Resumo: O artigo examina os efeitos jurídicos da locação de curtíssima temporada por meio de plataformas digitais em condomínios residenciais e o entendimento jurisprudencial acerca do tema. A prática, embora fundamentada no direito de propriedade, gera conflitos com os direitos dos demais condôminos, como segurança, sossego e salubridade, sobretudo pela ausência de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro. A locação por temporada do imóvel prevista na Lei do Inquilinato impõe a finalidade residencial da modalidade, mas a rotatividade de inquilinos e o impacto nos espaços comuns desafiam o modelo tradicional, desconfigurando a sua natureza residencial. A falta de normatização acarreta divergência jurisprudencial, agrava a insegurança jurídica e resulta em decisões conflitantes dos tribunais regionais. Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que o condomínio pode vedar a prática se o impedimento constar na convenção condominial, preservando a sua finalidade residencial. Conclui-se que a locação via plataformas digitais em condomínios residenciais somente é juridicamente viável se autorizada expressamente pela convenção e que, em razão dos riscos à coletividade, recomenda-se a manutenção da destinação residencial das unidades.
Palavras-chave: Locação por Temporada – Plataformas Digitais – Condomínio Edilício – Direito de Propriedade – Segurança Jurídica
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito de propriedade e a locação por temporada. 3. A falta de regulamentação e a divergência em decisões judiciais. 4. A insegurança da locação por temporada para condôminos e condomínios. 5. Conclusão.
1. Introdução
A transformação das relações sociais e econômicas impulsionada pela tecnologia digital gerou importantes desafios ao direito privado contemporâneo, especialmente no tocante à utilização da propriedade privada em condomínios residenciais. A expansão das plataformas digitais de hospedagem, como Airbnb e similares, trouxe à tona a prática da locação de curtíssima temporada em unidades autônomas situadas em condomínios edilícios, prática que desafia a compatibilidade entre o exercício do direito de propriedade em detrimento dos direitos à segurança, sossego e salubridade dos demais condôminos.
A carência de regulamentação específica e a crescente judicialização do tema demonstram a relevância do estudo, que foi elaborado com o objetivo de examinar os efeitos jurídicos da referida modalidade locatícia em condomínios residenciais, contratada por meio de plataformas digitais, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, bem como das decisões reiteradas dos tribunais acerca da matéria. Busca-se, ainda, analisar a adaptação da convenção condominial para garantir segurança jurídica e preservação da função residencial do condomínio.
A abordagem proposta considera não apenas o direito constitucional à propriedade, mas também a harmonização desse direito com os limites que lhe são impostos pela função social, pela legislação infraconstitucional e pela convivência coletiva. Em um cenário marcado por decisões judiciais conflitantes, o debate torna-se relevante para condôminos, administradores e operadores do Direito que buscam compatibilizar inovação tecnológica com o respeito às normas de convivência e à finalidade do uso dos bens imóveis em regime condominial.
2. O direito de propriedade e a locação por temporada
A propriedade sempre desempenhou um papel central no progresso das sociedades humanas. Ao seu redor, as civilizações foram se estruturando ao longo da história, o que justifica a existência de um vasto conjunto de normas jurídicas destinadas a garantir não apenas o direito à propriedade, mas a sua proteção em sentido amplo.
No Brasil, o referido direito é assegurado pela Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXII - “é garantido o direito de propriedade”. Insculpido como um direito fundamental, não tem caráter absoluto, devendo ser observada a eventual incidência de outros direitos e garantias para que possa ser assegurado. A esse respeito, nos ensina Paulo Nader (2016, p.129):
Em sua classificação, o direito de propriedade se diz absoluto, não no sentido de franquear ao titular ilimitados poderes sobre a coisa, mas porque apresenta validade erga omnes, sendo oponível a qualquer pessoa. Embora a ordem constitucional garanta a propriedade privada, a cada dia surgem novas limitações ao exercício desse direito, ditadas pelo interesse social. O titular da propriedade ocupa o polo ativo da relação jurídica, na qual a coletividade figura no polo passivo e como detentora do dever jurídico omissivo de respeitar a propriedade e o seu exercício.
