Resumo: A Lei nº 14.112/2020 introduziu, no § 10 do art. 10 da Lei de Falências e Recuperações Judiciais, um prazo decadencial de três anos para o pedido de habilitação ou reserva de crédito. A aplicação desse prazo às falências decretadas anteriormente à vigência da nova norma tem suscitado intensas controvérsias, sobretudo quando se trata de créditos constituídos judicialmente apenas após 2020. O presente artigo examina, à luz da hermenêutica sistemática e dos princípios constitucionais da segurança jurídica, do devido processo legal e da vedação à supressão de direitos, os limites da aplicação temporal do novo dispositivo. Conclui-se que a interpretação literal e descontextualizada compromete a integridade do ordenamento jurídico, devendo o dispositivo ser lido à luz da sua função teleológica e da proteção da confiança legítima dos credores.
Palavras-chave: habilitação de crédito; falência; prazo decadencial; interpretação sistemática; segurança jurídica; Lei 11.101/2005.
1. Introdução
A reforma da Lei de Falências e Recuperações Judiciais promovida pela Lei nº 14.112/2020 representou, indiscutivelmente, uma inflexão significativa no regime jurídico das falências brasileiras.
Dentre as diversas inovações legislativas introduzidas, destaca-se a inclusão do § 10 ao art. 10 da Lei nº 11.101/2005, que instituiu prazo decadencial de três anos para a apresentação de pedido de habilitação ou de reserva de crédito no processo falimentar, a contar da data da sentença que decreta a quebra da empresa.
Embora o dispositivo tenha como motivação declarada conferir maior previsibilidade e celeridade ao processo falimentar, sua aplicação prática tem revelado zonas de fricção interpretativa que exigem cuidadosa reflexão teórica e dogmática.
A principal delas reside na hipótese — cada vez mais frequente na jurisprudência — de aplicação retroativa do novo prazo decadencial a situações constituídas sob o regime normativo anterior, em especial no que diz respeito à habilitação de créditos judicialmente reconhecidos apenas após a entrada em vigor da reforma.
Essa problemática adquire contornos ainda mais sensíveis quando se está diante de crédito de natureza alimentar, formado após décadas de litígio e cujo reconhecimento dependeu do trânsito em julgado de ação de conhecimento anterior à reforma.
Em tais casos, decisões judiciais vêm reconhecendo a decadência da pretensão do credor apresentar a habilitação do crédito na falência com fundamento exclusivo na ausência de reserva formal de crédito dentro do triênio legal, mesmo quando a parte credora sequer dispunha de título líquido e certo para exercer tal faculdade.
O presente artigo pretende enfrentar esse problema sob a ótica da dogmática jurídica e da teoria da interpretação normativa, questionando os limites da aplicação temporal do § 10 do art. 10 da Lei nº 11.101/2005, a partir da incidência de princípios estruturantes do Estado de Direito, tais como a segurança jurídica, a boa-fé objetiva, a proteção da confiança e a vedação à supressão arbitrária de direitos.
Parte-se do pressuposto hermenêutico segundo o qual a lei não contém palavras inúteis e não pode ser interpretada de forma atomizada ou em tiras, isto é, isoladamente, sem o devido cotejo com o restante do ordenamento jurídico e os valores que o informam. A adoção de interpretação sistemática e teleológica se revela, portanto, imperativa, como forma de resguardar não apenas a coerência normativa, mas a própria dignidade do jurisdicionado frente ao processo falimentar — instrumento que não pode ser convertido em meio de aniquilação de direitos regularmente constituídos.
2. O art. 10, § 10 da LREF e sua natureza jurídica
O § 10 do art. 10 da Lei nº 11.101/2005, introduzido pela Lei nº 14.112/2020, inovou ao estabelecer um prazo decadencial para a habilitação retardatária de crédito. Antes de sua vigência, a legislação falimentar não impunha limite temporal rígido para que credores retardatários postulassem sua inclusão no quadro geral.
Ao criar esse óbice temporal, o dispositivo inaugurou uma nova lógica jurídica, cujo caráter material é inegável: trata-se de causa de extinção do próprio direito à habilitação, e não de mera regra procedimental.
Não se pode perder de vista que a natureza material da norma impõe interpretação restritiva, especialmente quanto à sua incidência temporal. Como ensina a doutrina clássica, prazos decadenciais introduzidos por lei nova não retroagem, salvo quando expressamente determinado — o que não ocorre no presente caso.
A ausência de norma de transição impõe ao intérprete cautela redobrada, sob pena de violar direitos constituídos sob a égide de ordenamento anterior. Além disso, ao tratar de prazo vinculado à sentença que decreta a falência, a norma não pode ser artificialmente aplicada a falências anteriores à sua vigência, sob pena de afronta à própria literalidade do texto legal.
O conspícuo jurista Norberto Bobbio contribui significativamente para a compreensão da hermenêutica normativa ao defender que a racionalidade do sistema jurídico exige do legislador (e do aplicador) o máximo de coerência, não contradição e não redundância.
Vale ressaltar que no artigo “O bom legislador”, Bobbio sustenta que "entre todas as interpretações possíveis de uma mesma norma, o juiz escolhe sempre aquela que reflete o mais fielmente possível a imagem de um legislador justo, coerente, razoável e não redundante". Essa orientação valoriza o vínculo entre interpretação e finalidade, e reforça a recusa a significados normativos que desnaturem a função legítima da lei ou anulem direitos de modo arbitrário.
3. A problemática da retroatividade e a função da reserva de crédito
É preciso compreender o instituto da reserva de crédito à luz de sua teleologia: trata-se de mecanismo destinado a assegurar que, em ações judiciais em curso, o eventual crédito a ser reconhecido possa ser futuramente habilitado com preferência relativa.
