4. A Competência Municipal para Legislar sobre Programas de Integridade e a Natureza de Normas Gerais das Leis Federais no Federalismo Cooperativo
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 30, incisos I e II, confere aos Municípios a competência para legislar, enfatizando tal atribuição quando se tratar de "assuntos de interesse local", bem como para "suplementar a legislação federal e a estadual no que couber".
Essa autonomia legislativa municipal é pilar do federalismo, eis que permite que os entes locais respondam às suas peculiaridades, atribuindo-lhes a denominada autonomia municipal, que abrange autogoverno, autoadministração e autolegislação, trazendo em nosso seio um modelo de federalismo cooperativo e harmônico.
Nesse contexto, é fundamental reconhecer a natureza das Leis Federais nº 12.846/2013 e a Lei nº 14.133/2021, como sendo de normas gerais.
Ora, de conformidade com o artigo 22, XXVII, da Constituição Federal compete à União a competência privativa para legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação" para todas as administrações públicas, isto é a Lei Geral de Licitações (Lei 14.133/2021) estabelece as regras gerais.
O mesmo raciocínio pode ser inferido em relação à Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que institui normas gerais sobre a responsabilização de pessoas jurídicas, incluindo o tratamento de programas de integridade. Moro, Pio e Lobato (2021) reforçam essa perspectiva. Mencionam a competência da União para "normas gerais de licitação e contratação".
A natureza de "normas gerais" é crucial para a competência municipal, eis que cabe à União estabelecer padrão mínimo ou diretrizes amplas, sendo que, aos Estados e municípios, no exercício da competência suplementar (Art. 30, II, da CF), é possível detalhar e adaptar essas normas à sua realidade específica, sendo tal flexibilidade vital, a garantir que a legislação seja eficaz em diferentes contextos regionais.
A competência municipal se manifesta claramente em programas de integridade. A Lei nº 14.133/2021 tem normas gerais. Mas permite a exigência de programas de integridade. Essa previsão não esgota a capacidade legislativa dos entes. Pelo contrário, abre espaço. Permite que os municípios detalhem e adaptem essa exigência.
A instituição de programas de integridade em empresas contratadas pelo Município, mesmo por lei de iniciativa parlamentar, insere-se em "interesses locais" e "competência suplementar". O interesse local é buscar mais probidade e transparência. Melhorar a eficiência na gestão de recursos municipais. Prevenir fraudes e proteger o patrimônio público local. Ao exigir programas de integridade, o Município não legisla sobre estruturas federais. Nem sobre normas gerais de licitação. Está implementando mecanismos de controle. Aprimora a execução de contratos administrativos. Isso em consonância com as Leis nº 12.846/2013 e nº 14.133/2021, e com o Decreto nº 11.129/2022 e o Decreto nº 12.304/2024.
A lei municipal atua como "norma de conduta" para os contratados. Não é uma "norma de estrutura" da Administração Pública. Isso garante a constitucionalidade da iniciativa parlamentar. Não reorganiza a máquina pública. Estabelece critérios para a relação do ente público com particulares. Fortalece a governança externa. Não é uma "burla" à reserva de iniciativa do Executivo. Mantém-se estritamente dentro da moldura constitucional do STF no Tema 917. A disciplina da matéria pelo Município não é invasão. É uma concretização do federalismo cooperativo. Cada ente federado atua em sua autonomia. Busca objetivos comuns de boa governança. Além disso, a iniciativa parlamentar pode ser um catalisador. Ela incentiva o próprio Executivo a desenvolver suas políticas, gerando um efeito positivo em toda a administração municipal.
Nesse sentido, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal tem reiterado a constitucionalidade de leis municipais que exigem programas de integridade. É o caso do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário (ARE) 1.410.340/SP, julgado pela Segunda Turma do STF. A ementa do julgado é clara ao afirmar a competência suplementar do município:
Agravo regimental em recurso extraordinário. Representação de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 14.126/22. Programa de integridade das empresas contratadas pela administração pública local. Competência suplementar do município para editar normas específicas em matéria de licitação. Adequação do montante exigido para a implementação de compliance à realidade econômica, financeira e orçamentária local. Agravo não provido.
