Resumo: O presente artigo analisa os efeitos jurídicos do julgamento do Tema 1257 pelo Superior Tribunal de Justiça, que implicou o cancelamento dos Temas 701 e 1055 anteriormente firmados sobre a indisponibilidade de bens em ações de improbidade administrativa. O objetivo é investigar se a nova orientação jurisprudencial permite, por si só, a revogação automática das medidas cautelares anteriormente deferidas, considerando a necessidade de reavaliação concreta à luz do art. 300 do Código de Processo Civil e dos princípios da segurança jurídica e da legalidade processual. O diferencial do estudo está em abordar a questão a partir da perspectiva processual, integrando o novo regime da LIA com a sistemática das tutelas provisórias de urgência e demonstrando que a revisão das medidas exige análise casuística, provocação da parte interessada e exame dos requisitos legais no momento da reavaliação.
Palavras-chave: Improbidade administrativa. Tutela de urgência. Indisponibilidade de bens. Tema 1257. Lei 14.230/2021. Código de Processo Civil.
Sumário: 1. Introdução. 2. A tutela de indisponibilidade de bens antes da Lei 14.230/2021. 3. A nova sistemática trazida pela Lei 14.230/2021. 4. O julgamento do Tema 1257 e o cancelamento dos Temas 701 e 1055. 5. A necessidade de provocação e de reavaliação concreta segundo o art. 300 do CPC. 5.1. Interpretação conforme a LINDB. 5.2. Reversibilidade e momento processual da revisão da cautelar. 6. Conclusão.
1. Introdução
A evolução legislativa e jurisprudencial no âmbito da improbidade administrativa, especialmente após a promulgação da Lei n. 14.230/2021, trouxe significativas mudanças no regime jurídico das tutelas de urgência. O julgamento do Tema 1257 pelo STJ, que determinou a aplicação da nova lei aos processos em curso no que se refere à indisponibilidade de bens, ensejou o cancelamento dos Temas 701 e 1055.
Diante disso, impõe-se a análise sobre os limites e condições para a revisão de medidas anteriormente concedidas. O problema central que se coloca é se o novo entendimento jurisprudencial exige, de forma automática, a reavaliação de todas as tutelas já deferidas, ou se tal revisão depende da demonstração concreta de fato superveniente e da observância das regras gerais do Código de Processo Civil. Neste contexto, o presente artigo busca realçar um aspecto ainda pouco explorado pela doutrina: a necessária aplicação das normas do sistema de tutelas provisórias do CPC como parâmetro para a readequação das medidas de indisponibilidade, à luz de um novo regime normativo, mas sem ruptura automática com o passado.
2. A tutela de indisponibilidade de bens antes da Lei 14.230/2021
Sob a vigência da redação original da Lei 8.429/1992, consolidou-se o entendimento de que a indisponibilidade de bens poderia ser decretada independentemente da demonstração de perigo de dano irreparável, bastando a existência de indícios de atos de improbidade que causassem enriquecimento ilícito ou dano ao erário.
Essa compreensão prevaleceu por anos e fundamentou medidas amplas, inclusive sobre valores oriundos de fontes lícitas ou destinados ao pagamento de multas civis. A lógica subjacente a esse regime era a de uma tutela de natureza cautelar atípica, cuja função seria apenas resguardar a futura execução da pena civil.
3. A nova sistemática trazida pela Lei 14.230/2021
Com a reforma legislativa implementada pela Lei nº 14.230/2021, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) estabeleceu um novo marco regulatório para a concessão da tutela de indisponibilidade de bens. Agora, a medida demanda a demonstração concreta de "perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo", superando o entendimento anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que admitia um "risco implícito".
Além disso, a nova lei passou a restringir o alcance da medida, prevendo expressamente que a indisponibilidade será limitada ao valor necessário para a reparação ao dano ao erário e vedando a inclusão de valores decorrentes de atividade lícita e da multa civil.
