Capa da publicação Licenciamento ambiental: retrocesso custa caro
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PL 2.159/2021: um retrocesso que custa caro.

Impactos no meio ambiente, na segurança jurídica e na exportação do agronegócio

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Resumo:


  • O PL 2.159/2021 propõe alterações no licenciamento ambiental, como a expansão da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) e a dispensa de licenciamento, que podem fragilizar o controle ambiental preventivo.

  • Essas mudanças podem impactar a capacidade de fiscalização do IBAMA e ICMBio, aumentar a criminalidade ambiental, intensificar conflitos socioambientais e violência, e dificultar a conformidade com normativas internacionais, como o Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR).

  • O PL 2.159/2021, ao desconsiderar a complexa realidade das fraudes ambientais, a inconstitucionalidade patente, e a incompatibilidade com normativas internacionais, revela um retrocesso perigoso no sistema de proteção ambiental brasileiro, exigindo sua rejeição ou readequação aos princípios constitucionais e internacionais de proteção ambiental.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. Licenciamento Ambiental Atual: Fraudes, "Subproteção Jurídica" e a Omissão do PL 2.159/2021

O debate sobre a flexibilização do licenciamento ambiental não pode ignorar as deficiências e vulnerabilidades do sistema atualmente em vigor. Longe de ser um modelo isento de falhas, o licenciamento ambiental brasileiro, mesmo sob as regras atuais, é permeado por fraudes e enfrenta o fenômeno da "subproteção jurídica" dos bens ambientais. O PL 2.159/2021, contudo, não apenas se omite em endereçar esses problemas crônicos, como também apresenta o risco de agravá-los.

4.1. Panorama das Fraudes no Sistema Vigente

Mesmo com a legislação atual, que prevê um processo de licenciamento mais detalhado, o número de fraudes é alarmante, especialmente em regiões de grande pressão sobre os recursos naturais, como a Amazônia Legal. As investigações conduzidas pela Polícia Federal e por órgãos de controle têm revelado esquemas complexos e disseminados:

  • Fraudes em Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) e Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV): Uma prática comum é a superestimativa de créditos florestais em inventários fraudulentos, com o objetivo de "lavar" madeira extraída ilegalmente de outras áreas, incluindo Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Documentos de Origem Florestal (DOF) e Guias Florestais (GF) são emitidos com base nesses créditos fictícios para conferir uma aparência de legalidade à madeira ilegal.

  • Fraudes no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e na Guia de Trânsito Animal (GTA): No setor pecuário, são frequentes as fraudes no CAR, com a declaração de perímetros falsos para ocultar desmatamentos ilegais, e na GTA, utilizada para "esquentar" gado proveniente de áreas embargadas ou desmatadas ilegalmente, por meio da triangulação com fazendas regulares.

  • Operações da Polícia Federal: Diversas operações da Polícia Federal trouxeram à luz a magnitude desses esquemas, que frequentemente envolvem a corrupção de agentes públicos, a falsificação de documentos e a atuação de organizações criminosas especializadas. A Operação Akuanduba, por exemplo, alcançou o alto escalão do governo federal por suspeita de facilitar o contrabando de madeira. A Operação Arquimedes desvendou a participação de servidores do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) em fraudes para beneficiar o setor madeireiro.

Essas fraudes demonstram que mesmo um sistema com exigências formais mais robustas é vulnerável. O PL 2.159/2021, ao simplificar excessivamente e reduzir o controle estatal prévio, não apenas falha em endereçar essas vulnerabilidades, mas cria novas e mais amplas avenidas para a legalização de atividades predatórias. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC), por exemplo, com sua natureza autodeclaratória e fiscalização por amostragem, pode se tornar um instrumento facilitador para a "auto-legalização" de práticas danosas, dificultando a detecção de fraudes que já ocorrem em larga escala.