A própria Constituição Federal já expressa a primeira restrição ao direito da propriedade no inciso XXIII do artigo 5º: “a propriedade atenderá a sua função social”. Ou seja, sem observância da função social, o direito de propriedade, ainda que fundamental, poderá ser restringido. Quanto ao direito de propriedade e as condições para o seu livre exercício, o Código Civil especifica as faculdades a si inerentes, bem como as restrições do seu uso, no artigo 1.2281.
Importante destacar que o dispositivo ilustra, nos parágrafos, situações em que se observa a imposição de limites ao livre exercício das faculdades inerentes à propriedade, em consonância ao comando da Constituição. Ou seja, não se pode olvidar que, para o livre exercício do direito de propriedade, se faz necessário observar os direitos de vizinhança, as normas, regulamentos e as regras de convivência que pautam as relações entre os indivíduos e destes com o meio que habitam.
A Lei 4.591 de 1964, que dispõe sobre o condomínio edilício, deixa claro em seu artigo 192 que o proprietário pode usar e fruir do bem imóvel como lhe aprouver, mas que, porém, deve observar os direitos de vizinhança, não causando dano ou incômodo aos demais moradores e proprietários.
Desta forma, a locação do bem imóvel nada mais representa do que o exercício do pleno direito, pelo proprietário, das faculdades que o título lhe provê. Entretanto, para tanto, este deve atentar-se aos critérios estabelecidos na norma. A modalidade da locação por temporada é regulamentada pela Lei 8.245/1991, a Lei do Inquilinato, cujo conceito está expresso no artigo 48: “[...]aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias[...].”
A partir da análise do dispositivo, observa-se que o legislador impôs duas condicionantes para a locação por temporada. A primeira, que a finalidade do seu uso seja residencial e a segunda, um prazo máximo de 90 dias de contratação. Consequentemente, caso sejam descumpridas as referidas condicionantes, restará descaracterizada a locação por temporada.
A justificativa para a imposição desse rigor pelo legislador encontra fundamento nos privilégios que são assegurados ao locador que contrata através dessa modalidade, a saber, a cobrança antecipada de aluguel, prevista no artigo 20 da referida lei e a concessão de liminar na ação de despejo, para desocupação do imóvel em 15 dias. Acerca da especificidade do regramento atribuído à locação por temporada, leciona o professor Américo Luís Martins da Silva (2016, p.297):
A locação residencial para temporada foi colocada numa categoria especialíssima, uma vez que apresenta características que a diferencia das demais modalidades de locação. Tanto é que na locação residencial para temporada existe a possibilidade de o locador receber de uma só vez e antecipadamente os aluguéis e encargos, até mesmo relativos a todo o tempo da locação (três meses), direito que não é outorgado pelo legislador ao locador de outras modalidades de locação.
A locação por temporada, tal como outros institutos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, sofreu impacto significativo do avanço tecnológico. Assim, em meados de 2012, foram criadas as primeiras plataformas digitais que viabilizavam a locação imobiliária por temporada. Essa nova modalidade se caracteriza pela hospedagem remunerada, com múltipla e concomitante locação de imóveis ou quartos por curto período de tempo.
O uso dessas plataformas para locação por temporada vem crescendo significativamente desde o seu surgimento. A intermediação por um aplicativo de celular ou página da internet propicia a conexão direta e virtual de locadores e locatários, acarretando facilidade e celeridade na contratação entre as partes. A facilidade do uso, a simplicidade para a contratação e a eliminação de intermediários atrai grande número de locadores e inquilinos, movimentando inclusive o mercado imobiliário por adquirentes que investem em bens imóveis com vistas a adoção da modalidade locatícia.
3. A falta de regulamentação e a divergência em decisões judiciais
A locação por temporada através de plataformas virtuais apresenta características próprias que não foram previstas pelo legislador e, por esse motivo, ainda carece de regulamentação específica. Entretanto, observamos que o Código Civil traz normas gerais que contribuem para conferir um direcionamento à modalidade como, por exemplo, a previsão de que o condomínio define qual o uso a ser dado para as unidades autônomas (artigo 1.332, III3), de que apenas com votos de 2/3 dos condôminos pode ser aprovada a mudança na destinação das unidades (artigo 1.3514) e de que os condôminos devem respeitar a destinação escolhida (artigo 1.336, IV5).