Dessa forma, o modelo que antes admitia presunções legais de periculum in mora cedeu lugar a um sistema que exige a demonstração de fatos específicos que justifiquem a urgência da constrição patrimonial. Essa mudança representa um avanço em direção a um processo sancionador mais justo, técnico e garantista, evitando a decretação automática e sem critérios que poderia levar a constrições patrimoniais indefinidas e potencialmente injustas.
4. O julgamento do Tema 1257 e o cancelamento dos Temas 701 e 1055
A Primeira Seção do STJ, ao julgar o Tema 1257, fixou tese no sentido de que a nova lei é aplicável aos processos em curso, devendo as tutelas anteriormente concedidas ser reavaliadas à luz da legislação atual; tendo sido firmada a seguinte tese:
“As disposições da Lei 14.230/2021 são aplicáveis aos processos em curso, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, de modo que as medidas já deferidas poderão ser reapreciadas para fins de adequação à atual redação dada à Lei 8.429/1992.”
Em consequência, os Temas 701 e 1055 foram cancelados por se tornarem incompatíveis com a nova redação legal. Trata-se de mudança relevante no entendimento jurisprudencial sobre o tema, com impacto direto sobre milhares de medidas cautelares atualmente vigentes.
5. A necessidade de provocação e de reavaliação concreta segundo o art. 300 do CPC
Apesar do reconhecimento da aplicação imediata da nova lei, a revisão das medidas não se impõe automaticamente. A tutela de indisponibilidade de bens, como qualquer medida de urgência, submete-se ao princípio da cláusula rebus sic stantibus.
Logo, é necessária a provocação da parte interessada para que o juízo reanalise a medida anteriormente concedida. Além disso, a nova análise deve seguir os parâmetros do art. 300 do CPC, com exame da probabilidade do direito e do risco ao resultado útil do processo, não se prestando a ser mera adaptação formal da decisão anterior. A manutenção ou revogação da medida deve ser decidida a partir de juízo concreto de adequação, proporcionalidade e necessidade.
5.1. Interpretação conforme a LINDB: limites à retroatividade e dever de fundamentação reforçada
A aplicação imediata da nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/2021) aos processos em curso, sobretudo quanto à tutela de indisponibilidade de bens, deve ser analisada sob a perspectiva da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que consagra diretrizes fundamentais como a segurança jurídica, a racionalidade decisória e a adequada consideração das consequências práticas das decisões.
Nos termos do artigo 20 da LINDB, decisões no âmbito judicial não podem basear-se em valores jurídicos abstratos sem que se levem em conta as implicações concretas que delas resultam. A revogação indistinta e automática de tutelas cautelares anteriormente concedidas ignora a função estabilizadora dessas medidas e a expectativa legítima de sua manutenção.
Além disso, o artigo 21 da LINDB exige que toda decisão judicial que imponha nova interpretação sobre fato pretérito fundamente-se de forma qualificada, com a devida avaliação das consequências jurídicas da mudança.
Por fim, o artigo 24 da LINDB impõe que, em sede de revisão judicial, leve-se em conta o estado do direito ao tempo em que o ato foi praticado.
Dessa forma, sob a ótica da LINDB, mostra-se mais consentâneo ao ordenamento jurídico um modelo de aplicação do Tema 1257 que assegure:
o respeito à validade formal das medidas concedidas sob a égide da legislação revogada;
a exigência de reavaliação provocada, motivada e fundamentada; e
a preservação da confiança legítima e da proporcionalidade no exercício da jurisdição.
5.2. Reversibilidade e momento processual da revisão da cautelar
A tutela de indisponibilidade de bens deve ser compreendida à luz do sistema de tutela provisória de urgência, previsto nos arts. 294 a 311 do CPC. A medida exige a demonstração cumulativa da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora), sendo ainda revogável ou modificável a qualquer tempo (art. 296).
A revisão da tutela exige, assim, a superveniência de fato novo — como a alteração legislativa — e a provocação da parte interessada.