4.2. A "Subproteção Jurídica" dos Bens Ambientais

O conceito de "subproteção jurídica", cunhado por Eliomar Pereira e Franco Perazzoni, descreve um fenômeno no qual as infrações ambientais, mesmo quando graves, são frequentemente tratadas como meras irregularidades administrativas, não recebendo a devida atenção e responsabilização na esfera penal. Isso resulta em uma "cifra negra" de impunidade, onde os verdadeiros causadores de danos ambientais significativos escapam das sanções criminais.

O PL 2.159/2021 tende a agravar essa subproteção. Ao simplificar drasticamente os procedimentos e, em muitos casos, dispensar o licenciamento, o projeto reduz as oportunidades para que os órgãos ambientais e o Ministério Público identifiquem e analisem, na fase prévia, os potenciais crimes ambientais associados a um empreendimento. A fiscalização por amostragem prevista para a LAC é um exemplo claro de como a capacidade de detecção de ilícitos será sistemicamente diminuída. Essa subproteção é um sintoma de uma falha mais profunda no sistema de justiça e fiscalização ambiental. O PL, ao invés de fortalecer os mecanismos de responsabilização, parece caminhar na direção oposta, o que pode levar a uma maior sensação de impunidade e, consequentemente, ao aumento da criminalidade ambiental, um ciclo vicioso já observado.

4.3. Impacto na Capacidade de Fiscalização do IBAMA e ICMBio

Os órgãos federais de fiscalização ambiental, como o IBAMA e o ICMBio, já enfrentam desafios estruturais significativos, incluindo um crônico déficit de pessoal, insuficiência de recursos materiais e financeiros, e pressões políticas que buscam cercear sua atuação. O histórico recente de desmonte e subsequente tentativa de reconstrução da capacidade de fiscalização ambiental, detalhado por Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, ilustra a vulnerabilidade dessas instituições.

O PL 2.159/2021, ao transferir grande parte das responsabilidades de licenciamento para estados e municípios – muitos dos quais carecem de estrutura técnica e financeira adequada – e ao reduzir o escopo de atuação federal em diversos casos, corre o risco de sobrecarregar entes despreparados e diminuir ainda mais a eficácia da fiscalização em âmbito nacional. A proposta de tornar não vinculantes os pareceres de órgãos como o ICMBio em determinados contextos de licenciamento também representa um enfraquecimento direto da proteção de áreas especialmente sensíveis, como as Unidades de Conservação. As operações da Polícia Federal demonstram a complexidade e a organização dos esquemas criminosos que atuam no setor ambiental, muitas vezes com o envolvimento de agentes públicos. A flexibilização do licenciamento, ao reduzir os rastros documentais e os pontos de controle que atualmente permitem a identificação dessas redes, pode dificultar significativamente futuras investigações, tornando mais árduo o trabalho de desbaratar esquemas de corrupção e crime organizado ambiental.


5. O PL 2.159/2021 como Fator de Recrudescimento da Criminalidade Ambiental e da Violência Socioambiental

A flexibilização do licenciamento ambiental proposta pelo PL 2.159/2021 não se limita a questões procedimentais ou burocráticas; ela tem o potencial de catalisar e agravar um cenário já crítico de criminalidade ambiental e violência socioambiental, especialmente na Amazônia.

5.1. Aumento do Risco de Desmatamento Ilegal e Grilagem de Terras na Amazônia

A Amazônia Legal tem sido palco de um aumento desenfreado de crimes ambientais, com destaque para o desmatamento e a extração ilegal de madeira e minérios, frequentemente associados à invasão de terras públicas (grilagem), lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e fraudes diversas. A grilagem, em particular, é um fenômeno complexo, intrinsecamente ligado à ausência ou fragilidade da presença estatal, à especulação fundiária e à expectativa de regularização futura de áreas ilegalmente ocupadas. A pressão política e econômica pela desafetação de áreas protegidas, como Unidades de Conservação e Terras Indígenas, intensifica o desmatamento e a consolidação de ocupações irregulares.