O agravante aduz que a Lei municipal nº 14.126/22, que “institui o programa de integridade das empresas contratadas pela administração pública local, e dá outras providências”, invadiu a competência privativa do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, “a”, “c” e “e”, da CF), pois criaria despesas para a administração municipal e disporia sobre a organização e o funcionamento de órgãos públicos.
O acórdão recorrido, em juízo de retratação, ressaltou que a lei impugnada não dispôs sobre a estrutura da administração, a atribuição ou o funcionamento de seus órgãos, mas sim sobre a obrigatoriedade da implementação de programas de integridade pelas empresas contratadas com a administração pública do Município. Ademais, assentou a competência do município para editar normas específicas em matéria de licitação, ao suplementar a legislação federal.
Nos termos da jurisprudência desta Corte, não usurpa a competência privativa do Chefe do Poder Executivo a lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (Tema nº 917 da Repercussão Geral).
É lícito ao Município, no exercício de sua competência suplementar, editar norma que exija a implementação de programa de compliance por empresas que com ele contratem. Precedentes.
Agravo regimental não provido.
(RE 1.410.340 AgR, Relator: DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 19-09-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-SEMC 25-09-2023)
O voto do Ministro Dias Toffoli reforça essa interpretação:
"O Tribunal de origem, em retratação, ressaltou: a Lei nº 14.126/22, de São José do Rio Preto, não dispôs sobre estrutura da administração, atribuição ou funcionamento de seus órgãos. Dispôs sobre a obrigatoriedade de programas de integridade em empresas contratadas. O Município tem competência para editar normas específicas em licitação, suplementando a legislação federal." (BRASIL, STF, 2023, p. 4)
Reiterando a linha jurisprudencial do STF:
"A jurisprudência desta Corte firmou-se: não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que cria despesa para a Administração, mas não trata de sua estrutura, atribuição de órgãos ou regime de servidores públicos (Tema nº 917 da Repercussão Geral)." (BRASIL, STF, 2023, p. 4)
O Ministro Toffoli conclui enfaticamente sobre a licitude da atuação municipal:
"A norma municipal exige programas de integridade para empresas contratadas. Assim, não invadiu a competência privativa do Chefe do Poder Executivo. Não tratou de estrutura, atribuição ou funcionamento de órgãos públicos, nem de regime de servidores." (BRASIL, STF, 2023, p. 5)
"É lícito ao Município, em sua competência suplementar, editar norma que exija programa de compliance de empresas contratadas." (BRASIL, STF, 2023, p. 5)
Este julgado corrobora a tese defendida. Aplica diretamente o Tema 917 a um caso concreto de lei municipal de compliance . Reforça que a exigência de programas de integridade para empresas contratadas não configura invasão da competência privativa do Executivo. É legítimo exercício da competência suplementar municipal em matéria de licitação. A menção à "adequação do montante exigido para a implementação de compliance à realidade econômica, financeira e orçamentária local" também é relevante. Dialoga com a discussão sobre desafios de implementação e a necessidade de proporcionalidade.
5. Os Desafios da Implementação de Programas de Integridade em Municípios: Limitações Estruturais, Adaptação e a Perspectiva da CGU na Construção de uma Governança Eficaz
As Leis municipais que instituem programas de integridade são válidas, mas não se pode perder de vista que a sua implementação é desafiadora, especialmente em municípios menores ou com menos estrutura.
Isso porque a exigência de programas de integridade é complexa, tal como resta delineado pela Lei Anticorrupção e seu decreto, bem como na Lei Geral de Licitações e seu novo decreto regulamentador.
Antônio Barbosa de Souza Neto (2022) destaca essa realidade, colocando que a implementação de compliance em municípios de pequeno porte é essência, mas deverá ocorrer "com observância a diversos fatores", pois a realidade é bem diferente da esfera federal ou de grandes empresas.
Entre os desafios, destaca-se o conhecimento técnico, eis que criar, fiscalizar e avaliar programas de integridade exige expertise em compliance, gestão de riscos, direito administrativo e auditoria, sendo de se anotar que muitos municípios não têm servidores qualificados, nem recursos para contratar consultorias.