Deve-se também considerar o estágio processual em que se encontra o feito: a depender da fase probatória ou do adiantamento da instrução, o ônus argumentativo e probatório se intensifica. A simples existência de nova norma não dispensa a análise concreta dos fundamentos que ainda possam justificar a medida, inclusive quanto à persistência de indícios de improbidade e ao risco de dilapidação do patrimônio público.
6. Conclusão
A análise do novo regime de indisponibilidade cautelar de bens na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), introduzido pela Lei nº 14.230/2021, evidencia um avanço significativo em direção a um processo sancionador mais justo, técnico e garantista. As alterações, que incluem a necessidade de demonstração de "perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo" (art. 16, §3º da LIA), a impossibilidade de o valor global da medida superar o quantum do alegado dano ao erário ou enriquecimento ilícito, e a vedação de englobar o valor da multa no quantum total, impactam diretamente a aplicação prática das medidas de indisponibilidade.
Nesse contexto, a aplicação indistinta do Tema 1257 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que fixou a aplicabilidade das disposições da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, sem uma reavaliação individualizada, pode violar o princípio da segurança jurídica e comprometer a estabilidade dos atos processuais válidos.
Embora a jurisprudência do STJ tenha modificado seu entendimento para assentar a incidência imediata das inovações legislativas aos processos em curso sem decisão final transitada em julgado, lastreada na natureza de tutela de urgência cautelar e na natureza processual dos dispositivos, a retroatividade de entendimento jurisprudencial deve respeitar os contornos do art. 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), o que impõe análise prudente e fundamentada de cada caso.
A revogação dos Temas 701 e 1055 do STJ – que antes permitiam a decretação da indisponibilidade com "risco implícito" e a inclusão da multa civil no valor acautelado, respectivamente – não autoriza a revisão automática das tutelas de indisponibilidade de bens anteriormente deferidas.
Conforme ilustrado, a manutenção de bloqueios de bens baseada em risco presumido por tempo indefinido pode gerar graves consequências e paralisar a vida econômica do réu. Assim, embora a nova Lei 14.230/2021 tenha alterado substancialmente o regime jurídico da medida, sua aplicação exige provocação da parte interessada e reavaliação concreta, à luz do art. 300 do Código de Processo Civil e dos princípios consagrados na LINDB.
O diferencial deste estudo está em restabelecer o papel do processo e da técnica processual na gestão das tutelas provisórias, destacando que a revisão das medidas deve ocorrer dentro de um modelo de transição constitucionalmente adequado, proporcional e motivado, assegurando que as ações de improbidade se consolidem como um instrumento de responsabilização responsável, eficiente e constitucionalmente orientado.
Referências
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015.
BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942.
BRASIL. Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992. Revogada parcialmente pela Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021.
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CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe; ÁVILA, Carlos Alberto Rosal de; FERREIRA, Pedro Victor Porto. Novo regime da indisponibilidade cautelar de bens na LIA. JOTA, [S. l.], 8 maio 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/novo-regime-da-indisponibilidade-cautelar-de-bens-na-lia. Acesso em: 22 jun. 2025.
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SANTOS, Melissa Ribeiro dos. Direito intertemporal e cautelar de indisponibilidade de bens nas ações de improbidade. Consultor Jurídico, [S. l.], 19 ago. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-19/direito-intertemporal-e-cautelar-de-indisponibilidade-de-bens-nas-acoes-de-improbidade/. Acesso em: 22 jun. 2025
Abstract: This article examines the legal effects of the Brazilian Superior Court of Justice's ruling on Theme 1257, which led to the cancellation of Themes 701 and 1055, previously established on the provisional freezing of assets in administrative improbity actions. The study investigates whether the new jurisprudential orientation automatically authorizes the revocation of precautionary measures previously granted, or if a concrete reassessment is required under Article 300 of the Brazilian Code of Civil Procedure, taking into account legal certainty and due process. The article's distinctive approach lies in its procedural analysis, highlighting the need for a case-by-case review triggered by the interested party, in accordance with the general rules of provisional urgent relief.
Keywords: Administrative improbity. Urgent relief. Asset freezing. Theme 1257. Law 14.230/2021. Civil Procedure Code.