Dois projetos de lei em tramitação objetivam suprir essa lacuna legislativa e estabelecer um regramento específico, que pode contribuir para pacificar o tema. O PL 2474/2019, que adiciona o artigo 50-A6 na Lei 8.245/1991, veda a prática, salvo autorização expressa em convenção condominial, além de trazer a responsabilidade objetiva do locador pelos danos provocados por pessoas que, em razão da locação, ocasionaram danos no condomínio, e também equipara o locador a consumidor perante a plataforma de intermediação. Paralelamente, o PL 4/2025, que visa reformar o Código Civil de 2002, apresenta um dispositivo, o parágrafo 1º do artigo 1.3367, que veda a utilização da unidade autônoma para hospedagem atípica e, da mesma forma, condiciona a locação nessa modalidade à autorização expressa do condomínio.
Por ainda se tratarem de projetos de lei, o judiciário tem se utilizado das normas gerais para analisar os casos concretos, considerando-se que o ordenamento jurídico, até o momento, não dispõe de regramento específico adequado.
Em consequência, nos deparamos com decisões judiciais por vezes divergentes, acarretando insegurança jurídica para os envolvidos no mercado imobiliário locatício, como locadores e locatários, com consequências para os demais condôminos. Algumas decisões têm reconhecido a impossibilidade de o condomínio proibir a locação por temporada através de plataformas digitais, fundamentadas na violação do direito à propriedade, na não configuração de uso comercial com a locação por temporada, na falta de previsão de prazo mínimo para a locação por temporada, ou na impossibilidade de a alta rotatividade, por si só, trazer insegurança para os demais condôminos.
Nesse sentido, desde o advento dessa modalidade de locação, alguns tribunais regionais adotaram posicionamentos que se coadunam com a fundamentação acima elencada, favoráveis à possibilidade da locação por temporada através de plataformas digitais, a exemplo dos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro8, Goiás9, Alagoas10, Minas Gerais11 e Santa Catarina12.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento contrário ao demonstrado acima. Em um primeiro precedente13, uma moradora de um condomínio, violando a convenção do condomínio, se utilizou de plataformas digitais para alugar seu imóvel por temporadas muito curtas e para várias pessoas, em um cenário muito semelhante ao de um hostel. Assim, o condomínio buscou dar efetividade à referida convenção que previa o uso residencial exclusivo das unidades habitacionais.
No julgamento do referido caso, o STJ observou que locação por temporada formalizada através de plataformas virtuais gera alta rotatividade de hóspedes, o que conflitava com o previsto na convenção do condomínio, que estabelecia que a destinação das unidades deveria ser exclusivamente residencial. Consequentemente, a locação por plataforma virtual geraria desvirtuamento de finalidade do condomínio, prevista no referido instrumento, além de potencial ameaça à segurança, ao sossego e à saúde dos condôminos.
Em um segundo precedente14, um morador de um condomínio recorreu ao judiciário pleiteando anular a assembleia condominial, na qual havia sido proibida a locação de unidades autônomas por prazo inferior a 90 dias. No julgamento, o STJ reconheceu a legitimidade do condomínio para restringir a locação por temporada por qualquer meio, digital ou não. E que a alteração na convenção havia sido realizada com a devida observância dos requisitos da lei.
Esse posicionamento foi mantido em outras oportunidades15 pelo STJ e utilizado de maneira reiterada pelos tribunais regionais, restando assim consolidado o entendimento de que a exploração econômica de unidades por curtos períodos mediante plataformas digitais, pode ser vedada pela convenção condominial, sem que isso configure afronta ao direito de propriedade, o que tem contribuído para uniformizar as decisões dos tribunais regionais, proporcionando segurança jurídica para todos os envolvidos.
4. A insegurança da locação por temporada para condôminos e condomínios
Uma das consequências da modalidade é a troca frequente de inquilinos que a locação por temporada ocasiona, que tem impacto direto na esfera individual de todos os demais moradores. O acesso frequente por pessoas estranhas às relações de todos, que não têm compromisso com a comunidade a qual estão temporariamente inseridos, tiram o sossego dos demais condôminos, além de afetar a segurança de todos pois, em muitos casos, os inquilinos têm para si asseguradas cópias das chaves dos portões de entrada do condomínio, o que dificulta a fiscalização acerca dos acessos às suas dependências.