Nesse contexto, a flexibilização do licenciamento ambiental contida no PL 2.159/2021 pode atuar como um poderoso indutor de novas ondas de desmatamento e grilagem. Ao diminuir as exigências e o rigor do escrutínio sobre novos empreendimentos, especialmente em fronteiras agrícolas e áreas de intensa pressão sobre os recursos naturais, o projeto facilita a "limpeza" de áreas desmatadas ilegalmente e a subsequente tentativa de regularização de terras griladas. A proposta de dispensa de licenciamento para diversas atividades agropecuárias, por exemplo, é interpretada por muitos como um convite direto à expansão descontrolada sobre a floresta, removendo uma importante barreira de controle preventivo. O PL, ao enfraquecer o licenciamento, atua como um "acelerador de ilegalidades" preexistentes, pois remove barreiras que, mesmo imperfeitas, dificultavam a expansão e legalização de práticas predatórias.

5.2. Facilitação da "Lavagem" de Produtos Florestais e Minerais Ilegais

A Criminalidade Ambiental Organizada (CAO) tem demonstrado alta capacidade de adaptação e sofisticação, utilizando-se de fraudes em Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS), Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV), Documentos de Origem Florestal (DOF), Guias Florestais (GF) e outros documentos para "esquentar" madeira e minérios extraídos ilegalmente. Esses esquemas frequentemente contam com a cooptação de agentes públicos e a criação de empresas de fachada. Operações da Polícia Federal como Jurupari, Akuanduba, Arquimedes e Siroco têm consistentemente revelado a extensão e a complexidade dessas redes criminosas.

Ao reduzir a necessidade de um licenciamento prévio e detalhado, e ao permitir modalidades como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), o PL 2.159/2021 pode simplificar consideravelmente o processo de "lavagem" desses produtos ilícitos. A diminuição da análise documental e das vistorias prévias dificulta o rastreamento da origem ilegal dos recursos naturais e, consequentemente, o combate eficaz à CAO. Existe uma relação simbiótica entre a flexibilização do licenciamento e o fortalecimento da CAO. Esta se beneficia da redução da fiscalização e da burocracia para "lavar" seus produtos e expandir suas atividades, enquanto a pressão política por flexibilização muitas vezes é exercida por atores ligados a esses interesses ilícitos. A CAO prospera em ambientes com baixa governança e fiscalização deficiente, e o PL criaria tal ambiente.

5.3. Intensificação de Conflitos Socioambientais, Violência e Criminalização de Lideranças

A ausência de responsabilização efetiva por crimes ambientais é um fator que historicamente incentiva a violência e a violação de direitos humanos, especialmente contra povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais que dependem diretamente dos recursos naturais para sua sobrevivência e reprodução cultural. A disputa por terras e pelo controle dos recursos naturais é uma fonte crônica de conflitos em diversas regiões do Brasil, notadamente na Amazônia.

A flexibilização do licenciamento, ao facilitar a implantação de empreendimentos em territórios disputados ou de vital importância para comunidades locais sem a devida e aprofundada análise de impactos socioambientais – e, quando aplicável, sem a realização da consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da OIT – tem o potencial de acirrar esses conflitos, aumentar os índices de violência no campo e intensificar a pressão e a criminalização de defensores do meio ambiente e lideranças comunitárias. A restrição à participação da FUNAI nos processos de licenciamento e a desconsideração de territórios tradicionais ainda não formalizados pelo Estado são exemplos diretos de como o PL pode agravar a vulnerabilidade dessas populações. A violência socioambiental e a criminalização de lideranças não são meros "efeitos colaterais" da expansão de atividades econômicas, mas muitas vezes são estratégias deliberadas para silenciar a resistência e garantir o acesso a territórios e recursos. O PL 2.159/2021, ao diminuir a proteção legal e a participação social, pode inadvertidamente legitimar ou facilitar essas táticas, enfraquecendo a posição legal dessas comunidades.