Entretanto, exigir a formulação da reserva antes da formação de um título executivo judicial, em ações complexas ou de tramitação prolongada, configura distorção de sua função originária.
O entendimento que exige reserva formal de crédito como condição para afastar a decadência introduzida pela Lei nº 14.112/2020 incorre em formalismo excessivo, desproporcional e desconectado da realidade processual brasileira.
Com efeito, é cediço que em muitos casos, o próprio credor desconhece, por décadas, a decretação da falência, seja pela ausência de citação específica, seja pelo longo lapso de tramitação em instâncias superiores.
Ademais, o entendimento que condiciona o direito à reserva à existência do crédito ignora que o reconhecimento da dívida depende, muitas vezes, do trânsito em julgado da ação de conhecimento, o que pode ocorrer muito após o advento da nova lei.
A retroatividade da norma, nesses moldes, afronta o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que assegura a irretroatividade das leis para alcançar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
A aplicação retroativa de regra de decadência implica, na prática, subtrair do credor um direito reconhecido judicialmente, desvirtuando o princípio da legalidade e fragilizando a proteção jurisdicional do crédito.
A discussão também deve considerar a regra clássica do tempus regit actum, segundo a qual os atos jurídicos regem-se pela lei vigente ao tempo em que praticados. Tal princípio, amplamente reconhecido na hermenêutica jurídica, reforça a tese de que a habilitação de crédito deve observar a legislação processual e material vigente à época da formação do direito.
A aplicação retroativa do art. 10, § 10, a falências decretadas antes de sua entrada em vigor, ignora o marco temporal fixado pela própria norma e desconsidera que, à época, não havia previsão legal de decadência. O tempus regit actum é, portanto, barreira hermenêutica e constitucional à retroatividade, funcionando como garantidor da previsibilidade normativa e da segurança jurídica.
4. Interpretação sistemática e a preservação dos direitos subjetivos
A interpretação sistemática exige a conjugação do art. 10, § 10 com os demais dispositivos da Lei nº 11.101/2005, com a Constituição da República e com os princípios estruturantes do processo civil. Entre eles, destaca-se o princípio da segurança jurídica, que impõe previsibilidade, estabilidade e proteção à confiança legítima do jurisdicionado.
A esse respeito, Eros Grau, que rejeita a chamada ponderação entre princípios quando desvinculada do sistema normativo, afirma que "não se interpreta o direito em tiras; não se interpretam textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo" (O perigoso artifício da ponderação entre princípios, Editora JC, 2009).
Nesse sentido, a interpretação da Constituição e da legislação infraconstitucional exige a consideração do texto normativo como parte de uma totalidade integrada e racional. Por esse método, o § 10 do art. 10 deve ser lido não apenas em sua letra, mas em sua finalidade, inserido no contexto de equilíbrio entre os interesses da massa falida e os direitos dos credores.
No mesmo sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe que o ordenamento jurídico não negue tutela jurisdicional a direitos de natureza alimentar, como é comum em casos de comissões de corretagem, salários ou indenizações trabalhistas. O direito à habilitação de crédito decorre da própria eficácia das decisões judiciais, e não pode ser frustrado por óbices formais que contrariam a razão de ser da norma.
5. Conclusão
A análise do art. 10, § 10 da Lei nº 11.101/2005, à luz da hermenêutica sistemática e dos princípios constitucionais, revela que sua aplicação retroativa é juridicamente inadequada e materialmente injusta.
Assim, a norma, ao estabelecer um prazo decadencial para habilitação ou reserva de crédito, possui natureza material e deve respeitar os marcos temporais que regem a formação e o exercício dos direitos dos credores.
A interpretação isolada e puramente literal do dispositivo compromete sua função teleológica e desconsidera o contexto normativo em que se insere. A incidência da regra do tempus regit actum, a lição de Bobbio sobre a coerência do legislador e a exigência de totalidade hermenêutica apontada por Eros Grau convergem para um único desfecho: é inadmissível a supressão de direitos subjetivos legitimamente constituídos com base em inovação legislativa aplicada retroativamente.
Logo, impõe-se que o § 10 do art. 10 da LREF seja interpretado em consonância com os princípios da segurança jurídica, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana, garantindo-se aos credores — especialmente aos titulares de créditos alimentares reconhecidos judicialmente — o pleno exercício de seu direito à habilitação no processo falimentar.
Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. O bom legislador. Trad. Eduardo Nunes de Souza. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, 2021. Disponível em: http://civilistica.com/o-bom-legislador/. Acesso em: 11 jun. 2025.
GRAU, Eros Roberto. O perigoso artifício da ponderação entre princípios. Revista Justiça & Cidadania, ed. 108, jul. 2009. Disponível em: https: https://editorajc.com.br/o-perigoso-artificio-da-ponderacao-entre-principios/.. Acesso em: 11 jun. 2025.
BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Dispõe sobre a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 142, n. 29, p. 1, 10 fev. 2005.
BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Altera a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 158, n. 247, p. 1, 24 dez. 2020.
Abstract: Law No. 14.112/2020 introduced, in § 10 of Article 10 of the Brazilian Bankruptcy and Judicial Reorganization Act, a three-year statute of limitations for filing claims or credit reservations. The application of this deadline to bankruptcies declared prior to the new statute's enactment has provoked intense debate, especially regarding credits judicially recognized only after 2020. This article examines, in light of systematic hermeneutics and the constitutional principles of legal security, due process, and the prohibition against retroactive suppression of rights, the temporal scope and proper interpretation of the new provision. It concludes that a literal and decontextualized interpretation undermines the coherence of the legal system and that the statute must be construed according to its teleological function and the protection of creditors' legitimate expectations.