriundos da exploração predatória, fortalecendo a atuação da Criminalidade Ambiental Organizada (CAO), cujos sofisticados modus operandi já desafiam as estruturas de fiscalização existentes. As operações da Polícia Federal, como Arquimedes e Akuanduba, são testemunhos da intrincada rede de corrupção e fraude que o PL, em sua ingenuidade ou deliberada omissão, falha em combater.
Ademais, a aprovação do PL 2.159/2021 representaria um grave equívoco estratégico para o Brasil no cenário internacional. Em um momento em que mercados importantes, como o da União Europeia, intensificam suas exigências de rastreabilidade e de produção livre de desmatamento através de normativas como o EUDR, a flexibilização da legislação ambiental interna sinaliza um desalinhamento com as tendências globais de sustentabilidade. Isso não apenas comprometeria o acesso de produtos brasileiros a esses mercados, gerando prejuízos econômicos significativos, mas também macularia a reputação do país como um ator responsável na agenda ambiental global. A aprovação do PL pode ser interpretada como um sintoma de captura do processo legislativo por interesses setoriais de curto prazo, em detrimento do interesse público de longo prazo e da proteção de bens comuns essenciais, refletindo uma disputa fundamental sobre o modelo de desenvolvimento para o Brasil.
Diante do exposto, conclama-se pela rejeição integral do Projeto de Lei nº 2.159/2021 em sua formatação atual. Qualquer alteração no marco legal do licenciamento ambiental deve, imperativamente, buscar o fortalecimento dos mecanismos de controle, a ampliação da transparência, o combate efetivo às fraudes e à criminalidade, e o alinhamento com os preceitos constitucionais de proteção ao meio ambiente e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O caminho para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável passa pelo robustecimento da governança ambiental, e não por seu enfraquecimento.