5.4. O Exemplo do Licenciamento da BR-319 e os Riscos Associados

O processo de licenciamento ambiental para a repavimentação da Rodovia BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), já é emblemático dos riscos associados a grandes obras de infraestrutura na Amazônia. Estudos e análises técnicas apontam para um provável aumento significativo do desmatamento, da grilagem de terras e da criminalidade em geral em sua vasta área de influência, caso o projeto avance sem as devidas salvaguardas socioambientais. Se o PL 2.159/2021 estivesse em vigor, com seus mecanismos de licenciamento simplificado e especial (como a LAE), projetos de infraestrutura com o potencial de impacto da BR-319 poderiam ser licenciados de forma ainda mais expedita e com um escrutínio técnico e social consideravelmente menor. Isso potencializaria os impactos negativos já previstos, como a abertura de ramais ilegais, a invasão de áreas protegidas e o aumento da pressão sobre os recursos naturais e as comunidades locais.

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6. Impactos no Comércio Internacional: O PL 2.159/2021 e a Incompatibilidade com o EUDR

A crescente preocupação global com as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade tem levado à adoção de legislações mais rigorosas por parte de importantes blocos econômicos e países importadores, visando a garantir a sustentabilidade das cadeias produtivas. Nesse contexto, o Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR) surge como um marco regulatório com potencial para impactar profundamente o comércio internacional brasileiro, especialmente de commodities agrícolas e florestais.

6.1. Análise do Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR)

O EUDR, formalmente conhecido como Regulamento (UE) 2023/1115, estabelece regras para coibir o desmatamento associado a produtos comercializados no mercado europeu. Ele proíbe a importação e a exportação de um conjunto específico de commodities – carne bovina, soja, cacau, café, madeira, óleo de palma, borracha e seus produtos derivados (como couro, papel, móveis e chocolate) – caso estes não sejam comprovadamente livres de desmatamento ocorrido após 31 de dezembro de 2020. Além disso, os produtos devem ter sido produzidos em conformidade com a legislação ambiental e de direitos humanos do país de origem.

Para tanto, o EUDR impõe aos operadores e comerciantes robustas obrigações de devida diligência (due diligence), que incluem a coleta de informações detalhadas sobre a cadeia de suprimentos e a avaliação e mitigação de riscos de não conformidade. Um elemento central é a exigência de rastreabilidade precisa da origem geográfica dos produtos, por meio de coordenadas de geolocalização das parcelas de terra onde as commodities foram produzidas.

6.2. Incompatibilidade entre o PL 2.159/2021 e o EUDR

A aprovação do PL 2.159/2021, com a consequente flexibilização do licenciamento ambiental brasileiro, cria um cenário de profunda incompatibilidade com as exigências do EUDR. Se o sistema de controle ambiental interno é enfraquecido, a capacidade do Brasil de demonstrar e garantir a legalidade e a sustentabilidade de sua produção fica severamente comprometida.

  • Dificuldade na Comprovação de Conformidade: Ao reduzir o rigor das análises de impacto ambiental, dispensar licenças para setores-chave como a agropecuária, e permitir o autolicenciamento em larga escala através da LAC, o PL 2.159/2021 dificulta enormemente a comprovação de que os produtos brasileiros estão em conformidade com os critérios do EUDR. A credibilidade das declarações de "desmatamento zero" e "produção legal" é minada quando o próprio sistema nacional de licenciamento é flexibilizado a ponto de não garantir tais atributos.