Cumpre destacar que Souza Neto (2022) argumenta que "a solução não é afastar a medida, mas sim torná-la flexível". Isso permite a adoção de "mecanismos simplificados de compliance".
Os recursos financeiros limitados são obstáculo, dado que implementar e manter programas de integridade gera custos com treinamento, sistemas, consultoria e pessoal. Diante desse panorama é bem de ver que Municípios com orçamentos apertados têm dificuldades.
A fiscalização e o monitoramento são críticos, sendo de se ressaltar que, muito embora a lei possa exigir o programa, isso pode não garantir efetividade. Por isso, a administração municipal precisa fiscalizar e monitorar se as empresas cumprem os requisitos, sendo que tal atividade específica exige pessoal qualificado e processos definidos.
Muitos municípios menores têm estrutura enxuta, contam com poucos servidores que acumulam múltiplas funções. Novas atribuições de integridade podem sobrecarregar a máquina pública, comprometendo a qualidade da fiscalização.
Não se pode deixar de mencionar, nessa ordem de ideias, ainda que a cultura organizacional e resistência podem dificultar, sendo que a transição para cultura de integridade é complexa e demorada, não sendo demasiado inferir que concretamente pode haver resistência interna.
Nesse contexto, as diretrizes do "Manual Prático de Avaliação de Programa de Integridade em PAR" da CGU (2018) são relevantes, pois ajudam na construção de governança eficaz. Este manual foca na avaliação em Processos Administrativos de Responsabilização (PAR), mas também detalha os elementos de um programa de integridade efetivo.
A CGU reconhece que um programa não deve ser só "documentos meramente formais e teóricos", mas, acima de tudo, deve ser um conjunto de "mecanismos e procedimentos internos", que incluem auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, aplicação efetiva de códigos de ética e conduta, cujo objetivo é detectar e sanar desvios, fraudes e atos ilícitos.
O manual enfatiza a adaptação à realidade da pessoa jurídica, já que a efetividade do programa depende disso. Daí porque se considera "tamanho da empresa, grau de interação com o Poder Público, natureza e complexidade das atividades", apontando diversos elementos essenciais.
Por primeiro, o comprometimento da alta direção é fundamental, assim como a liderança precisa demonstrar engajamento, estabelecendo o tom "de cima para baixo" (tone at the top).
Além disso, a existência de código de ética e conduta é crucial, que, como é cediço, é o documento principal que expressa valores e regras.
Não menos importante é a implementação de canais de denúncia seguros e acessíveis, para garantia de que irregularidades sejam reportadas com proteção.
Como também, para conscientizar, a realização de constante treinamento e comunicação é absolutamente necessário, pois disseminam a cultura de integridade.
Também não se pode olvidar da análise e gestão de riscos é proativa, que identifica vulnerabilidades e as mitiga e, em complemento, a diligência prévia (due diligence) com terceiros garante que parceiros sigam padrões de integridade.
Na mesma linha, a existência de Controles internos robustos, que tenham o condão de prevenir desvios, o monitoramento contínuo, que permita avaliação e ajustes e a capacidade de investigações internas e aplicação de sanções garante a credibilidade.
Por fim, transparência e accountability são fundamentais, a demonstrar o compromisso público e inequívoco com a integridade.
É crucial que as leis municipais prevejam proporcionalidade e adaptabilidade dos programas de integridade.
Como enfatiza Ayres (2016), a operacionalização deve considerar a "realidade da pessoa jurídica", sendo que tal situação inclui "porte e área de atuação", a garantir que o programa não seja formalismo, mas ferramenta eficaz e aplicável.
Com efeito, programas de integridade não são "tamanho único", sendo que as exigências neles estabelecidas podem e devem ser moduladas de acordo com porte e complexidade das empresas. Por exemplo, requisitos simplificados para microempresas (ME/EPP) tornam a norma realista e menos onerosa, sem comprometer o controle. Tal abordagem flexível garante que o compliance seja ferramenta de boa governança e não um obstáculo burocrático, alinhando-se em última análise aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
5.1. A Formação e Capacitação dos Atores Públicos e Privados
A efetividade dos programas de integridade nas contratações públicas, especialmente no cenário municipal, depende crucialmente da formação e capacitação contínua de todos os atores envolvidos, tanto no setor público quanto no privado. A mera existência de leis e decretos não garante a aplicação ou a compreensão adequada das exigências de compliance.