Além disso, o direito de um proprietário de usar, gozar e dispor livremente do seu imóvel e alugá-lo como bem entender, deve se harmonizar com os direitos dos demais condôminos que, da mesma forma, também têm direito à segurança, sossego e paz para usufruir de suas respectivas propriedades. E, ainda que se busque argumentos no sentido da proteção constitucional ao direito de propriedade, tal direito deve ser sim, assegurado àquele que explora economicamente seu imóvel através do aluguel, mas sobretudo àquele que faz dele a sua moradia.
Importante destacar que, condomínios que dispõem de áreas de lazer como quadras esportivas, piscinas, saunas e salão de festas têm, adicionalmente, seus espaços diretamente afetados pela presença numerosa de estranhos ao convívio condominial.
Verifica-se, portanto, que a alta rotatividade de inquilinos nas unidades autônomas do condomínio, da forma como concebida e viabilizada através do uso das plataformas digitais, desnatura a finalidade residencial do condomínio. E, apesar de se assemelhar ao instituto da locação por temporada previsto na Lei do Inquilinato, esta forma de hospedagem não dispõe, até o momento, de legislação reguladora.
5. Conclusão
A análise desenvolvida ao longo do presente estudo evidencia que a locação de curtíssima temporada por meio de plataformas digitais, embora constitua inovação relevante no mercado imobiliário e expressão do exercício do direito de propriedade, apresenta uma série de desafios jurídicos quando inserida no contexto dos condomínios edilícios residenciais.
A ausência de regulamentação específica para essa modalidade contratual tem gerado insegurança jurídica e decisões judiciais divergentes, exigindo dos operadores do direito uma leitura sistemática e harmônica da legislação vigente. O direito à propriedade, embora garantido constitucionalmente, não é absoluto e deve ser interpretado à luz da função social e dos princípios que regem a convivência coletiva, especialmente em espaços de uso compartilhado como os condomínios.
O STJ tem desempenhado papel central na construção de um entendimento mais estável, reconhecendo a legitimidade das convenções condominiais para restringir a prática da locação por curtíssimo prazo via plataformas digitais, possibilitando que seja preservada a destinação residencial das unidades e protegendo os direitos dos demais condôminos à segurança, sossego e salubridade.
Diante disso, conclui-se que, para que seja juridicamente viável a exploração econômica das unidades autônomas por meio de locações de curta duração, o condomínio deve promover alteração da convenção do condomínio em assembleia condominial para regulamentar a modalidade, atendendo-se ao quórum de 2/3 dos condôminos previsto no artigo 1.351 do CC/2002, bem como os demais requisitos previstos em lei (regras de convocação, prazos, ordem do dia e votação).
Apesar de juridicamente viável o acima elencado, é aconselhável que a utilização das unidades autônomas seja mantida como exclusivamente residencial, possibilitando o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos. Desta forma, o condomínio se distancia dos riscos que a modalidade impõe aos demais moradores e dos prejuízos para a segurança, sossego, salubridade e paz de todos.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm#art1045. Acesso em 19 abr. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 out 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm. Acesso em 10 abr. 2025.
BRASIL, Lei N° 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sôbre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Diário Oficial da União, Brasília/DF. 21. dez. 1964. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4591compilado.htm. Acesso em 09 abr. 2024.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.474, de 23 de abril de 2019. Altera a Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, para disciplinar a locação de imóveis residenciais por temporada por meio de plataformas de intermediação ou no âmbito da economia compartilhada. Brasília: Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136443. Acesso em: 19 abr. 2025.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 04 de 2025. Dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata. Brasília: Senado Federal, 2025. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998. Acesso em: 27 mai. 2025.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Direito das coisas. Vol. 4. 7ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
SILVA, Américo Luís Martins da. Direito das Locações Imobiliárias. Teoria Geral, Locações no Código Civil, Lei do Inquilinato, Leasing, e Hotéis Residência. Leme: Editora Cronus. 2016.