  • Obstáculos à Rastreabilidade: O Brasil já enfrenta desafios significativos na rastreabilidade de cadeias produtivas complexas, como a da carne bovina. Práticas como a "lavagem de gado" (transferência de animais de áreas ilegais para propriedades regulares antes do abate) e a falta de controle efetivo sobre fornecedores indiretos (fazendas de cria e recria) são problemas persistentes que dificultam a garantia de uma cadeia livre de desmatamento. O PL 2.159/2021, ao invés de propor mecanismos para fortalecer o rastreamento e o controle, caminha na direção oposta, enfraquecendo os já combalidos sistemas de monitoramento e fiscalização. A lógica do PL 2.159/2021 é diametralmente oposta à do EUDR e a outras tendências globais de responsabilidade na cadeia de suprimentos. Enquanto o mundo avança para maior rigor e transparência, o PL propõe menos controle e mais opacidade, criando um descompasso que tornará extremamente difícil para os produtores brasileiros atenderem às exigências europeias.

6.3. Riscos para o Comércio Brasileiro

As consequências da aprovação do PL 2.159/2021 para o comércio internacional brasileiro podem ser severas:

  • Restrições e Perda de Mercados: A incapacidade de atender aos requisitos do EUDR pode levar à imposição de barreiras comerciais significativas e à perda de acesso ao importante mercado da União Europeia para as commodities afetadas. Outros mercados com crescentes exigências socioambientais podem seguir o exemplo da UE, ampliando as restrições.

  • Danos à Reputação Internacional: A imagem do Brasil como um fornecedor confiável de produtos agrícolas e florestais sustentáveis seria gravemente prejudicada. Esse dano reputacional pode afetar não apenas os setores diretamente cobertos pelo EUDR, mas a percepção geral dos produtos brasileiros no mercado global. A aprovação do PL pode ter um efeito cascata negativo, influenciando outros mercados e investidores que utilizam os padrões europeus como referência. O alerta da Transparência Internacional sobre o PL ser uma "porta aberta para a corrupção" reforça essa preocupação com a imagem do país.

  • Comprometimento de Acordos Comerciais: O enfraquecimento da legislação e da governança ambiental brasileira pode comprometer a ratificação e a implementação de acordos comerciais importantes, como o Acordo Mercosul-União Europeia, que contém cláusulas ambientais e de desenvolvimento sustentável.

6.4. Desafios Específicos para a Cadeia da Carne Bovina

A cadeia da carne bovina brasileira, um dos principais alvos do EUDR, enfrenta desafios particulares para se adequar às novas exigências:

  • Rastreabilidade Limitada: Conforme apontado, apenas uma pequena porcentagem do rebanho bovino brasileiro (cerca de 2%) é atualmente rastreável desde a origem até o abate, segundo dados do Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov).

  • Sistemas de Controle Fragmentados: Os sistemas de controle fundiário (registros de propriedade), ambiental (Cadastro Ambiental Rural - CAR), de defesa sanitária (Guias de Trânsito Animal - GTA) e fiscal (notas fiscais) operam de forma desarticulada, em plataformas separadas e não integradas, impedindo uma visão sistêmica e integrada da cadeia produtiva.

  • Insegurança Fundiária: A persistência de áreas de produção sem regularização fundiária completa dificulta ou impossibilita a comprovação da origem lícita dos rebanhos. Isso é particularmente crítico dado que a pecuária é responsável por aproximadamente 75% do desmatamento em terras públicas na Amazônia.

  • Antinomia entre Desmatamento Legal e Ilegal: O EUDR não faz distinção entre desmatamento considerado legal pela legislação brasileira (por exemplo, supressão autorizada em Reserva Legal ou Áreas de Preservação Permanente, conforme a Lei nº 12.651/2012) e o desmatamento ilegal, caso tenha ocorrido após 31 de dezembro de 2020. Essa abordagem tem gerado tensões políticas e indica potenciais conflitos jurídicos.

A pressão interna por flexibilização ambiental, materializada no PL 2.159/2021, ignora os custos econômicos de longo prazo (perda de mercados, sanções, danos à reputação) em prol de ganhos de curto prazo para setores específicos. Isso revela uma visão míope sobre o desenvolvimento sustentável e a inserção competitiva do Brasil no cenário global, que demanda cada vez mais responsabilidade socioambiental.