No âmbito da Administração Pública municipal, a carência de conhecimento técnico é um dos principais entraves. Servidores que atuam em licitações, gestão de contratos, auditoria e controle interno muitas vezes não possuem a especialização necessária em compliance, gestão de riscos, investigação de fraudes e direito anticorrupção. A complexidade dos novos arcabouços legais, como a Lei nº 14.133/2021, exige um preparo que vai além do tradicional direito administrativo. Sem capacitação adequada, a fiscalização dos programas de integridade apresentados pelas empresas pode se tornar superficial, e a identificação de "programas de prateleira" (que existem no papel, mas não na prática) pode ser comprometida.
Para os agentes públicos, a capacitação deve abranger:
Conceitos Fundamentais de Compliance e Integridade: Entender a lógica e os objetivos dos programas de integridade, bem como a cultura de ética e accountability.
Gestão de Riscos e Matriz de Riscos: Habilitar os servidores a identificar, avaliar e mitigar riscos de corrupção e outras irregularidades nas contratações.
Aspectos Práticos da Nova Lei de Licitações: Detalhar as novas regras, com foco nas exigências de governança e integridade, e como elas se materializam nos editais e contratos.
Técnicas de Auditoria e Fiscalização de Programas de Integridade: Desenvolver a capacidade de verificar a efetividade e não apenas a formalidade dos programas das empresas.
Uso de Ferramentas Tecnológicas: Capacitar para o uso de sistemas de informação e dados abertos para o monitoramento de contratos e a detecção de anomalias.
No setor privado, especialmente para micro e pequenas empresas que buscam contratar com o poder público, a necessidade de capacitação é igualmente premente. Muitas dessas empresas não possuem estrutura ou recursos para desenvolver programas de integridade robustos e complexos. O desconhecimento sobre as exigências legais e as melhores práticas pode ser uma barreira à sua participação em licitações, contradizendo o princípio do desenvolvimento nacional sustentável, que busca incentivar a participação das micro e pequenas empresas.
Para as empresas, a capacitação deve focar em:
Requisitos Simplificados de Compliance: Orientar sobre como adaptar os princípios de integridade à realidade de MPEs, com diretrizes claras e acessíveis, evitando custos desproporcionais.
Elaboração de Códigos de Ética e Conduta: Apoiar na criação de documentos claros e práticos.
Canais de Denúncia Acessíveis: Demonstrar a importância e as formas de implementação de canais de denúncia, mesmo que simplificados.
Treinamento Básico em Integridade: Incentivar treinamentos internos simples para os colaboradores sobre ética, combate à corrupção e riscos em contratos públicos.
A atuação de órgãos como a Controladoria-Geral da União (CGU) e os Tribunais de Contas é fundamental nesse processo, não apenas na fiscalização, mas na oferta de materiais educativos, cursos e manuais que sirvam de guia para municípios e empresas. Iniciativas de cooperação entre as esferas de governo, universidades e entidades de classe podem preencher essa lacuna de conhecimento. Investir na formação e capacitação é um investimento estratégico na infraestrutura de integridade do país, garantindo que as políticas anticorrupção se traduzam em resultados concretos e não apenas em normativas. Sem essa base de conhecimento, a efetividade das leis e a própria governança pública ficam comprometidas.
Portanto, a atuação municipal é permitida. Mas legisladores e gestores devem considerar a realidade estrutural dos municípios. Leis sem previsão de recursos, capacitação e adaptação podem ser ineficazes. A cooperação federativa é essencial, assim como o compartilhamento de boas práticas e o apoio de órgãos de controle externos na capacitação e orientação dos municípios. Isso para que a intenção das leis se traduza em administração pública mais íntegra e eficiente, fortalecendo o sistema de governança pública como um todo.