A tabela abaixo demonstra o confronto entre as propostas do PL e as exigências do EUDR:

Tabela 2: Confronto entre as Flexibilizações do PL 2.159/2021 e as Exigências do EUDR

Ponto de Flexibilização do PL 2.159/2021

Exigência Correspondente do EUDR

Análise de Incompatibilidade/Risco

Expansão da Licença por Adesão e Compromisso (LAC)

Obrigações de devida diligência robusta; comprovação de origem geográfica precisa e de produção em conformidade com a lei local.

A natureza autodeclaratória da LAC e a fiscalização por amostragem dificultam a verificação independente da due diligence e a garantia de conformidade com a legislação de origem, especialmente para áreas de médio impacto.

Dispensa de Licenciamento para Atividades Agropecuárias

Comprovação de não desmatamento após 31/12/2020 e produção legal para commodities como carne bovina e soja.

A dispensa impede a análise prévia de risco de desmatamento e dificulta a comprovação da origem legal e livre de desmatamento dos produtos agropecuários, essenciais para o EUDR.

Criação da Licença Ambiental Especial (LAE) para projetos "estratégicos"

Produção em conformidade com a legislação do país de origem; mitigação de riscos.

A LAE, ao permitir aprovação política acelerada, pode chancelar projetos em áreas de alto risco de desmatamento ou com outros passivos ambientais, sem a devida análise técnica, comprometendo a conformidade com o EUDR.

Enfraquecimento do papel de órgãos ambientais e de controle

Necessidade de sistemas de controle e fiscalização eficazes no país de origem para validar as declarações de due diligence.

A redução da capacidade de fiscalização e do rigor técnico dos órgãos ambientais brasileiros mina a credibilidade das informações fornecidas aos importadores europeus.

Restrição à participação da FUNAI e desconsideração de territórios tradicionais não formalizados

Conformidade com a legislação de direitos humanos do país de origem.

Ignorar direitos de povos indígenas em terras não homologadas pode configurar violação da legislação nacional e de convenções internacionais (OIT 169), gerando não conformidade com o EUDR.


7. Considerações Finais

O Projeto de Lei nº 2.159/2021, sob a égide da simplificação e modernização do licenciamento ambiental, propõe, na realidade, um profundo e perigoso retrocesso no sistema de proteção ambiental brasileiro. A análise crítica de suas principais alterações revela não apenas vícios de inconstitucionalidade flagrantes, por afronta direta ao artigo 225 da Constituição Federal e aos princípios da vedação ao retrocesso, da precaução e da prevenção, mas também uma alarmante desconexão com a complexa realidade das fraudes e da criminalidade que já assolam o setor ambiental.

Longe de aprimorar o controle, o PL 2.159/2021, com mecanismos como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) ampliada, a dispensa de licenciamento para atividades de significativo impacto e a criação de licenças especiais de cunho político, tende a agravar a "subproteção jurídica" dos bens ambientais. Ao reduzir o escrutínio estatal prévio e a participação social, o projeto cria um ambiente fértil para a expansão do desmatamento ilegal, da grilagem de terras e da "lavagem" de produtos oriundos da exploração predatória, fortalecendo a atuação da Criminalidade Ambiental Organizada (CAO), cujos sofisticados modus operandi já desafiam as estruturas de fiscalização existentes. As operações da Polícia Federal, como Arquimedes e Akuanduba, são testemunhos da intrincada rede de corrupção e fraude que o PL, em sua ingenuidade ou deliberada omissão, falha em combater.

Ademais, a aprovação do PL 2.159/2021 representaria um grave equívoco estratégico para o Brasil no cenário internacional. Em um momento em que mercados importantes, como o da União Europeia, intensificam suas exigências de rastreabilidade e de produção livre de desmatamento através de normativas como o EUDR, a flexibilização da legislação ambiental interna sinaliza um desalinhamento com as tendências globais de sustentabilidade. Isso não apenas comprometeria o acesso de produtos brasileiros a esses mercados, gerando prejuízos econômicos significativos, mas também macularia a reputação do país como um ator responsável na agenda ambiental global. A aprovação do PL pode ser interpretada como um sintoma de captura do processo legislativo por interesses setoriais de curto prazo, em detrimento do interesse público de longo prazo e da proteção de bens comuns essenciais, refletindo uma disputa fundamental sobre o modelo de desenvolvimento para o Brasil.

Diante do exposto, conclama-se pela rejeição integral do Projeto de Lei nº 2.159/2021 em sua formatação atual. Qualquer alteração no marco legal do licenciamento ambiental deve, imperativamente, buscar o fortalecimento dos mecanismos de controle, a ampliação da transparência, o combate efetivo às fraudes e à criminalidade, e o alinhamento com os preceitos constitucionais de proteção ao meio ambiente e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. O caminho para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável passa pelo robustecimento da governança ambiental, e não por seu enfraquecimento.

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Sobre os autores
Anderson de Andrade Bichara

Diretor de Operações Brasil na GIF Internacional, doutorando em Sustentabilidade Social e Desenvolvimento na Universidade Aberta de Portugal, mestre em Criminología Aplicada y Investigación Policial (UCAV, Espanha), com MPA em Gestão de Órgãos de Segurança Pública pela Universidade Cândido Mendes. Delegado de Polícia Federal desde 2003. Especialização em Bases Teórico Metológicas da Criminologia na Universidade de São Paulo. Foi Auditor Fiscal e Técnico do Tesouro Nacional.

Agostinho Gomes Cascardo Junior

Delegado de Polícia Federal desde 2006, atualmente exercendo a função de Adido Policial Federal do Brasil na Bolívia (desde 2022), já tendo ocupado a função de Superintendente da Polícia Federal em Rondônia (2020 - 2022). Doutorando em Sustentabilidade Social e Desenvolvimento (UAb, Portugal), Mestre em Ciência de Sistemas de Informação Geográfica pela Universidade Nova de Lisboa (2021) e Especialista em Segurança Pública (2018) e está cursando Especialização em Gestão de Riscos, Compliance e Auditoria pela PUC/PR. Possui Professional Certificate in Blockchain Fundamentals pela University of California/Berkeley (2021), Geospatial Intelligence Collegiate Certificate pela United States Geospatial Intelligence Foundation (2020) e Cryptocurrency Tracing Certified Examiner (CTCE) pela CipherTrace (2022).

Franco Perazzoni

Doutor em Sustentabilidade Social e Desenvolvimento (UAb/Portugal) e pesquisador de pós-doutorado no POSCOHR – Coimbra e na ENAP (Escola Nacional de Administração Pública, Brasil), com estudos voltados à interface entre meio ambiente, saúde, tecnologia e governança. Mestre em Ciência e Sistemas de Informação Geográfica (UNL/Portugal) e em Alta Direção em Segurança Internacional (UC3M/Espanha). Atua no campo das tecnologias emergentes aplicadas à sociedade, com foco em ciência de dados, IA, GEOINT, OSINT, blockchain, cibersegurança e marcos legais relacionados à transparência, integridade e prevenção de ilícitos. Professor, pesquisador e orientador voluntário na Universidade de Brasília (NEAz/UnB), concentra-se na produção de conhecimento e no desenvolvimento de soluções inovadoras que integrem tecnologia, direitos humanos e políticas públicas. Delegado de Polícia Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BICHARA, Anderson Andrade ; CASCARDO JUNIOR, Agostinho Gomes et al. PL 2.159/2021: um retrocesso que custa caro.: Impactos no meio ambiente, na segurança jurídica e na exportação do agronegócio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8004, 31 mai. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114179. Acesso em: 5 dez. 2025.

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